quarta-feira, 31 de março de 2021

Picanha.doc - Time (Time)

De: Garrett Bradley. Documentário / Drama, EUA, 2020, 81 minutos.

Que o sistema carcerário norte-americano possui uma sanha punitivista especialmente voltada aos negros e aos pobres não chega a ser exatamente uma novidade - e documentários impactantes como o ótimo A 13ª Emenda (2016) comprovam este fato com dados. E, como se fosse um complemento da obra dirigida por Ava DuVernay, o hipnótico documentário Time (Time) é daqueles que mostram a predisposição do Estado não em reabilitar um "bandido" (e aqui eu me obrigo a colocar o termo entre aspas) e sim torná-lo um mero objeto que permanecerá sob seu controle, sistematicamente, até que um grupo de homens - provavelmente brancos - decidam arbitrariamente que este ou aquele sujeito está recuperado. Pronto pra se reintegrar à sociedade. E, posto tudo isso, eu pergunto a vocês, leitores do Picanha: qual seria o tempo adequado de prisão para um homem desesperado que praticou o crime de assalto à mão armada a um banco? Cinco anos? Dez? Trinta? Prisão Perpétua? Cadeira elétrica?

Aqui no Brasil é bem conhecida a história de Rafael Braga, um trabalhador negro que foi preso em 2013 pelo crime de portar consigo uma garrafa de Pinho Sol - em meio aos protestos que ocorriam naquele ano, o produto de limpeza foi confundido com um coquetel molotov. A pena? Onze anos de cadeia - uma solução ordinariamente maniqueísta, que apenas evidencia o racismo estrutural da justiça e da sociedade como um todo. Nos Estados Unidos, o crime aconteceu verdadeiramente e jamais é negado. Desesperados, com quatro filhos para criar à época, e com muitas dívidas relacionadas a loja que mantinham, o casal Sybil e Robert Richardson resolve assaltar um banco, na cidade de Shreveport, no Estado da Louisiana. Ambos acabam presos. Sybil consegue um acordo que lhe liberta três anos e meio depois. Já Robert é condenado a 60 anos de prisão, sem possibilidade de regressão da pena para liberdade condicional. Sessenta anos de prisão. Por um assalto. A um banco. Um pai de família. Desesperado. 

E antes que a galera do "bandido bom é bandido morto" apareça por aqui pra reafirmar seu ódio, seu preconceito e sua intolerância, é importante frisar que o documentário soberbamente dirigido pela Garret Bradley jamais exime os seus protagonistas da culpa - e do trauma gerado na famílias, nos amigos e na sociedade em que vivem. Sim, houve um crime fruto do desespero - e eu nem vou colocar em discussão o fato de o casal se sentir completamente desassistido, o que lhes obriga a tentar medidas extremas -, mas o que está em debate aqui é o exagero ou, no mínimo, a discrepância de um sistema carcerário que exaure seus detentos, obrigando-lhe a percorrer um caminho ardoroso até ter de volta a liberdade. Ava DuVernay mostrava que, de alguma forma, a escravidão só mudou a sua tipologia. Garrett Bradley nos apresenta um "case" de sucesso.

E que case, senhoras e senhores! Com uma montagem belíssima e uma trilha sonora envolvente, permanente, inebriante, o documentário utiliza um vasto material de arquivo para mostrar como Sybil deu a volta por cima para criar todos os seis filhos - dois gerados durante a prisão de Robert -, se tornando uma empresária de sucesso e uma palestrante ainda melhor. Adotando Fox Rich como seu novo nome, a película gira em torno dessa resiliente protagonista, bem como de seus esforços para seguir a vida pessoal em frente - mesmo diante das indefinições sobre o futuro do marido (e as cenas em que ela aguarda pacientemente por retornos telefônicos de advogados, escritórios e outros entes jurídicos, são daquelas que geram revolta e ansiedade em igual medida). Favorita ao Oscar em sua categoria, a obra está disponível no serviço de streaming da Amazon Prime e nos faz pensar o tempo todo sobre passagem do tempo, escolhas, memória e como as nossas decisões determinam aquilo que seremos em nossas vidas. Um filmaço que vale cada um de seus apenas 80 minutos.

