terça-feira, 31 de maio de 2016

Cinema - O Valor de Um Homem (La Loi du Marché)

De: Stéphane Brizé. Com Vincent Lindon, Karine De Mirbeck e Matthieu Schaller. Drama, França, 2015, 93 minutos.

A França que o diretor Stéphane Brizé - do belo Mademoiselle Chambon (2010) - costuma mostrar em seus filmes em nada lembra o glamour romanceado de sua capital, bem como o de pontos turísticos como a Torre Eiffel, o Arco do Triunfo ou mesmo a badalada Champs-Elysées. Pouco ou nada se vê sobre o seu passado artístico suntuoso, sobre a Belle Époque ou sobre pintores impressionistas do final do século 19. Não, a "cidade luz" de Brizé é a do trabalhador que paga impostos, que luta para se manter, que enfrenta um sistema em que os ricos e pobres permanecem a algumas léguas de distância uns dos outros. E que em 2015 alcançou um índice de desemprego próximo dos 11% da população trabalhadora ativa. Estou falando da França, só pra lembrar. E lá não houve impeachment ao que me consta.

É nesse contexto que está estabelecida a trama do amargo e melancólico O Valor de Um Homem (La Loi du Marché), que estreou nesta semana nos cinemas. Homem de cinquenta e poucos anos, Thierry (o sempre competente Vincent Lindon) está desempregado. Mas isso não significa leniência. Ao contrário, interessado em retornar ao mercado de trabalho, o homem, casado e pai de um filho deficiente, participa de cursos técnicos e outros tipos de extensão - além de exasperantes capacitações -, sem conseguir ser efetivado para os cargos a que concorre - seja por não cumprir os pré-requisitos ou mesmo por não possuir o perfil desejado para esta ou aquela atividade. No Brasil parece haver tantas pessoas frustradas por não conseguirem aquela vaga tão sonhada? Bom, esta não é exclusividade da nossa querida Pátria.


A obra, silenciosa, reflexiva, sutil, é pavimentada por uma série de sequências naturalistas capazes de tornar o clima, em sua introspecção, praticamente sufocante durante a busca de Thierry. Se na primeira cena já somos apresentados a ele como um sujeito que procura argumentar, em vão, ainda que de forma digna e eloquente, a respeito das injustiças cometidas por uma escola que vende cursos técnicos que não levarão praticamente ninguém ao mercado, no instante seguinte encontramos o sujeito em sua rotina simplória de cursos de dança com a esposa e de "afeto distante" com o filho. As humilhações provocadas por entrevistas mal-sucedidas e a franqueza de colegas em relação a sua postura autocomiserativa em atividades "preparatórias", torna tudo ainda mais dilacerante. (e é praticamente impossível não se identificar com a situação, já que a grande maioria das pessoas já deve ter vivido alguma situação semelhante)

Sem jamais exagerar no tom, o filme ainda apresenta os seus personagens como sujeitos complexos, capazes de apresentar nuances de caráter que contribuem para tornar o filme muito mais do que um líbelo do "bem contra o mal" ou mesmo do homem comum diante do "capitalismo selvagem". E se numa cena percebemos um entrevistador levemente constrangido por ocupar aquela posição, em outra sequência vemos Thierry e sua esposa com uma transformadora firmeza de propósito, ao não se desfazerem de seu único bem - que ainda possui valor sentimental - apenas por estarem precisando urgentemente de dinheiro. Algo reforçado pelas interpretações absolutamente convincentes de todos aqueles que vemos na película - com destaque para Lindon, que foi eleito Melhor Ator em Cannes pelo papel. Não bastassem todos esses valores, essa pequena obra-prima moderna ainda guardará para o seu terço final a sua mais grata surpresa. Ao conseguir um emprego - não para aquilo ao qual o homem sonhava exatamente - Thierry perceberá, da pior maneira possível, que a falsa sensação de "poder" gerada pelo cargo - e que ele claramente não gosta -, de nada valerá diante de quem é realmente poderoso nessa engrenagem.


Nota: 9,0



Grandes Cenas do Cinema - Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spottless Mind)

Filme: Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças
Cena: Meet me in Montauk (Encontre-me em Montauk)

Se existe um filme que retrata com perfeição a vida a dois desde o início até o rompimento, usando e abusando do lirismo, existencialismo, surrealismo, toques experimentais e uma edição complexa para transmitir sentimentos, este filme é o Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spottless Mind), dirigido por Michel Gondry em 2004, estrelado por Jim Carrey e Kate Winslet e um dos favoritos de todos os tempos aqui da casa.


Vencedor do Oscar de melhor roteiro original, a história concebida por Charlie Kaufman (Quero Ser John Malkovich, Adaptação) mostra o personagem Joel (Carrey) descobrindo que, após uma briga, a sua namorada Clementine (Winslet) passou por um procedimento para apagar as lembranças do seu parceiro, não reconhecendo-o mais. "Descornado", Joel decide realizar o mesmo procedimento para apagar as suas memórias e tentar sair da "fossa". Acontece que o ritual ocorre de trás pra frente, apagando as lembranças mais recentes e deixando as antigas para o final. Ao mostrar estas memórias sendo apagadas na mente do protagonista enquanto este está sedado, acompanhamos o drama de Joel para tentar salvar as coisas boas (que aumentam proporcionalmente a medida em que o relacionamento volta ao início) e que, para isso, deverá tentar abortar o procedimento tendo que fugir (e levar Clementine junto) nos labirintos de sua mente.

Toda inventividade e maluquice do extremamente complexo roteiro lida com questões universais tais como perda, passado e memória, utilizando elementos de suspense, drama, romance e até ficção científica. E o ápice ocorre em uma das cenas finais, onde o mesmo relembra de um encontro fracassado e lida com o arrependimento de não ter agido de forma diferente. Dilacerante, poética e embalada em uma trilha sonora capaz de cortar qualquer pessoa que tenha passado por situação semelhante, a cena nos mostra uma casa a beira mar desmoronando, num reflexo de suas lembranças sendo apagadas, ao relembrar o primeiro encontro e seu ato de covardia e até mesmo humilhação, e a última frase sussurrada por Clementine: "meet me in Montauk"("encontre-me em Montauk") - algo que ficará no seu inconsciente e acabará por repercutir no desfecho desta magnífica e sensível obra que emocionou e ainda há de emocionar muita gente - que tenha um coração, ao menos.


- I thought maybe you were a nut, but you were exciting.
- I wish you'd stayed.
- I wish I'd stayed too. Now I wish I'd stayed. I wish I'd done a lot of things.
- Oh, God, I wish I had...
- I wish I'd stayed. I do.
- Well, I came back downstairs, and you were gone. 
- I walked out. I walked out the door.
- Why? 
- I don't know. I felt like a scared little kid. I was like... It was above my head. I don't know.
- You were scared?
- Yeah.
- Thought you knew that about me.
- I ran back to the bonfire, trying to outrun my humiliation, I think.
- Was it something I said? 
- Yeah. You said, "So go"... with such disdain, you know?
- Oh, I'm sorry. 
- It's okay.
- Joely? What if you stayed this time?
- I walked out the door. There's no memory left.
- Come back and makeup a good-bye, at least. Let's pretend we had one. Bye, Joel.
- I love you.
- Meet me in Montauk.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Novidades em DVD - Joy: O Nome do Sucesso (Joy)

De: David O. Russel. Com Jennifer Lawrence, Robert De Niro, Bradley Cooper, Virginia Madsen e Isabela Rossellini. Biografia / Drama / Comédia. EUA, 2015, 126 minutos.

Com uma filmografia (propositalmente) exagerada e caricata, o diretor David O. Russel parece ter se especializado, com o passar dos anos, em apresentar ao público toda a ilusão delirante do american way of life, com seus personagens e histórias que mais pareciam saídos de alguma telessérie ou filme para a TV vindos diretamente dos anos 60 ou 70, dado o anacronismo de cada obra. Foi assim em alguns filmes apenas razoáveis, como Trapaça (2013) e em outros tantos bons, como O Vencedor (2010) e O Lado Bom da Vida (2012), ocasiões em que, mais do que obras com histórias bem costuradas ou amarradas éramos apresentados a uma verdadeira coleção de personagens interessantes - ainda que em em muitos casos, estereotipados - interpretados por gente talentosa como Jennifer Lawrence, Bradley Cooper, Christian Bale, Mark Wahlberg e Robert De Niro.

Nesse sentido, é justamente a capacidade de compor em seus roteiros personagens multidimensionais e dotados de um mínimo de complexidade o fato que possibilitou indicações ao Oscar - e até algumas conquistas da estatueta mais cobiçada - a alguns dos atores com as quais já trabalhou. Não à toa, O. Russel é tido como um diretor com grande capacidade de condução de atores, ainda que seus filmes possuam pouco valor no que diz respeito aos elementos estéticos ou a seus arcos dramáticos - nunca ousados e quase sempre previsíveis. Pois o tom novelesco e farsesco, ou mesmo de paródia metalinguística, parece atingir seu auge com o recém chegado em DVD Joy: O Nome do Sucesso (Joy), que, já em sua primeira cena, brinca com o modelo ao apresentar uma sequência, parte de uma novela ficcional, que servirá para ditar o tom da narrativa que encontraremos pela frente. Acreditar ou não naquilo que o filme tenta vender dependerá de cada um.



Na trama, baseada em fatos reais, Jennifer Lawrence vive a Joy do título. Como em qualquer caso de história de superação, Joy é uma sonhadora que luta, e muito, para conseguir colocar em prática os planos e ideias que lhe possibilitem uma vida mais digna e feliz - e com mais dinheiro, como manda o figurino das histórias americanas e invariavelmente capitalistas. Como desgraça pouca é bobagem, Joy tem uma família absolutamente disfuncional, sendo esta, em muitos casos, a grande responsável por fazer com que a jovem não "saia do chão". Não bastasse a mãe alienada do mundo e interessada apenas em suas farsescas novelas (Madsen), Joy ainda conta com um pai ausente que retorna para casa após um segundo casamento mal sucedido (De Niro), um ex-marido que mora no porão da casa (Rámirez) e uma irmã ciumenta e competitiva (Elisabeth Röhm). A relação com a avó (Diane Ladd), com uma amiga dedicada (Dascha Polanco) e com os dois filhos parece dar a sustentação para que a garota não enlouqueça.

A situação muda de figura quando Joy - criativa desde a infância, como mostram alguns flashbacks - inventa um utensílio doméstico que poderá ajudar as "donas de casa" mundo afora. Sim, se trata de uma espécie de esfregão muito mais prático do que os comuns, por não necessitar do uso da mãos para torcê-lo e por ser muito mais prático de ser lavado. Você certamente já viu o produto nos polishops da vida. E se você estranhou o uso do termo "dona de casa" nessa resenha, saiba que este é apenas um dos problemas do filme. Sem esconder um certo machismo, a película alça a protagonista à condição de estrela de televisão justamente após uma sequência em que um homem, contratado do canal em que o produto será comercializado, se mostra incapaz de usar o novo objeto. Afinal de contas, vassoura é algo feito para a mulher, né? Assim como limpar a casa? Ao menos de acordo com as ideias ultrapassadas do diretor. E mesmo que a trama se passe em outra época, essa sequência poderia ter sido facilmente solucionada sem a inclusão de um senhor branco e de meia idade "apanhando" do objeto.


Pecando também ao apresentar a família da protagonista como um emaranhado de pessoas ao mesmo tempo distantes e desinteressadas - o que torna tudo tão falso quanto as novelas vistas - a obra ainda faz uma mistura estranha de romance, comédia e até mesmo (pasme) drama de tribunal com pitadas de faroeste no seu terço final. Os diálogos, pouco inspirados, também não contribuem para que a verossimilhança seja preservada, soando algumas vezes absurdos e nada realistas - e se em Trapaça o exagero parecia proposital em tudo, figurinos, cabelos, cenografia, interpretações, aqui parece haver um certo tom solene na evolução da protagonista que nada tem a ver com a forma como percebemos tudo aquilo a que estamos assistindo. É como se fosse uma espécie de fantasia em que o criador não estava muito inspirado. O que, é preciso que se diga, é uma pena, já que a instigante história tinha tudo pra render um filme melhor.

Nota: 4,5

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Lançamento de Videoclipe: Biffy Clyro (Wolves of Winter)

A banda escocesa Biffy Clyro é pouco conhecida por aqui, mas desde 2002, com o lançamento de seu primeiro disco, Blackened Sky, vem prestando uma série de bons serviços ao rock com suas performances explosivas em um perfeito equilíbrio entre peso e melodia em suas canções - algo que o Smashing Pumpkins fazia com perfeição nos anos 90 (embora a comparação entre as duas bandas pare por aqui).

Com o passar do tempo o grupo vem aprimorando seu modus operandi, chegando ao ápice com o lançamento do álbum duplo Opposites, em 2013, que lhes rendeu o título de melhor banda do Reino Unido pelo New Musical Express (NME), desbancando nomes consagrados como o Arctic Monkeys, por exemplo. E por isso mesmo, a espera pelo novo disco, que se intitulará Ellipsis, tem sido precedida de grande curiosidade pelos fãs e crítica. Segundo o vocalista Simon Neil, este será o disco mais experimental e conciso que já fizeram, com bastante uso de elementos eletrônicos, e a banda está muito satisfeita com o resultado.

O primeiro aperitivo desta nova leva de canções chama-se Wolves of Winter, cujo videoclipe já está disponível na rede e você pode conferir abaixo. A canção traz todos os elementos descritos acima, mas sem perder a verve demonstrada pela banda nos trabalhos anteriores. Vale dar uma conferida neste videoclipe, todo feito em animação e com uma temática bem "viajante", com diversos elementos que perpassam por diferentes épocas, complementando este lado experimental da canção. Vale conferir!


terça-feira, 24 de maio de 2016

Disco da Semana - Mahmundi (Mahmundi)

Final de verão / Fiz um hit pra entoar você. Curioso notar como o verso que inaugura o maravilhoso e homônimo disco de estreia da carioca Mahmundi, bem poderia funcionar como um resumo daquilo que encontraremos em toda a obra: um disco por vezes ensolarado, com aquele clima de fim de tarde na praia, ou de noite quente em clima de romance. Assim são as características de um registro capaz de utilizar sintetizadores, teclados, linhas de baixo e guitarra, além de outros efeitinhos diversos para entregar uma verdadeira coleção de canções absolutamente radiofônicas, refrescantes na medida certa e com refrões certeiros prontinhos para tocar nas rádios mais descoladas do País. Não à toa, o clima litorâneo à anos 80 pode ser percebido não apenas na sonoridade e nas letras, mas também no nome das canções - Eterno Verão, Calor do Amor - ou mesmo na ensolada e quente capa do álbum.

Mahmundi, ou Marcela Vale, seu nome artístico "anterior" não é exatamente uma novidade no mundo da música. Ainda que já tenha trabalhado em lugares como o Kentucky Fried Chicken (KFC), a artista e compositora - que já foi vocalista e guitarrista da banda Velho Irlandês e técnica de áudio no Circo Voador, no Rio de Janeiro - aguardava o momento de mostrar ao mundo a sua arte. E lá se foram alguns bons quatro anos até apresentar este trabalho de estreia, que conta com direção artística do gaúcho Carlos Eduardo Miranda. "Como fui assistente de produção de grandes discos, ficava com a mão coçando para mostrar para os meus áudios para pessoas ligadas a música, mas sabia que ia ser apenas mais uma devo que eles iriam ouvir", explicou em entrevista para o site Monkeybuzz.



Nesse sentido, Mahmundi parece estar sendo recompensada pela paciência - a chegada da internet e de outras plataformas de distribuição de música a ajudaram muito -, já que o trabalho de estreia, ainda que enxuto - são apenas 10 música e pouco mais de 40 minutos - é grandioso em suas emanações românticas, capazes de envolver e confortar o ouvinte, em um clima embalado por boas doses de new wave, lo-fi, R&B e música eletrônica. Quem acompanha de perto o trabalho da artista sabe que canções como Leve, Calor do Amor, Desaguar, Sentimento e Quase Sempre já foram apresentadas anteriormente, em EPs como Efeito das Cores e Setembro. Para quem optar por descobrir agora o trabalho da cantora encontrará um tanto de nostalgia (Leve), alegria juvenil (Eterno Verão) e o pleno prazer de ter alguém para amar (Desaguar, talvez a melhor do disco).

Como se fosse uma mistura de Marina Lima com Silva - com uma pequena pitada de Lulu Santos -, Mahumndi não se envergonha de abrir o seu coração em letras sinceras e diretas no que diz respeito aos relacionamentos - e que formam grande parte do material entregue pela artista. O amor é um mar difícil / Mas é tão fácil de se ver e admirar / Todo amor tem um artifício /Que não acaba e ninguém pode mudar canta em Sentimento música que fecha o registro e que condensa as ideias apresentadas durante toda a obra e que são capazes de jogar o ouvinte diretamente para este ambiente. O clima á praiano, por vezes festivo e colorido. Mas quando o entardecer chega e com ele vem a noite, mesmo no verão, fundamental é ter alguém pra dividir as doçuras dessa estação.

Nota: 8,4


Grandes Cenas do Cinema - Perfume de Mulher (Scent Of a Woman)

Filme: Perfume de Mulher
Cena: Dando aula de tango

Existem alguns filmes que, se não foram assim tão marcantes no que diz respeito a recepção da crítica, o mesmo não se pode dizer em relação ao público. E é exatamente esse o caso de Perfume de Mulher (Scent Of a Woman), lançado em 1992 e protagonizado por Al Pacino. Na trama, o astro é o tenente-coronel Frank Slade, que fica cego após a guerra, tornando-se um sujeito progressivamente amargurado, infeliz, solitário e odioso na mesma medida, uma vez que não hesita em tratar as outras pessoas de maneira preconceituosa e racista, tudo travestido pelo mais completo deboche. A chegada de um jovem - vivido por Chris O'Donell - que lhe servirá de acompanhante em uma viagem a Nova York, enquanto sua família está de férias, modificará a sua vida pra sempre. Fazendo, inclusive, com que ele altere algumas de suas convicções.




O filme é bacana e Pacino está irretocável como esse reformado do exército de modos sisudos e conservadores, bem ao estilo dos votantes de Donald Trump. Mas é provável que muitos nem lembrem direito de todos os eventos ocorridos na obra dirigida por Martin Brest (de Um Tira da Pesada), sendo certamente a cena mais marcante a indefectível sequência em que Frank dança tango com uma jovem, ao som de Por Una Cabeza, de Carlos Gardel. Uma sequência de imagens tocante, ao mesmo tempo sensual e singela, e que mostra um outro lado dessa persona tão complexa encarnada por Pacino na película. Perfume de Mulher é definitivamente o filme da "cena do tango". E é preciso que se diga que este inesquecível momento do cinema só seria mais impactante se fosse executado por um artista realmente cego. Ainda assim é preciso dar todos os méritos a Pacino, que conduz esse momento, certamente uma das Grandes Cenas do Cinema de maneira soberba.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Cine Baú - Rastros de Ódio (The Searchers)

De: John Ford. Com John Wayne, Jeffrey Hunter, Natalie Wood e Vera Miles. Faroeste / Aventura, EUA, 1956, 118 minutos.

Durante muitos anos Hollywood personificou a luta do bem contra o mal por meio de faroestes em que podíamos assistir a luta dos "mocinhos" - homens brancos, polidos, de educação religiosa e que não hesitariam em apontar seus imponentes revólveres - contra os "bandidos" - no caso os índios, maltrapilhos, sujos, com uma língua que não era o inglês e de caráter duvidoso. Essa dicotomia esteve especialmente presente entre os anos 40 e 60, após a Segunda Guerra e início da Guerra Fria, quando era necessário reafirmar a todo custo o patriotismo e o crescimento pregado pelo sistema capitalista, na Terra do Tio Sam. Não dá para negar que o diretor John Ford - talvez o maior nome do estilo na história - levasse, sim, essa lógica ao pé da letra. Ainda que, em sua filmografia, fosse capaz de apresentar,  nem que fosse de forma sutil, outras nuances para cada película lançada.

É exatamente esse o caso do clássico Rastros de Ódio (The Searchers), lançado em 1956, que aparece aqui no nosso Cine Baú. Na trama, Wayne é o veterano da Guerra da Secessão Ethan Edwards, que chega ao Texas três anos após o final do conflito para visitar o irmão, a cunhada Martha (Dorothy Jordan) - por quem parece nutrir certa paixão - e suas duas sobrinhas. O sossego dura apenas um dia já que, na manhã seguinte, após retornar de uma investigação a campo relacionada a roubo de bovinos, Ethan encontra seu irmão e a cunhada mortos, após um ataque provocado pelos comanches, que, de quebra, ainda sequestram as duas filhas do casal. É o início da jornada de vingança de um homem amargurado pelo trauma, bem de acordo com script maniqueísta do gênero. Não fosse por um "pequeno detalhe": Ethan é um sujeito racista e xenófobo, que usa o preconceito e o ódio para atacar, inclusive, aqueles que lhe são mais próximos.