terça-feira, 30 de março de 2021

Curta Um Curta - Genius Loci

Extraída do latim, a expressão Genius loci refere-se ao "espírito do lugar" - ou, no caso, ao conjunto de características sócio-culturais, arquitetônicas, de linguagem, de hábitos, que caracterizam um ambiente, um terreno ou uma cidade, indicando seu caráter. É objeto de culto entre os romanos e também ajuda a compreender alguns dos significados por trás da enigmática animação do jovem diretor francês Adrien Marigeau, que também recebe o título de Genius Loci. Uma das indicadas ao Oscar na categoria Animação em Curta-Metragem, a obra de pouco mais de quinze minutos é um vertiginoso mergulho pela metrópole. Nela, a jovem Reine (Nadia Moussa) sai de casa após um desentendimento em meio a noite, se defrontando com o caos urbano, a violência, a incerteza e o esfacelamento das relações humanas e sociais. Estilizado, o filme brinca com a geometria dos lugares, dos corpos e até das mentes, entregando uma narrativa de fluidez tão abstrata quanto bela. Vale demais conferir!

Novidades no Now/VOD - Filhos de Istambul (Kaggitan Hayatlar)

De: Can Ulkay. Com Çağatay Ulusoy, Emir Ali Dogrul e Turgay Tanülkü. Drama, Turquia, 2021, 96 minutos.

Talvez não seja exagero dizer que a Netflix talvez tenha oficializado de vez o movimento que eu, aqui, me atrevo a chamar de Novo Cinema Turco, dada a grande quantidade de obras do País que estreiam na plataforma, muitos deles com um bom apelo de público. Nesse sentido, filmes de caráter meio universal passam só de raspão por questões políticas e sociais locais, o que faz com que os cinéfilos de todo o globo se sintam representados por aquilo que assistem. Em muitos casos trata-se de dramas meio novelescos, com reviravoltas emocionantes, realizados com grande apuro técnico - seja com o uso de uma fotografia viva, ângulos de câmera modernos e desenho de produção elegante. Foi este o caso, por exemplo, dos incensados Milagre na Cela 7 (2019) e Mucize (2015). O expediente se repete agora com o recente Filhos de Istambul (Kaggitan Hayatlar). Sim, o País asiático é desde sempre um polo a ser explorado e a plataforma de streaming sabe disso. Assim como sabe que nem só de Fatih Akin e Nuri Bilge Ceylan - e seus filmes de festivais -, vive o cinéfilo médio.

Só que o problema da grande abundância da oferta de obras meio genéricas deste ou daquele País acaba sendo o caráter meio derivativo destas. Se por um lado o cinema pungente e político do já citado Akin pode afugentar o fã de cinema médio, por outro, obras excessivamente palatáveis e não muito inovadoras podem soar apenas escapistas - ou carentes de "vigor". Vejam bem, não é que a obra do diretor Can Ulkay seja ruim. Bem longe disso. Aliás, ela tem uma série de bons e inspiradores momentos, ainda que um olhar mais atento seja o suficiente para que desvendemos os segredos por trás do catador de papel que decide ajudar um garoto de cerca de oito anos que mora nas ruas. A meu ver, o grande problema de uma obra como esta reside em sua crise de identidade. Ao tentar ser excessivamente global, peca por esquecer as questões locais. E, o pior: em alguns instantes ainda torna tudo mais complicado ao romantizar a pobreza ou a vida de abandono.

Mas, enfim, posso também só estar sendo ranzinza e, ok, quanto a isso. O filme não me pegou tanto e não há problemas, já que cada um viverá a experiência cinematográfica a sua maneira. Sobre a trama em si, eu já pincelei ela ali no segundo parágrafo: o protagonista é Mehmet (Çağatay Ulusoy), um sujeito de trinta e poucos anos que coordena um coletivo de catadores de papelão e que está juntando dinheiro para conseguir um transplante de rim - aliás, ele sofre bastante com isso e seu comportamento meio autodestrutivo não parece ajudar muito. Em uma das rotinas de coletas, quase ao final do expediente, ele percebe que dentro de um carrinho de um de seus catadores, ficou o já citado menino, que recebe o nome de Ali (Emir Ali Dogrul). Com medo de retornar para casa onde apanha do padrasto e tem uma relação conturbada com a mãe, o pequeno acaba sendo "adotado" por Mehmet. E será essa nova vida adaptada que acompanharemos.