E é exatamente nesse ponto que reside a força desse imperdível filme. Ao contrário do que se poderia imaginar, o caubói leva mais de 10 anos, entre idas e vindas e buscas intermináveis por pistas para encontrar qualquer indício que possa lhe conduzir em direção a parente há tantos anos desaparecida. Mas quanto mais tempo Ethan demora em seu objetivo, mais uma dúvida lhe atormenta a alma: estando viva a doce Debbie (Wood), a sua sobrinha querida e de bons modos, será ela a mesma após uma temporada de anos nas mãos dos comanches? Terá ela se transformado numa "indígena", ofendendo a honra de sua família que agora jazia sob a terra? Como lidar com esse sentimento que lhe devasta o peito a cada pista ou caminho desencontrado? A que ponto poderia chegar um homem decepcionado com aquilo que restou da sua família? São perguntas que tornam essa obra-prima não apenas um bom faroeste de aventura, mas ainda um filme em que se sobressai um certo clima de suspense permanente.

Ainda que seja um sujeito de moral duvidosa, Ethan é interpretado por Wayne com um magnetismo e uma complexidade dilacerantes, capazes de fazer com que o espectador minimamente entenda as suas angústias - por mais descabidas que sejam suas atitudes. Em sua viagem, o veterano é acompanhado pelo mestiço Martin (Hunter), que fazia parte da família por ter sido adotado pelo irmão. Chamando-o eventualmente de "cherokee de segunda" ou de "cabeça de cobertor", o homem demonstra todo o seu ódio racista comum a colonizadores daquele período. Com imagens grandiosas do Monument Valley e trilha sonora certeira (de Max Steiner), a obra conta ainda com uma série de personagens secundários interessantes - ainda que eventualmente caricatos - que contribuem de maneira determinante para a construção da história.



Em uma época em que entes políticos patéticos como o deputado federal Jair Bolsonaro (o "Bolsomito") destilam toda a sua raiva fascista contra as minorias em todos os canais disponíveis - ele prefere ver seu filho morto a ser gay - uma revisão a este filme de Ford serve para mostrar que o pensamento vigente há quase 150 anos (o filme se passa em 1868), ainda pode estar vivo, nas mais variadas formas. A obra pavimentou o terreno para que Ford discutisse em outras ocasiões a questão do racismo, como no caso do também imperdível O Homem que Matou o Facínora (1962), elevando os filmes de faroeste a um outro patamar. Ainda que Rastros de Ódio tenha sido completamente ignorado no Oscar, à época, a película costuma aparecer em inúmeras listas de melhores da história. No Top 50 da Sight and Sound Magazine foi o sétimo melhor de todos os tempos. Já na lista de 2007 do American Film Institute (AFI) foi escolhido como o 12º mais importante da história. O que, definitivamente, não é pouco.

sábado, 21 de maio de 2016

Lançamento de Videoclipe - Boogarins (Benzin)

Se quando você pensa na cena musical de Goiás a primeira imagem que lhe vem a cabeça é a da dupla de sertanejo universitário Jorge e Mateus, está mais do que na hora de você rever os seus conceitos. É de lá uma das cenas mais efervescentes do rock alternativo nacional, com destaque cada vez maior para bandas como Peixefante, Carne Doce e Boogarins - isso sem falar no Violins. Todas elas favoritaças da casa! A propósito do Boogarins, o quarteto segue divulgando o seu mais recente trabalho, o onírico e psicodélico Manual - que aqui no Picanha ficou em quinto lugar na nossa relação de 25 melhores registros de 2015. O clipe para a faixa Benzin, lançado nesta semana, conta com a participação da vocalista do Carne Doce, Salma Jô, que trabalhou na composição da faixa, além dos demais integrantes do Boogarins. Gravado na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, o vídeo, dirigido pela Granada Filmes, possui belas e coloridas imagens. Vale clicar e conferir!

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Palco Picanha - Frida Kahlo, À Revolução

Como se não fosse suficiente a gente falar sobre música e cinema - assuntos que adoramos dar pitacos, mesmo sem muito conhecer - agora resolvemos falar também de teatro! É o quadro novo aqui do site, o Palco Picanha (criativo, né?). E na estreia, uma pequena análise da ótima peça Frida Kahlo, À Revolução, exibida na noite de ontem, no Teatro da Univates,


No cinema ocorre quase que invariavelmente - salvo algumas raras exceções: o filme que possui grandes arroubos tecnológicos, traduzidos em megalomaníacos efeitos especiais, explosões mirabolantes e uso de computador em praticamente todas as cenas, muitas vezes fica devendo na qualidade da história. É como se um frágil roteiro ou um argumento mal construído ou sem pé nem cabeça fosse encoberto pelos milhões investidos em toneladas de tecnologia. Algo que talvez pudesse ser chamado de Efeito Michael Bay. Não sei se vale a mesma lógica para o teatro - até mesmo porque este é mais um assunto do qual não somos especialistas - mas se dependermos daquilo que é visto na espetacular peça Frida Kahlo, À Revolução - exibida na noite de ontem, com bom público no Teatro da Univates - saímos com a certeza de que menos é mais.

Isso não significa, por exemplo, que o cenário, as luzes, o figurino e outros elementos, ainda que minimalistas, não sejam bem utilizado pelos artistas - no caso a protagonista Juçara Gaspar, que vive Frida, e o músico Luciano Alves que, como se nem estivesse presente, executa a trilha sonora incidental, ao vivo. Para contar a história da pintora mexicana nascida no início do século passado, em formato de monólogo (ou fluxo de pensamento), são necessárias apenas algumas vestes - que servirão para indicar as pequenas ou grandes mudanças na vida da artista -, um cavalete com algumas pinturas, uma aquarela, uma cadeira de rodas, uma manta vermelha e um colete ortopédico. Um ou outro jogo de luz. Uma sonoridade simples e ao mesmo tempo complexa. Importará, afinal, para o público presente, no trabalho dirigido por Daniel Colin, a mensagem sobre o princípio revolucionário e sobre a "arte como denúncia solidária e solitária", como diz o material de divulgação do evento.


A história, ainda que enxuta apresentada em apenas 60 minutos, resgata diversos momentos da vida de Frida, entre eles, o conturbado relacionamento com o pintor muralista Diego Rivera, as andanças do casal pelos Estados Unidos e pela Europa, onde sua arte regionalista e folclórica era tratada com certa curiosa distinção pelos burgueses locais, as dificuldades decorrentes de uma poliomelite contraída quando ainda tinha seis anos de idade e que lhe comprometeram os movimentos da perna direita pelo resto da vida, a bissexualidade - em uma contagiante cena com a participação involuntária da plateia -, além dos seus diversos abortos. Ao representar a perda de um filho, por sinal, talvez esteja a cena mais impactante e comovente de toda a peça, quando um manto vermelho aliado a um palco banhado por luz da mesma cor, forjam uma poça de sangue que talvez não fossem suficientes para diagnosticar o quão devastado estava o coração da artista nessa ocasião.

Nesse sentido, são os aspectos mais humanos dessa "personagem real" que são capazes de fazer com que ela transcenda a condição de mito. A luta pela revolução, com dezenas de citações ao comunismo, ao socialismo e a Trotsky - que lhes serviu inclusive como hóspedes - talvez fosse capaz de fazer arrepiar os pelos da família de bem mais raivosa presente no local (aquela mesma fatia do público, pequena, que se recusou inclusive a aplaudir o espetáculo) e que se regozija, por exemplo, com o fim do Ministério da Cultura. Mas o que pede Frida - e a sua intérprete Juçara -, em cada excerto de seu verborrágico e necessário discurso é que nos "revolucionemos a nós mesmos". Que não fiquemos acomodados, que sejamos capazes de questionar o status quo ou aquilo a que somos obrigados a engolir goela abaixo. Enfim, que possamos viver a vida com mais leveza, atentos as coisas simples, a natureza, talvez até com alguma ingenuidade a mais - mas sem perder a paixão vibrante e explosiva por aquilo que nos rodeia e comove. Assim como era a arte de Frida Kahlo. E só essa mensagem, já é suficiente para que a peça tenha valido. E muito.



quinta-feira, 19 de maio de 2016

Picanha em Série - Mr. Robot

Existe uma cena de Mr. Robot rolando nas redes sociais, talvez vocês já a tenham visto. Nela, o protagonista Elliot Alderson (Rami Malek) responde o que na sociedade lhe decepciona tanto, pergunta feita pela sua psiquiatra, a elegante doutora Krista Gordon (Gloria Reuben). Será porque todos acham que Steve Jobs era um grande homem, mesmo sabendo que ganhou bilhões explorando crianças? Ou talvez porque nossos herois são uma farsa. O mundo inteiro é um grande boato. Assediando uns aos outros com comentários imbecis disfarçados de opiniões nas mesmas mídias sociais que fingem promover intimidade. Ou será porque votamos nisso? Não através de eleições fraudadas, mas com as nossas coisas, propriedades, nosso dinheiro. Isso não é novidade. Sabemos porque fazemos isso. Não porque Jogos Vorezes nos deixam felizes, mas porque queremos ficar sedados. Porque é doloroso não fingir. Porque somos covardes. Essa é a resposta.

De alguma maneira, pode-se dizer que esse arroubo de sinceridade do protagonista resume bem o espírito dessa impressionante e elogiada série, que teve a sua primeira temporada exibida em novembro do ano passado no canal por assinatura Space. E que já tem agendado para julho o seu segundo ano. Na trama, Elliot é um jovem programador que alterna uma rotina como técnico em uma empresa que trabalha com segurança virtual durante o dia e como hacker justiceiro durante a noite. Será justamente a aparição do tal Mr. Robot do título (Christian Slater) que bagunçará um tanto a sua vida. Mr. Robot é o líder de um misterioso grupo de hackers que recruta Elliot com o objetivo de atacar o maior conglomerado econômico do mundo, a multinacional E Corp. O detalhe: a E Corp está entre as clientes da Allsafe, empresa em que o jovem trabalha. Vale a pena se arriscar a tanto?



A série, uma das mais originais surgidas nos últimos anos discute, nas entrelinhas, diversas questões relevantes da atualidade, estando entre elas as diferenças sociais, a dependência que temos dos sistemas informatizados, a insegurança da disponibilidade de dados na rede, a importância dada ao dinheiro, a farsa das propagandas, a necessidade do uso de pílulas e medicamentos que nos possibilitem emoções sintéticas em uma vivência tomada pelo torpor, o aumento desenfreado do uso de produtos químicos nos alimentos, a lavagem cerebral da mídia, entre outros. E isso, é preciso que se diga, não é pouco. Afinal de contas, a E Corp fictícia que se vê em Mr. Robot bem poderia ser o Microsoft, a Monsanto, a Exxon, a General Electric, a HSBC. E se essas empresas fossem deletadas do mapa de um dia para o outro? Quem sofreria? Seria possível um novo mundo sem elas?

Não bastassem o roteiro e a direção espertos de Sam Esmail, a história ainda conta com uma série de arcos dramáticos interessantes e que geram interesse permanente de quem assiste à série. Seja nos momentos em que Elliot está hackeando algum colega de trabalho, interesse romântico ou mesmo caçando algum criminoso, seja nas investidas feitas pelo grupo coordenado por Mr. Robot - que leva o nome sugestivo de Fuck Society -, ou nas cenas nos corredores luxuosos da E Corp, com seus executivos ambiciosos em busca de cargos que lhes deem ainda mais dinheiro, tudo é extremamente bem amarrado, com tensão e drama na medida certa. Para se ter uma ideia do clima da série é como se misturássemos filmes como O Clube da Luta e V de Vingança com a literatura de William Gibson e Aldous Huxley e o som do Chemical Brothers. Há certa urgência e certa violência, mas também há algum torpor nas rotinas letárgicas de cada personagem.


Repleto de grande interpretações - um dos maiores destaques o jovem ator Martin Wallstöm, que vive o vice-presidente sênior te tecnologia da E Corp, Tyrell Wellick - Mr. Robot ainda adota um estilo diferente de filmar, com enquadramentos oblíquos - é comum ver os personagens no canto da tela, dando a dimensão exata de seu tamanho em meio a um mundo de gigantes (e de pessoas importantes) -, elipses narrativas, flashbacks e uso de câmera lenta de forma orgânica. A trilha sonora vai de Beethoven, Neil Diamond e Maria Callas a Perfume Genius, M83, Alabama Shakes e FKA Twigs, contribuindo diretamente para gerar a sensação correta, seja ela a de instabilidade ou a de calmaria. Em uma época em que nunca se deu tanta importância para as questões econômicas, para o produto interno bruto, para o crescimento mercadológico, para a geração de emprego e renda e, enfim, de riqueza, Mr. Robot é daquelas séries que faz pensar, e muito, sobre nosso papel nesse contexto. Que venha a segunda temporada!

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Disco da Semana: Jay Vaquer (Canções de Exílio)

Dominus Poscriptu

Calma! Não é a nova carta do Temer, mas sim o alter ego (algo como "Senhor Exilado", em latim) adotado pelo músico carioca Jay Vaquer em seu mais novo disco - o oitavo de sua carreira - intitulado Canções de Exílio. Vaquer, pra quem não sabe, fez algum sucesso com alguns clipes na MTV durante o início do milênio, mas sem alcançar definitivamente o grande público - embora possua uma base de fãs muito fiel (a "mundiça", como os próprios se referem), principalmente no Rio de Janeiro. Esta espécie de desconhecimento por parte do grande público é parcialmente explicável: inquieto, o cantor e compositor tem um trabalho autoral bastante peculiar, talvez muito Pop para os roqueiros ou muito Alternativo para os fãs de música Pop. Oriundo de uma vivência no teatro, tendo participado e composto para musicais, suas performances podem soar um tanto exageradas para a gurizada que curte tocar uma guitarra barulhenta olhando para o chão. No entanto, é justamente na coragem do artista em literalmente dar a cara a tapa, sem fazer concessões à sua obra, o que me faz parar e ouvir atentamente cada um de seus lançamentos.

Excepcional cantor e letrista, Jay poderia muito bem ser comparado a um daqueles cantores que participam do programa The Voice, indo de um falsete a um vocal rasgado em questão de segundos e na mesma canção - não à toa, o ídolo Jeff Buckley é uma influência confessa do músico. Não bastasse, a produção caprichada e as letras muito acima da média do que se produz no Brasil atual, fazem deste lançamento talvez a obra mais bem acabada e concisa do artista até agora. Após uma série de decepções com empresários e pessoas ligadas ao meio musical, Vaquer se auto impôs uma espécie de exílio desde o lançamento, em 2011, do ótimo Umbigobunker!?, o que talvez tenha refletido em muitas das canções aqui apresentadas. Produzido novamente pelo consagrado Moogie Canazio (indicado ao Grammy pelo disco anterior), Canções de Exílio amplia a habilidade ímpar do artista em entregar ao ouvinte uma produção cheia de nuances, algumas surpresas, letras desafiadoras (umas extremamente ácidas, outras de um romantismo sincero e pungente) e uma certa novidade em termos sonoros. Nunca a eletrônica foi tão bem trabalhada como neste álbum de forma a complementar o teor pop rock das canções - e é extremamente recomendável que o mesmo seja apreciado em um bom sistema de som (de preferência com um bom fone de ouvido) para sacar todos os detalhes.


O início com a faixa Quantos Tantos já chega escancarando a porta com um riff de guitarra que introduzirá uma das letras mais críticas da obra, em um tema mais do que atual: o exibicionismo em tempos de redes sociais. "Mais interessante mostrar que esteve do que estar / Muito mais exibir a vida que viver / (...) / Caridade postada ou não terá valido nada" rasga o cantor em versos embalados com a maior pinta de hit pronto pra tocar nas rádios. O final, listando autores muitas vezes (mal ou erroneamente) citados nas redes por pessoas com pouco conhecimento de causa, encerra de forma grandiosa a canção. E, digo, seria muito bacana ouvir isso nas rádios. Tudo Que Não Era Esgoto chega de forma densa, pesada, com a eletrônica dando o tom pra uma das letras mais ácidas e difíceis de digerir pelo público pouco acostumado a ser desafiado. Uma metáfora pela má qualidade daquilo que é apresentado ao grande público como sendo cultura, uma mágoa com o chamado mainstream que define aquilo que devemos ou não consumir é o mote desenvolvido aqui. "Inclusão salutar trouxe consigo esse cheiro próprio / Negócio lucrativo comercializar a bosta feito ópio / (...) / Podridão difundida / Patrimônio cultural / E quem não curtisse aquilo era débil mental". Quem já morou perto de um curtume sabe como é fácil se acostumar com o mau cheiro. A próxima faixa, Canção do Exílio Domiciliar baixa o tom em um lamento naquilo que só a vida a dois pode proporcionar: a dor de uma separação, ou de viver com alguém e mesmo assim continuar sozinho. "Sonha então / Maneiras de poder aterrissar / Nisso que um dia foi / Uma vida bem vivida / Foi onde eu mais queria estar / (...) / Me diz / O que resta pra nós / Não sei", encerra de forma desesperançosa e bela. Boneco de Vodu volta ao clima mais rock, porém desta vez com a eletrônica mais presente e a acidez borbulhando no personagem da canção, que ignora toda e qualquer superstição: "Então já sabe o que fazer com meu boneco de vodu", provoca, deixando a rima pra mente suja do interlocutor - não por acaso, uma lembrança daquele tipo de gente que se dá uma auto-importância exagerada ("sua inveja faz a minha fama" e coisas do tipo), como se alguém realmente estivesse interessado na gente de qualquer forma. Citando Gilberto Gil de forma surpreendente, é uma das faixas em que o cantor mais expressa seu jeito irônico e debochado, mas denunciando a própria hipocrisia ("Até desconfio do ateu / E isso é problema meu / (...) / Talvez fique de branco no Réveillon").

Outrora inicia à capella com versos embalados em um efeito meio sacro, como se fosse uma prece. Doce, logo desemboca pra uma daquelas baladas que o Jay sabe fazer tão bem. O vocal limpo e o instrumental versam sobre a urgência em se permanecer vivo, em reconhecer as belezas da vida e a angústia em não se conseguir (ou achar que não) percebê-las. "Derrapei ao tentar controlar / A vida passando por mim / O tempo atropelando / E atropelado está / A cada solavanco / Tanta beleza", são versos que embalam um dos mais belos momentos do disco. Possibilidade (Se Já Não Caibo) parece ter saída de algum disco do Massive Attack, com sua batida eletrônica, quase etérea, em um clima ainda melancólico e melódico que, como o título já diz, esboça a possibilidade de "novos ares" àquele que se exilou de alguma forma. Como Quem Não Quer Nada é outro rockão ácido e crítico à futilidade daqueles que buscam chamar a atenção de alguma forma, seguindo a maré, fazendo um link elegante com a primeira faixa do disco. "Muita calma minha gente / Sempre dá pra piorar / E o pior é massa / Pro idiota idiotizado / Idiotizante idiotizando / Como quem não quer nada". E a gente sabe o quão perigoso este tipo de idiota útil pode ser - qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.



Após a pancadaria, o afago. Hematomas da Teima, a próxima canção, além do título genial, traz talvez a letra mais simples do álbum e ao mesmo tempo significativa. Balada certeira, com os efeitos eletrônicos que tornam tudo ainda mais emocionante, fala sobre a ousadia daqueles que rompem o exílio e partem em busca de seu objetivo - mesmo que isso custe alguns vários riscos no meio do caminho. E é na teimosia dos apaixonados ("Meu caos / Meu cais / E dos males, o melhor") que a temática se exemplifica. Aquele papo de "o que é teu tá guardado", que tanto nos acomoda, não faz sentido algum aqui. Pro autor é o desassossego que nos move ("Não espero pelas voltas que o mundo dá / Se posso dar a volta no mundo até encontrar / O espaço onde estamos juntos / Nosso lugar") e os hematomas resultantes desta busca sempre válida não são fracassos, mas condecorações. Linda, a canção só tem um defeito: ser curta demais, e a vontade que dá é de deixar no repeat por horas. Legítima Defesa talvez seja o único ponto fora da curva aqui. Continuação de Estrela de um Céu Nublado, do álbum Formidável Mundo Cão (de 2007), acaba fazendo mais sentido para quem conhece a canção anterior. No estilo "faroeste caboclo", continua a saga do "herói" em busca de sucesso mas que acaba se metendo em muitos problemas no intuito de ser famoso. Apesar de longa, a faixa possui bons refrões e novamente a participação de Megh Stock, da banda Luxúria, em mais um rock ácido. O encerramento com Baudaluv é simples e singelo, com uma declaração de amor obviamente dedicada ao filho do cantor, combustível catalisador e talvez um dos maiores motivos em romper o exílio auto imposto e se encantar, enfim, com a vida: a felicidade plena em um sorriso que nos ensina a ser melhor a cada dia.