Com grande apuro técnico, o filme se vale de ótimos ângulos de câmera, de uma trilha sonora bem pontuada e de uma montagem enérgica para conferir certo dinamismo à narrativa. A paleta de cores bastante florida dos dias - até as cenas de becos com roupas penduradas em meio à metrópole formam uma composição agradável -, confere um caráter meio primaveril ao projeto (mesmo nas cenas tensas em que há fugas ou brigas os tons são quentes, vivos). Só que a narrativa em si é uma repetição de atos em que Ali sente o peso do abandono permanente - e o medo de, novamente, em sua nova "família" ser deixado de lado. E lá pelas tantas o que era uma obra pra comover, vai se tornando um mero aborrecimento. O terço final surge oxigenado, muito mais pelo trabalho de fotografia, edição e trilha sonora (sério, o padrão é quase hollywoodiano) do que pelos acontecimentos em si. O que não tira o mérito dos esforços de produção cinematográfica fora dos grandes polos.

Nota: 5,5

segunda-feira, 29 de março de 2021

Novidades no Now/VOD - Loucura de Amor (Loco Por Ella)

De: Dani de la Orden. Com Álvaro Cervantes, Susana Abaitua, Luis Zahera e Aixa Villagrán. Romance / Comédia. Espanha, 2021, 102 minutos.

“Quem quer dá um jeito, quem não quer, arruma uma desculpa!”
“Não corra atrás das borboletas, cuide do seu jardim e elas virão até você!”
“Foco, força e fé”

Você já deve ter escutado as frases acima de algum amigo, coach ou influenciador. Todo mundo conhece o tipo, pode ser o/a amigo/a good vibes, o day trader que promete um enriquecimento mágico em poucos meses ou algum guru do marketing digital. Todos perfis tão rasos, tão genérico-simplistas e com argumentos tão ficcionais que parecem saídos diretamente das telas do cinema ou do seu serviço de streaming predileto. Quando nos deparamos com essas figuras, geralmente em propagandas ou anúncios indesejados, ato contínuo fechamos o vídeo ou rolamos nossa tela o mais rápido possível. Contudo, às vezes, damos aquela espiadinha, uma breve e desiludida chance para o conteúdo “quântico” ou “estratégico”, afinal, somos curiosos e, também, nem tudo precisa ser tão ruim. Um título apelativo, um bem-apessoado qualquer, uma música interessante e um jogo de luzes já são o suficiente para chamar nossa atenção. É assim que também somos fisgados por grande parte dos trailers cinematográficos de filmes duvidosos. E foi assim, como num rompante otimista, que decidi dar uma chance a Loucura de Amor (Loco por Ella), filme produzido e disponível no catálogo da Netflix.

E é no melhor estilo Fiuk do BBB 21 que ficamos conhecendo Adri (Álvaro Cervantes), o curioso e equivocado protagonista da trama. O jovem adulto, solteirão, bonito e dono daquele papo clichê digno dos melhores esquerdomachos disponíveis, encontra a misteriosa Carla (Susana Abaitua) em um bar e, depois de uma noite intensa, com direito à invasão de casamento alheio e ocupação indevida de quarto de núpcias, é deixado na calçada somente com a roupa do corpo e um coração absolutamente apaixonado pela mulher que acabou de conhecer. A sequência é o que se espera de todo homem preso na adolescência: uma busca implacável e totalmente inconsequente pela moça desconhecida. Adri finalmente encontra Carla em uma situação, digamos, bastante peculiar, em um hospital psiquiátrico, em meio ao tratamento de Transtorno Bipolar. Então, em um acesso de romantismo desmedido, resolve internar- se e acaba paciente do lugar junto com a recém-amada. Há, a partir de então, mais uma sequência de estereótipos. Adri recusa-se a participar da rotina do hospital, jurando aos médicos e enfermeiros não estar com problemas, pois tudo fora apenas uma estratégia maluca para alcançar seus objetivos (que descobrimos não ser somente a busca pelo verdadeiro amor). 