Com apenas dez canções e curta duração (menos de 40 minutos), vale a pena dar uma chance pra este registro. Por ter tantos detalhes, nuances, vale audições repetidas e cuidadosas. Uma obra feita com esmero, relevante em sua crítica e emocionante em seu afeto.

Nota: 8,5.


Na Espera - Orange Is The New Black (Serie)

Os fãs da série original da Netflix Orange Is The New Black certamente estão contando as semanas para poder conferir os novos acontecimentos que envolverão Piper Kerman (Taylor Schilling) e companhia na prisão de Litchfield. A quarta temporada está prevista para estrear no dia 17 de junho na plataforma de streaming, com 13 novos episódios sendo incluídos no catálogo. Por meio do trailer liberado recentemente, é possível perceber que novas presas ingressarão no local, gerando um problema de superpopulação que deve ser administrado na cadeia - e que deverá ser um dos arcos dramáticos. Especialmente quando começar a ocorrer uma certa animosidade entre as veteranas (agora mais unidas e amigas) e as recém chegadas, que parecem ser mais "barra pesada" do que Crazy Eyes (Uzo Aduba) e as demais.


Há um certo clima de suspense no ar e não estão descartadas outras tragédias, como por exemplo, a que envolveu a morte da personagem Vee (Lorraine Toussant), ainda na segunda temporada - e a trilha sonora tensa contribui para criar um clima de instabilidade. Ainda que a série não deixe de investir no humor, com um leque de internas com personalidades tão distintas e interessantes - e com ótimas interpretações -, a atração também tem investido forte em temas de cunho político-social, sendo frequentes os debates envolvendo assuntos como xenofobia, preconceito racial, fanatismo religioso, misoginia, abuso de poder, direitos trabalhistas, aborto e estupro. Ou seja, a barra nunca é aliviada, contrariando aqueles que acham que a série é apenas uma comediazinha boba com um bando de mulheres na prisão. Nós do Picanha, já estamos Na Espera!

terça-feira, 17 de maio de 2016

Novidades em DVD - As Sufragistas (Sufragette)

De: Sarah Gavron. Com Carey Mulligan, Helena Bonham Carter, Meryl Streep e Brendam Gleeson. Drama, Reino Unido, 2015, 106 minutos.

"As mulheres não tem o temperamento calmo, nem o equilíbrio mental para exercitar o julgamento de assuntos políticos. Além disso, elas são bem representadas por pais, irmãos e maridos". Essa frase, que bem poderia ter sido dita na semana passada pelo presidente em exercício Michel Temer, quando da formação de seus ministérios, na verdade abre o filme As Sufragistas (Sufragette), da diretora Sarah Gavron. Ela refere-se ao pensamento dos legisladores - e dos homens em geral - do início do século passado, mais precisamente do ano de 1912, que não facultavam às mulheres britânicas da época o direito de exercer o sufrágio universal. Parece bizarro, mas esse era o pensamento em um período em que elas nasciam com o seu papel já determinado: ser "bela, recatada e do lar". Se bem que, tenho a impressão de ter lido algo parecido com isso, em algum lugar, não faz muitos dias.

Cansadas de mais de 50 anos de manifestações pacíficas, elas resolvem ir literalmente a luta. Por meio da coordenação de um grupo militante - comandado pela líder Emmeline Pankhurst (Streep, com pouco tempo em tela) -, que tem o objetivo de se fazer ouvir, a ordem do dia passam a ser os atos de insubordinação e desobediência, com direito a vidraças quebradas e caixas de correio queimadas. "Você quer que eu respeite a lei? Então torne a lei respeitável", afirma uma das protagonistas. Tudo para tentar chamar a atenção de políticos que possam aderir a causa e contribuir para a promulgação de uma emenda ou mesmo um projeto de Lei que possa garantir o exercício da cidadania a elas. Algo que, inicialmente, tem pouco resultado. Ainda mais em um tribunal recheado de homens velhos interessados apenas em saber qual o jantar feito pela "patroa" no turno da noite.




Entre as militantes está a jovem Maud Watts (Mulligan). Apesar de não possuir nenhuma formação política ela vai percebendo, com o passar do filme, que a causa delas é na verdade a de todas as mulheres. E não deixa de ser interessante o fato de haver, entre as próprias mulheres, aquelas que são contrárias ao movimento (o que faz com que lembremos da certeira frase de Simone de Beauvoir, que dizia que "o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos"). Nesse caso, o silêncio - por mais que este fosse fruto do medo - significava compactuar com um sistema em que as mulheres no mercado de trabalho ganhavam menos que os homens, exerciam suas atividades durante um período maior e ainda sofriam mais com doenças relacionadas ao esforço excessivo. Além de serem assediadas física e moralmente. E constantemente.

Nesse sentido, o maior mérito da obra talvez não esteja no fato de tornar o voto um mero formalismo de conquista para as mulheres - "o que o voto significaria?" pergunta um dos legisladores a Maud, que dá o seu testemunho. E sim apresentá-lo, nem que seja nas entrelinhas, como um instrumento capaz de modificar um sistema que sempre oprimiu, agrediu, ridicularizou, violentou e ignorou a importância das decisões políticas tendo por base a igualdade entre os gêneros. Não fosse isso e talvez jamais tivéssemos uma Presidenta. Ou mesmo mulheres participando de fóruns em associações e instituições, com liderança, se fazendo ouvir. E sendo respeitadas. Ainda que esta conquista tenha sido fruto de muito sangue derramado - e nesse sentido o filme não faz concessões ao mostrar as agressões às militantes, o que talvez explique a classificação indicativa de 16 anos.


Não bastasse a importância do debate, apresentado de maneira elegante pelo roteiro de Abi Morgan, a obra ainda conta com boas interpretações - além de Mulligan, Bonham Carter como outra sufragista, Gleeson como um repulsivo inspetor de polícia e Geoff Bell como o repugnante chefe de uma lavanderia, merecem destaque. A trilha sonora composta por Alexander Desplat também contribui para que a melancolia de algumas sequências não descambe para o melodrama barato. Em uma semana em que o governo Michel Temer acena com a possibilidade de extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, o sinal de alerta deve estar permanentemente ligado. Voltar ao início do século passado por meio de atos totalitários e pouco democráticos seria promover o retrocesso que ninguém deseja.

Nota: 8,8

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Pérolas da Netflix / Cine Baú - Paris, Texas

De: Wim Wenders. Com: Harry Dean Stanton, Natassja Kinski, Dean Stockwell, Aurore Clément e Hunter Carson. Drama, Alemanha/França/Inglaterra, 147 minutos.

Uma imagem aérea de um deserto em algum lugar dos Estados Unidos visualiza um homem que, de boné vermelho, paletó e gravata empoeirados, caminha sem rumo definido. Com a garrafa de água vazia o mesmo, visivelmente emagrecido e com lesões na face maltratada pelo sol, avista um boteco onde, na companhia de um único homem, cairá desmaiado. Encaminhado ao médico, será identificado pelo documento no bolso, cujo contato mais "próximo" será seu irmão Walt, que não o via há quatro anos (Stockwell), e que virá a seu encontro de Los Angeles até o Texas, lugar onde o filme se inicia. Ao tentar resgatar e se comunicar com o irmão Travis (Stanton), cujo estado catatônico o impede de falar e sequer se alimentar, Walt tenta entender o que aconteceu para o seu desaparecimento e consequente fuga da realidade, deixando a esposa Jane (Kinski) e o filho Hunter (Carson) para trás - este último aos cuidados do irmão e sua amável cunhada Anne (Clément), que acabaram por "adotar" o garoto, agora com 7 anos de idade.

A longa viagem até Los Angeles de avião não será possível. Vamos de avião, diz Walt, ao que Travis responde: Vamos tirar os pés do chão, porquê? negando-se veementemente a continuar. A discreta melhora de Travis que, após meia hora de película, começa discretamente a conversar com o irmão - e até a se alimentar - faz com que Walt, um empresário bem sucedido, renove suas esperanças em devolver o irmão a seu lar. Porém, a viagem deveria continuar no mesmo carro com que ambos chegaram até o aeroporto. E é essa sutileza e minimalismo que Wenders explora tão bem neste seu icônico trabalho, embalado pela evocativa trilha composta por Ry Cooder e a belíssima cinematografia. O andamento calmo, lento, revela aos poucos os conflitos internos de nosso personagem principal que, a partir dali, buscará retomar os rumos de sua vida até então dilacerada - e é sintomático que, ao arriscar dirigir, Travis saia da estrada em pleno deserto de Mojave. Carregando consigo uma fotografia de um lote de terra em uma localidade chamada Paris, em pleno deserto do Texas, Travis conta que adquiriu o terreno para construir a sua vida (e felicidade) lá. Ironicamente, Paris (capital da França) é um local luxuoso e sinônimo de romantismo e uma vida plena de realizações, o que, segundo Travis, era motivo de piada por parte de seu pai que sempre utilizava a história para afirmar que conhecera sua esposa em "Paris", lugar onde - segundo Travis - ele teria sido concebido. E pra lá que deseja retornar, às suas origens e um lugar onde o amor tenha sido (ou seja) possível.


Ao chegar em L.A., Travis tenta retomar o contato humano. Incapaz de abraçar a cunhada e o próprio filho, o mesmo tenta lentamente se aproximar de Hunter - que até o momento tem Walt e Anne como seus pais. Sem dormir, Travis passa as noites lavando louça e engraxando os calçados da cunhada, além de observar os aviões e veículos (sinônimo de movimento) de binóculo a uma distância em que o mesmo sinta-se confortável. A partir daí, continua e vagarosa busca de contato com seu filho, e é simbólico que o mesmo venha a usar as botas do irmão (em um número maior e, consequentemente, mais confortável que seus até então sapatos apertados) para buscar Hunter na escola a pé - caminhar e correr sempre foi a fuga terapêutica de nosso personagem principal. O que de início transforma-se em fracasso (o filho prefere voltar para casa de carro), vai tomando outras proporções a medida em que o pai troca suas vestimentas, ficando mais parecido com o "pai adotivo", Walt - o que leva o incrivelmente esperto Hunter a dizer em determinado momento: é legal poder ter dois pais. Caminhando em calçadas separadas, os mesmos se unirão ao pôr-do-sol e que, em determinada noite, culminará no ápice de assistirem juntos imagens em um projetor, da época em que a família estava completa e repleta de momentos felizes na praia, o que fará com que Travis tente retomar o contato com a mãe de seu filho, Jane, que havia abandonado-os há 3 anos de forma a trabalhar e mandar dinheiro para a criação do mesmo.

Eu não poderia ser uma mãe para ele
Era muito jovem
Queria algo que não sabia o que era - Jane

Não tenho medo de altura
Tenho medo de cair - Travis

Ao tentar descobrir o paradeiro de Jane, que a princípio estaria na cidade de Houston, devido ao recibo bancário dos depósitos feitos para a poupança de Hunter, Travis pedirá ao irmão ajuda para a empreitada que os levará (ele e o filho) em uma viagem de carro que aproximará os dois e, quem sabe, reencontrar-se com a ex-esposa e o passado a fim de realizar o seu objetivo até então pouco esclarecido. "O que aconteceu entre vocês?" É o que nos perguntamos o tempo todo, bem como Walt em determinado momento do filme. De aparente simplicidade, é sobre a comunicação (a falta ou a dificuldade de) entre as pessoas que esta magnífica obra trata, bem como a nossa capacidade em destruir aquilo que amamos. E é lindo notar o quanto a fala de Travis e Hunter fica mais fluente e leve, em um primeiro momento utilizando Walkie Talkies (alguém lembra?), no decorrer da viagem. E ao chegar na gigantesca Houston (não por coincidência cidade sede da estação espacial da NASA, que busca descobrir novas formas de vida e explorar possibilidades, em uma metáfora óbvia mas elegante), será improvável a tarefa de chegarem a seus objetivos.


O que interessa é saber que Wenders consegue realizar em Paris, Texas sua obra mais tocante e pungente (embora seja do mesmo autor o clássico Asas do Desejo) que, nos seus momentos finais, consegue desnudar a alma de seus personagens em uma maneira poucas vezes antes vista no cinema. As conversas na cabine, os reencontros, a resignação, a decisão da hora de partir - temas tão humanos e universais - tem um tratamento digno de uma verdadeira obra-prima com seu encerramento ao mesmo tempo doloroso e poético. Uma obra para ser apreciada, revisitada em cada detalhe, enfim... um clássico maravilhoso e exemplar do poder humanístico que a arte tem em nos emocionar.




quarta-feira, 11 de maio de 2016

Picanha.doc - Dossiê Jango

De: Paulo Henrique Fontenelle

Filmes no estilo "Teoria da Conspiração" carecem de um bom volume de registros históricos - sejam eles entrevistas, fotos, matérias jornalísticas ou outros documentos - para que possam ser validados. Especialmente os documentários - que se pretendem atestados fiéis a acontecimentos que eventualmente possam ter verdadeiramente ocorrido. No caso de Dossiê Jango - documentário fundamental de Paulo Henrique Fontenelle -, essa premissa é cumprida com louvor já que, ao final da sessão parece haver apenas uma certeza: a de que o ex-presidente João Goulart não apenas foi deposto em 1964 por meio de um Golpe Militar perpetrado, inclusive, com o apoio dos Estados Unidos. Ele também foi covardemente assassinado por envenenamento em 1976, durante o longo período em que se exilou na Argentina. Diferentemente do que diz a história oficial, que atribui a um ataque cardíaco o seu óbito.

Assim como no caso de Getúlio Vargas e, mais recentemente, Lula e Dilma, Jango era um presidente preocupado em promover políticas - agrárias, educacionais, fiscais - que possibilitassem a inclusão social do maior número possível de brasileiros. Ele olhava para as camadas mais pobres. Preocupava-se em criar o Estatuto do Trabalhador Rural, adotava experiências de ensino tendo por base autores como Paulo Freire. Mas não esquecia do crescimento econômico - tão caro aos golpistas de plantão - fazendo o Brasil crescer mais de 11% ao ano, desde que assumira a presidência em 1961. Até a Copa foi ganha em 1962! Mas Jango, como um democrata que era, era afeito a pluralidade política - era ideia sua estender o voto aos analfabetos e ampliar o número de partidos políticos no Brasil, por exemplo. Ah, e eventualmente ele visitava a China, para estreitar as relações políticas e comerciais. Já fez a conta, né? China, políticas voltadas aos mais humildes... tava feito o banquete para que o golpe se instaurasse.




O filme mostra, a partir de uma impressionante riqueza documental - especialmente de imagens, vídeos, entrevistas e gravações de arquivo - como foi realizado este movimento em toda a América do Sul, que, não chega a surpreender, contou com o apoio e participação até mesmo dos ex-presidentes norte americanos Lyndon Johnson e John Kennedy. Só que o mais estarrecedor é constatar o fato de que a deposição em 1964 não tenha sido o suficiente. Era preciso derramar sangue. Acabar com os "terroristas". Jango - assim como Carlos Lacerda e o próprio ex-presidente Juscelino Kubitschek - representava uma presente e constante possibilidade de contragolpe. De reação. De unificação de uma oposição forte. Era diplomático com a Rússia e com a China. E isso em uma época de Guerra Fria. Além de ser MUITO popular, com intenções de voto que chegavam a ultrapassar os 80%. Era preciso avançar para além da deposição política. E não chega a surpreender, nesse sentido, o fato de Juscelino, Lacerda e Jango terem morrido com apenas nove meses de diferença entre eles. Os três com mortes duvidosas.

A obra traz ainda a tona as estratégias dos governos militares adotadas no período para aniquilar as organizações de esquerda, caso, por exemplo da Operação Condor - que tinha a intenção de matar líderes revolucionários sul-americanos - e outras, como o suspeitíssimo Projeto Andréia - para a elaboração de venenos que possibilitariam levar o maquiavélico plano ao cabo. Relatos de sequestros, acidentes inexplicáveis, mortes escabrosas, exílios, torturas diversas, perseguições e assassinatos, são resgatados a partir de notícias da época, relatórios e entrevistas com jornalistas, escritores, pessoas ligadas a justiça e aos direitos humanos, políticos, historiadores, intelectuais e familiares, em um relato impactante, capaz de fazer corar até mesmo os adeptos do Bolsomito. Sendo os momentos mais surpreendentes e, certamente, controversos de todos, as entrevistas com o ex-fuzileiro naval Mário Barreiro Neira, que teria sido o responsável DIRETO pela morte de Jango.



Em um dia em que assistimos, não sem certa melancolia, a democracia e o Estado de Direito serem ignorados em nosso País, um filme como Dossiê Jango não chega a surpreender, ao mostrar que o golpe, militar ou político, está sempre pronto a reaparecer sob as mais diversas desculpas. "Dilma está implantando uma república bolivariana", "nossa bandeira jamais será vermelha", "abaixo o Foro de São Paulo", "a favor da família de bem brasileira", "a crise que toma conta da economia", "nunca um País foi tão corrupto". Esses são alguns dos mantras de uma certa parcela de uma direita raivosa, que, não por acaso, pede o retorno dos militares ao poder. E tudo com o apoio, assim como naquela época, de alguns setores da mídia. Ignoram-se avanços sociais. Ou o atendimento das demandas das minorias. Ou mesmo a ampliação de acesso a educação, a saúde, a habitação, enfim... a comida, com a saída de milhões de brasileiros da condição de pobreza extrema. É preciso depor essa tenebrosa "ameaça vermelha" que nos assola. Hoje, no Senado, a nossa Presidente é, assim como Jango, assassinada. O retrocesso que isso representa? Bom, é só ler um livro de história. Ou assistir a um documentário como Dossiê Jango. Filme de terror é pouco.

Lançamento de Videoclipe - Silva (Feliz e Ponto)

Eu quis tanto ter você
Quando você não me quis
E agora a gente é feliz e ponto

(Feliz e Ponto - Silva)

Lançado no ano passado, o disco Júpiter, do capixaba Silva, foi certamente o mais descomplicado, simples e direto de sua ainda curta carreira de, até agora, três álbuns. Houve quem torcesse o nariz para o trabalho altamente romântico, de versos, refrões e batidas mais diretas, que não fariam feio no catálogo de sucessos pegajosos de artistas distintos como Sampa Crew e Lulu Santos (não foi o caso do cast do Picanha, já incluiu o registro na relação dos 25 melhores de 2015). Como forma de seguir o processo de divulgação do registro, o cantor lançou na tarde de ontem um clipe para a canção Feliz e Ponto. Dirigido por William Sossai e com participação dos atores Camila Aguiar e Saulo Actep, o vídeo, de paisagens belíssimas em meio a natureza, celebra a beleza e a pluralidade do amor em suas mais variadas formas. Vale conferir!

terça-feira, 10 de maio de 2016

Disco da Semana - Radiohead (A Moon Shaped Pool)

Os amigos mais chegados sabem como funciona para este jornalista e blogueiro o processo de apreciação de um disco - até mesmo para a elaboração das resenhas aqui pro Picanha: são necessárias no mínimo cinco audições do álbum em questão para que haja um entendimento razoável daquilo que o artista quis dizer com o trabalho. Evidentemente existem uma infinidade de registros em que este número é insuficiente, dada a complexidade de elementos, a abrangência sonora e a ampla diversidade de ideias e possibilidades escondidas em cada curva de determinado disco, em cada detalhe instrumental, em cada movimento lírico ou execução vocal. Com o Radiohead sempre foi assim. Não à toa, sempre que escuto discos como Ok Computer (1997) e, especialmente, Kid A (2000), pareço sempre encontrar novos detalhes, sentidos, significados naquilo que estou ouvindo. E isto, indubitavelmente, tem a ver com qualidade artística.