A trama parece seguir para a mais completa repetição de clichês, no melhor estilo dos enlatados americanos, quando somos apresentados aos coadjuvantes da narrativa, todos pacientes do local, cada um com seu drama particular e com suas dificuldades. É bonita e respeitosa a forma como são abordados os problemas que observamos. Conhecemos, por exemplo, Marta (Aixa Villagrá), mulher com Síndrome de Tourette que tenta, de modo muito desajustado, conquistar outro jovem com Transtorno Obsessivo Compulsivo, gerando cenas engraçadas e sensíveis. Nos emocionamos com Saúl (Luis Zahera), que mente à filha, para que ela não saiba que o pai está “louco” e assim possa se orgulhar dele. É difícil não gostar daquelas pessoas. Todas elas nos causam profunda empatia e, aos poucos, a história de Adri e Carla vai ganhando, e por vezes até sendo deixada em segundo plano, cores e tons ora coloridos, ora obscuros, com a percepção do jovem apaixonado que distúrbios psicológicos não são “falta de vontade”, ou “maluquice”, “falta de Deus” ou “fraqueza”.

Este momento de entendimento, de choque de realidade, teria sido hora perfeita para o filme acabar com uma mensagem menos comum. Mas todo conteúdo que tem cara de clichê, jeito de clichê e parece muito com um clichê é, no final das contas, por mais que se esforce para ser diferente, um grande clichê. Apesar da história do romance óbvio, a obra tem ótimos momentos, especialmente com nossos amigos coadjuvantes e seus instantes curiosos, engraçados e sensíveis. O trailer colorido e intenso, o nome apelativo, a trilha marcante só comprovaram que o óbvio também pode ser bom, poderia ser melhor, mas ainda assim permanece agradável e divertido. Vale o otimismo.  

Nota: 5,5


sexta-feira, 26 de março de 2021

Novidades em Streaming - Rico Dalasam (Disco)

Vamos combinar que só há um porém no disco Dolores Dala Guardião do Alívio, do rapper paulista Rico Dalasam: ele acaba muito rápido. Figurinha praticamente certa nas listas de melhores nacionais do final desse ano, o registro de pouco mais de 26 minutos é daqueles de deixar no repeat em loop quase infinito. Resultado de um processo que ele mesmo classificou como "tempo de ausência" - uma espécie de hiato meio forçado -, o trabalho produzido por Mahal Pita e Dinho Souza condensa onze faixas que formam um amálgama de experiências pessoais, sensoriais e bastante intimistas. Alternando momentos reflexivos, com outros festivos, o álbum funciona como uma espécie grito de alívio de um artista que provavelmente se sentia pressionado em sua carreira. "Trazer essa dualidade de dor e alívio é pra mim, sem dúvida, o único jeito possível de me ver outra vez fazendo música", afirmou o músico em entrevista ao site Papel Pop. Peça central do registro, a ótima Braille tem letra divertida e uma batida com flow viciante, envolvente. Já a derradeira Estrangeiro é daquelas que te pega pela mão e conforta, enquanto o refrão à moda de um trap gruda de maneira hipnótica (Me sentindo estrangeiro amor / O trato era: seus braços ser meu travesseiro, amor). Irresistível.



Novidades no Now/VOD - O Mistério do Poço (En El Pozo)

De: Bernardo e Rafael Antonaccio. Com Paula Silva, Augusto Gordillo, Luis Pazos e Rafael Beltrán. Drama / Suspense, Uruguai, 2018, 82 minutos.

O Mistério do Poço (En El Pozo) foi a tentativa mais ou menos bem sucedida do Uruguai, de fazer um daqueles filmes em que um grupo aleatório de adolescentes se reúne em algum lugar isolado - muitas vezes o cenário ideal para que coisas estranhas comecem a acontecer. A gente já viu esse tipo de obra milhares de vezes em Hollywood. Aliás, no cinema de terror de baixo orçamento, esse costuma ser um filão que tem seu público cativo e, não quero parecer presunçoso, mas creio que dificilmente seria atraído para um projeto do tipo, se não fosse um filme sul-americano. Afinal de contas, em espanhol, alguns clichês do gênero "drama de suspense juvenil que vai descambar para o terror e para a violência", poderiam ser melhor aceitos. E até acho que é o que acontece aqui, ainda que a empatia pelos personagens que acompanhamos em cena beire mais ou menos a ZERO (o que significa que, lá pelas tantas, pouco importa o caos) e muitas soluções soem estupidamente irreais. Enfim, mas é o que temos.