É bem provável que também sejam necessárias uma boa quantidade de audições do novo disco dos ingleses, intitulado A Moon Shaped Pool, para que haja um pleno senso de compreensão das ideias postas em prática por Thom Yorke em companhia. Em uma época em que tudo é tão urgente, instantâneo e imediato, exigir dos ouvintes "audições infinitas" é mais ou menos como colocá-los em uma câmara de tortura em que é executada música clássica 24 horas ao dia (o comparativo não é por acaso). Nesse sentido, é muito provável que os que optarem por encarar a empreitada, sejam plenamente recompensados. E para os birrentos que consideram o Radiohead uma banda chata, cansativa e repetitiva, sempre haverá um bom disco do Coldplay para ser ouvido - e aqui a minha intenção não é dar uma de pretensioso, juro. É mais ou menos como assistir a algum clássico do Bergman ou do Godard: em seu lugar sempre será mais fácil olhar o novo filme do Adam Sandler. Consistem-se em diferentes graus de exigências.




Somente a abertura, com a essencialmente claustrofóbica Burn the Witch, já seria suficiente para elevar A Moon Shaped Pool a um outro patamar. Em meio ao instrumental - exclusividade da London Contemporary Orchestra -  que emula guinchos de lâminas, que quase fazem lembrar a sonoridade concebida por Bernard Hermann em Psicose (1960), temos o vocal absolutamente fantasmagórico de Yorke entoando versos, como, red crosses on wooden doors / and if you float you burn. A tensão é quase palpável e sempre crescente - como se estivéssemos em um filme de suspense em que algo muito grave irá ocorrer. E, juro, faz arrepiar. Como numa jogada de mestre, a segunda canção, Daydreaming, mais parece Radiohead das antigas, com o drama de sempre, os versos existencialistas (e o videoclipe idem) e um instrumental que toma por base a execução de um piano ao mesmo tempo sutil e elegante.

O trabalho segue com diversas canções no melhor estilo da tradição dos ingleses, a grande maioria delas pautada pela melancolia e pela desilusão em relação ao mundo em que se vive. Algo que também pode ser percebido nas letras introspectivas, como em Identikit (Sweet-faced ones with nothing left inside / That we all can love) ou na contemplativa The Numbers (We are of the earth / To her we do return / The future is inside us / It's not somewhere else). As músicas também são bastante variadas no que dizem respeito à execução. Decks Dark, por exemplo, tem efeitinhos eletrônicos e coral eclesiástico ao fundo. Já Ful Stop é minimalista e tensa. Glass Eye, por outro lado, é dominada pelo violino luxuriante, ao passo que Desert Island Disk possui um surpreendente clima country - à John Denver - com direito a violãozinho acústico. Tudo soberbamente realizado, com vocal limpo e produção caprichada.




Ainda assim, é muito provável que parte da crítica e dos fãs se queixem da inclusão de faixas que já vinham, há um bom tempo, sendo executadas em shows do grupo desde o início do milênio. Afinal de contas, o que haveria de novo em ouvir Identikit, Present Tense e, mais especificamente, True Love Waits? Oras, ouvi-las finalmente bem arranjadas e trabalhadas em um disco completo, como sempre sonhou quem gosta da banda. No fim das contas, pode ser que Yorke e companhia tenham exagerado um pouco na jogada de marketing - fazendo desaparecer as suas páginas e contas em redes sociais e disponibilizando teasers e imagens misteriosas antes do lançamento guardado a sete chaves. Bom, mas se tem uma banda que pode fazer isso na atualidade, esta é o Radiohead. E, definitivamente, o lançamento de A Moon Shaped Pool, pelo bem ou pelo mal, já é o acontecimento musical do ano. O que não é pouco.

Nota: 9,0

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Cinema - Truman (Truman)

De: Cesc Gay. Com Ricardo Darín, Javier Cámara, Dolores Fonzi e Eduard Fernández. Comédia dramática, Espanha / Argentina, 2015, 108 minutos.

Truman é daqueles filmes em que, recomenda-se, seja assistido com a caixinha de lenços de papel a tiracolo - especialmente se você for aquele tipo de sujeito que vai as lágrimas até mesmo com o episódio da venda do churros, no seriado Chaves. É uma obra que, entre outros temas, aborda o poder da amizade, a capacidade de exercer a empatia e a importância das sábias decisões, ainda que em momentos difíceis. Parece coisa de autoajuda e, em partes, talvez até seja. Mas é um drama ao mesmo tempo simpático e comovente, singelo e elegante. E ainda tem Ricardo Darín e Javier Cámara como protagonistas, interpretando sujeitos que são melhores amigos. Cámara é Tomás, que vive no Canadá e resolve viajar até Madri para encontrar Julián (Darín), ator argentino radicado na Espanha que foi diagnosticado com um câncer terminal.

Além de tentar convencer Julián a persistir no tratamento, que lhe dará talvez alguns meses a mais de vida, Tomás também ajudará o amigo a tentar encontrar um novo lar para o seu cachorro, o Truman do título. E é só. A trama, em si, é isso. Poderia parecer o negócio mais banal do mundo - e certamente seria - não fosse o talento do grupo de atores que se vê em tela, com destaque para a dupla de protagonistas. E isso pode ser comprovado quando, com apenas cinco minutos de projeção, percebemos já estar torcendo para que ambos, cada um a sua maneira, tenham o melhor desfecho possível. E, a meu ver, "torcer" pelos personagens que assistimos, qualquer que seja o tipo e o estilo de película apreciada, consiste em condição fundamental da qualidade daquilo que assistimos. Se nos preocupamos com os personagens, significa que nos importamos o suficiente com eles, afinal.


Cesc Gay - responsável também pelo simpático O Que Os Homens Falam (2012) - recheia o filme com imagens dos dois amigos circulando em meio a consultórios médicos e hospitais, mas também por bares, ruas e casas de Madri, onde se empenham em tentar encontrar um lar digno para Truman. Ao invés de tentar emocionar o espectador mostrando imagens da dor que certamente vive Julián em seus últimos dias - ou mesmo os efeitos colaterais acarretados pela doença em si - o diretor comove por meio de sequências orgânicas e absolutamente naturalistas da relação entre os dois amigos. Nesse sentido, é praticamente impossível não ficar com os olhos marejados quando ambos, após uma leve briga, mencionam a principal virtude que pode ser encontrada no melhor amigo. "Tudo o que você fez por mim foi sem jamais esperar algo de volta", ressalta Julián. Que ouve de Tomás algo sobre a sua insuspeitável valentia.

Da mesma forma, não deixa de ser tocante a busca de ambos por aquela que será a nova morada do amigo canino, após a morte do dono. Ou mesmo os momentos envolvendo o rápido encontro com o filho Nico (Oriol Pla), em Amsterdam, ocasião em que gestos e olhares falam muito mais do que palavras. "Que mania tem os outros de fazer as pessoas sofrerem", argumenta Julián com o melhor amigo, após se negar a revelar ao jovem o fato de que está próximo da morte. Ainda que o tema seja pesado, a obra não deixa de ter momentos mais leves e divertidos - especialmente no diálogo dos protagonistas - e que servem como um excelente contraponto para o drama que se apresenta. E isso feito da forma mais natural possível, sem qualquer tipo de forçação de barra. Com fotografia eficiente e trilha sonora adequada ao que se vê, Truman se apresenta como uma excelente alternativa para aqueles que procuram histórias que sejam envolventes, ainda que simples.

Nota: 8,3


sábado, 7 de maio de 2016

Lançamento de Videoclipe - Emicida (Mãe)

Até meu jeito é o dela
Amor cego, escutando com o coração a luz do peito dela
Descreve o efeito dela: breve, intenso, imenso
Ao ponto de agradecer até os defeito dela
Esses dias achei na minha caligrafia tua letra
E as lágrima molha a caneta
Desafia, vai dar mó treta
Quando disser que vi Deus
Ele era uma mulher preta

(Mãe - Emicida)

É absolutamente IMPOSSÍVEL não se emocionar com o clipe de Mãe, lançado ontem (06/05) pelo rapper paulistano Emicida - e que certamente funcionará como uma bela homenagem não apenas para a sua mãe, Dona Jacira, que participa do vídeo, mas para todas as mães do Brasil. A canção abre o mais recente trabalho do músico, intitulado Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa - que, com toda a justiça do mundo, foi eleito pela equipe do Picanha o melhor disco nacional de 2015. A letra maravilhosa, examina o contexto social em que crescem as crianças de periferia, mas sem deixar de lado uma boa dose de autocrítica. O vídeo, dirigido e roteirizado por Levi Viera, equilibra um certo clima nostálgico, bucólico, com a realidade dura das grandes cidades. É simplesmente demais! Vale a pena clicar e conferir.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Lançamento de Videoclipe - Jonas Sá (Gigolô)

Divertido, sacana, pornográfico! Estes são apenas alguns adjetivos que podem ser atribuídos a Blam Blam!, disco lançado no ano passado pelo carioca Jonas Sá - e que com justiça fez parte da nossa relação com os 25 principais registros de 2015. Como forma de seguir divulgando o trabalho, o cantor - que também atua como compositor e produtor - lançou um clipe para a ótima Gigolô. O vídeo, gravado e dirigido pelo próprio artista, em parceria com Domingos Guimaraens apresenta um sujeito que vaga por bares e casas noturnas da cidade, em busca do prazer hedonista e da satisfação sexual instantânea. Tudo pontuado por um certo clima retrô - como se a filmagem fosse uma antiga gravação em VHS - com figurinos e cenários ultrapassados, em meio a letra safada e o instrumental ao estilo programa de auditório dos anos 80. Clica e confere que é simplesmente imperdível!

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Na Espera - Radiohead (Disco)

Poucos lançamentos têm gerado tanta expectativa nesse 2016, quanto o próximo registro dos ingleses do Radiohead. E a cada dia que passa, a impressão que se tem é de se estar cada vez mais perto do tão aguardado momento da chegada do sucessor de The King Of Limbs (2011). Mas ocorre que a palavra de ordem tem sido "mistério", no que diz respeito a Thom Yorke e companhia. Por exemplo, não há data de lançamento do trabalho, algo que os artistas tradicionalmente indicam, até como forma de promover o futuro álbum. Lista de músicas? Capa? Nome do registro? Nada. Pra complicar ainda mais, os ingleses resolveram deletar, na última semana, todas as suas contas em redes sociais. Oh céus!


Mas como nem tudo são trevas, nessa semana, começaram a aparecer as primeiras pistas do que vem por aí. Primeiro, foram divulgados dois teasers em uma nova conta do Instagram, publicados na segunda-feira (02/05). Os vídeos - esquisitíssimos, como não poderia deixar de ser - mostravam um pássaro em animação piando em loop e uma espécie de ritual em que homens mascarados pareciam queimar uma bruxa. Foi somente com o lançamento do vídeo em stop motion de Burn the Witch - dirigido por Chris Hopewell - nesta terça-feira (03/05), que parte do mistério foi sanado! Este é o primeiro single daquele que deverá ser o novo trabalho dos caras. Os segredos continuam mantidos a sete chaves. Mas a espetacular canção já permite se ter uma ideia do que vem pela frente. Já assistiu? Clica e confere, que vale muito a pena!



terça-feira, 3 de maio de 2016

Cinema: Prova de Coragem

De: Roberto Gervitz. Com: Armando Babaioff, Mariana Ximenes, Áurea Maranhão e Daniel Volpi. Drama, Brasil, 2016, 90 minutos.

Há algo de heróico em vencer a si mesmo.

Esta é a frase do release oficial do filme Prova de Coragem, produção dirigida por Roberto Gervitz (Feliz Ano Velho, Jogo Subterrâneo) que adapta para o cinema o livro Mãos de Cavalo, do escritor Daniel Galera (autor, dentre outros, de Até o Dia em Que o Cão Morreu - que também virou filme nas mãos do diretor Beto Brant, intitulado Cão Sem Dono). Já sou íntimo do livro (e fã do escritor) há tempos, e lembro muito bem de quando, terminada a leitura do Mãos..., eu já conseguia (ou pelo menos sonhava) ver aquela história passando na telona alguns anos dali. Apesar do livro narrar muito os conflitos interiores vividos pelas personagens, havia um quê de ação, movimento, que poderia ser transformado em roteiro - e me é sabido que o diretor demorou aproximadamente 3 anos para conclui-lo. E eis que surpreendentemente volto a me deparar com esta narrativa a qual, além de respeitar a história original, não faz feio em representar o riquíssimo cinema nacional em um filme tocante e que acrescenta novas sutilezas ao nosso olhar (afinal, o cinema é acima de tudo uma arte visual) que fazem esta adaptação altamente recompensante para quem a assiste - além de gerar diversas interpretações, dependendo da experiência pessoal de cada espectador.

A vida é feita de escolhas...

... diz um pôster de divulgação do filme. Pode parecer clichê, e a frase realmente é incensada - lembro de, sei lá, na adolescência ter feito um poema e uma música com esse título... enfim, divago. Mas a verdade é que, alem de simples e abrangente, isto resume muita coisa. A palavra escolha será o ponto de conflito entre todas personagens da obra, bem como as consequências resultantes destas ações. E não deixa de ser maluco constatar que, nas nossas constantes escolhas (mesmo que inconscientes) e com uma "ajuda" de probabilidades, tempo, espaço, acaso, estas acontecem e podem mudar completamente nossas vidas - com as alegrias, riscos e arrependimentos no pacote.


O personagem principal aqui é Hermano (Babaioff), médico cirurgião e casado com a artista plástica Adri (Ximenes), que está trabalhando angustiadamente em uma obra com prazo definido para a exposição que acontecerá na próxima Bienal dali alguns meses. Como toda artista, Adri (interpretada de maneira convincente e encantadora por Ximenes) é inquieta, questionadora, enfim, quase o oposto de seu marido, que é pacato, gentil, e dedicado em ajudar ao próximo. Diferenças estas que serão amplificadas ainda mais quando determinados acontecimentos farão com que estes lidem com seus próprios demônios interiores ao culminar em um momento crítico na vida do casal - e que prometo não revelar para não estragar parte da história para quem não assistiu. Você não consegue enxergar à frente do seu nariz! é uma frase icônica das DR's, e não deixa de ser sintomática aqui também. Como próprio explicado pelo diretor, um dos principais questionamentos da obra é justamente a dificuldade das pessoas traçarem projetos em conjunto em um mundo tão individualista quanto o nosso. E realmente é isso: com redes sociais, o hedonismo, a sensação de possibilidades mil (que, ao mesmo tempo em que estimula nos anseia), em um ambiente tão volátil e superficial, estamos preparados realmente para nos doar ao outro?

Apesar de Hermano ter aquele jeitão responsável, boa praça, há algo dentro de si que o mesmo ainda não conseguiu superar, e que acaba extravasando para áreas mais físicas (o andar de bicicleta, o desafio de querer escalar com o amigo - o carismático Renan (Volpi) - a montanha de alto risco Terra do Fogo, mesmo contrário ao apelo de sua esposa). E se tem algo que o filme mostra muito bem é o salto temporal de eventos presentes ao período pré-adolescente de "Mãos de Cavalo" (como Hermano era conhecido na escola) e seus amigos (como não lembrar do Bonobo e o Chileno, por exemplo?), em um excelente trabalho do elenco jovem - que deixará marcas profundas e será fundamental para o entendimento das motivações responsáveis pelos eventos presentes na vida do Hermano adulto. E para completar há ainda o encontro com Naiara (Maranhão), sua primeira paixão de adolescência, para que sentimentos até então guardados venham à tona - algo que é retratado com muita sensibilidade pelo par de atores - juntamente com segredos e mágoas de ambas as partes.


Em um momento decisivo, nosso personagem terá de tomar as suas decisões e lidar com outras que não foram suas, e esta poderá ser a sua real prova de coragem tão esperada por todos estes anos em busca de uma possível redenção. Não podemos também deixar de falar de Adri e seus desejos, suas angústias travestidas em arte. E é incrível notar que a ideia inspiradora para seu trabalho tenha vindo justamente de um passeio junto a seu marido na qual a mesma parou - acompanhada por Hermano - para fotografar uma árvore de raízes gigantes, linda, mas com folhas frageis e praticamente tomada pelos cupins, cujo acesso também era limitado por cercas de metal - uma imagem altamente evocativa. Habilidades como esta, de transformar sentimentos em imagens, são um dos grandes méritos desta produção: seja nas águas turbulentas do rio no diálogo entre Hermano e Naiara, ou na destruição do quintal "à facão" (pra usar uma expressão bem gauchesca, o filme se passa em Porto Alegre) por Adri, além de símbolos como sangue, marcas físicas, tombos, acidentes, folhas secas sendo ventadas ao ar, velocidade, a trilha sonora e a edição, tudo isso imprime uma visceralidade surpreendente a uma obra que trata de temas tão íntimos, complexos e humanos.

E posso dizer que adoraria ver uma exposição da Adri na próxima Bienal - se isto for possível, claro. Porque afinal nunca sabemos o que pode acontecer no próximo segundo, pois sempre há um momento de aceite, desistência ou mágoa gerada que trará outro de felicidade. Mas para isso é preciso coragem. De tentar, de arriscar. Hermano sabe que de alguma forma perderá, mas que a nossa busca está naquilo que trará sentido e nos preencherá do vazio (cada um à sua maneira) de uma existência tão cheia de angústias e traumas e tão pobre de uma vida plena - algo que a sublime imagem final consegue ilustrar de forma simples, natural e extremamente comovente.


Prova de Coragem estreia oficialmente dia 05 de Maio nos cinemas.


Disco da Semana - Travis (Everything At Once)

O Travis é uma daquelas bandas que alguns setores da crítica amam odiar, pelos motivos mais variados. Alguns dizem que parece uma cópia barata do U2. Outros atacam o baixo potencial criativo (oi?) de Fran Healy e companhia - mais especificamente as suas letras "bobinhas". Há quem diga que a sonoridade é óbvia ou repetitiva. Por todo esse contexto, para nós do Picanha, o sentimento é um tanto difuso. A cada novo lançamento, parece que estamos sempre dispostos a apontar qual será o mais gritante defeito na sonoridade dos escoceses. Mas como achar problema, quando a banda solta um registro absolutamente simpático - o oitavo da carreira - equilibrando a tradição das baladas à Travis, com os rockões de guitarrinhas características e com um joie de vivre que vai para além da capa multicolorida que emula a urgência da vida moderna - e no título Everything At Once - e dos clipes megadivertidos?

Sério, não tem como não gostar. Evidentemente que, hoje em dia, existem centenas de bandas hypadas mundo afora, realizando trabalhos de grande complexidade, misturando estilos variados, heterogêneos, climáticos. As publicações do segmento ficam excitadíssimas. Nós também ficamos, claro, não vamos negar. Mas escutar um registro como este Everything At Once é quase como voltar para a casa dos pais depois de uma temporada longe. Ou para junto dos amigos da época do Ensino Médio, mas aqueles que a gente efetivamente amava, num daqueles improváveis reencontros. Há um sabor familiar naquilo tudo que você já vivenciou na sua adolescência - ou mesmo pós-adolescência - de quem deve decidir qual o caminho a seguir na vida adulta. É um conforto que te afaga, te aconchega, te coloca diante de signos facilmente reconhecíveis, de refrões já absorvidos e que agora são reembalados em um novo formato.



Hoje em dia, por exemplo, são poucas as bandas que investem forte no videoclipe. E o Travis sempre teve essa característica - e basta lembrar como foram marcantes aqueles que acompanhavam canções como Sing, Side, My Eyes, Re-Offender e Coming Around, entre outras. Pois para divulgar o recém lançado registro, o grupo manteve o expediente, com os primeiros singles - a divertidíssima e saudosista Magnificent Time e robusta 3 Miles High, que não faria feio em The Man Who (1999) - contando com clipes absolutamente simpáticos, leves, afáveis. Fran Healy, que desde o lançamento de Where You Stand (2013) - outro ótimo trabalho - ultrapassou a marca dos 40 anos, canta, dança, sorri e sacoleja (e ainda faz caretas) como sempre fez e como se estivesse em início de carreira - a despeito do visual tiozão da meia idade. Isso é respeito aos fãs. E a quem gosta do quarteto.

Então, se quando você ouve falar sobre um novo trabalho de uma banda que já está na estrada há quase 20 anos você fica de "mimimi, a época deles já passou", pode ir parando. As músicas são gostosas e assobiáveis, ainda que, é preciso que se diga, nada homogêneas - o que definitivamente não compromete. A já citada Magnificent Time é circense, alegre, colorida. O mesmo vale para Radio Song, que chega a ter uns efeitinhos que remetem (pasme) aos gaúchos da Bidê Ou Balde (algo nada proposital, certamente). Por outro lado há também espaço para a introspecção, especialmente no lado B, com a potente Idlewild - ao lado da cantora Josephine Oniyama - e em Strangers On A Train, que fecha o disco de modo grandioso, ao estilo do U2 nas melhores fases. E se viver é urgente, é uma coisa pra ontem e que não podemos ficar sem, que seja com música boa. O Travis tem feito sua parte.

Nota: 7,9