Quando o filme começa, somos rapidamente apresentados a um coletivo de amigos que não parece assim tão conectado - e é justamente as diferenças que surgirão, aqui e ali, que pontuarão alguns dos melhores momentos da narrativa. Alicia (Paula Silva) é a jovem que está visitando a família no povoado de Suárez, distante da capital, por causa do falecimento da sua avó. Junto dela, o namorado Bruno (Augusto Gordillo) é o deslocado sujeito de classe média de ares elitistas, que se vangloria por poder comer sushi, que não gosta de excesso de barulho, e que mantém um discurso progressista provavelmente meio de fachada. O quarteto é completado pela dupla Tola (Luis Pazos) e Tincho (Rafael Beltrán), este último com algum tipo de interesse em Alicia, que talvez fosse uma namorada de infância. O cenário: uma pedreira desértica abandonada que fica a dez quilômetros da "civilização", que acabou por formar uma espécie de piscina natural, após anos de inatividade.

Como balneário improvisado, o local é o escolhido pelos jovens para um domingo de sol, de churrasco e de cervejada. Mas a vertigem ocasionada pela excêntrica sensação de isolamento, aumentada pelo calor escaldante, pelo zumbido interminável de insetos, pelos cenários rochosos e inóspitos, transformará o que era pra ser um tranquilo encontro em uma trama tensa e trágica, especialmente após algumas verdades entre eles começarem a vir à tona. Como espectador, confesso que me frustrou um pouco o caráter meio oco dos diálogos - não que jovens na faixa de vinte anos tenham muita profundidade. Mas pouco se aproveita entre uma sacanagem de quinta série aqui, uma piada de mal gosto acolá e algumas doses de masculinidade frágil prontinha pra emergirem em forma de ataques e de agressões. Até mesmo um simples jogo de futebol - um bate bola que nem parece saído do País que nos deu Suárez e Cavani -, é motivo de uma esquisitíssima discussão.

De qualquer maneira, esta é a forma que a dupla de diretores Bernardo e Rafael Antonaccio encontrou para ir ampliando a tensão, conforme aquele dia de calor caudalosamente sufocante passa. De alguma forma isso dá certo em alguns momentos. Por exemplo, em certo momento, os amigos pulam de uma barragem para um mergulho em águas mais profundas e se deparam com a presença de ferros de construção sob as águas. E a escolha de um personagem, especificamente neste momento, nos deixa bastante agoniados. No mais a película avança de uma forma que sabemos que as coisas, ali adiante, sairão do controle. Um carro que fica sem bateria. A noite que se avizinha. Uma faca que não deveria existir. É o filme de jovens estúpidos fazendo coisas estúpidas. E que, sinceramente, às vezes nos deixa bastante desesperançosos. Especialmente quando constatamos que aqueles que ali assistimos, poderiam existir de verdade. No mais, vale pelo arrojo uruguaio em sair do cinema crítico/social, que é uma de suas marcas em festivais internacionais. Mal não faz.

Nota: 6,0

quarta-feira, 24 de março de 2021

Tesouros Cinéfilos - Minari: Em Busca da Felicidade (Minari)

De: Lee Isaac Chung. Com Steve Yeun, Alan S. Kim, Yoon Yeo-jeong, Will Patton e Han Ye-ri. Drama, EUA, 2020, 115 minutos.

Em uma das tantas belas cenas de Minari: Em Busca da Felicidade (Minari), o pequeno David (Alan S. Kim) está próximo a uma densa vegetação, onde sua avó Soonja (Yoon Yeo-jeong) contempla a visível evolução de uma horta improvisada de Minari - a planta que dá título ao filme é uma espécie de agrião tipicamente coreano. Num tipo de simbiose com o vegetal, a idosa o contempla enquanto improvisa poéticos versos sobre o quão maravilhosa é aquela planta. No instante seguinte, a câmera em close mostra essas mesmas plantas se remexendo ao vento, como se se "curvassem" em sinal de agradecimento. É o tipo de instante que resume a abordagem sensível proposta pelo diretor Lee Isaac Chung em sua obra. Minari, no fim das contas, é uma experiência cinematográfica contemplativa, recheada por instantes bucólicos, de comunhão com a natureza, enquanto a família de David e Soonja luta para se estabelecer como agricultores em uma terra nova, a qual eles não estão familiarizados.

É um filme bonito, tocante, comovente e a escolha de adjetivos semelhantes a esse poderiam preencher um parágrafo inteiro, que jamais seriam suficientes. Numa jornada como aquela que acompanhamos, que envolve um coletivo de protagonistas absolutamente carismáticos - completado pelo pai Jacob (Steve Yeun), pela mãe Monica (Han Ye-ri) e pela irmã Anne (Noel Cho) -, as dificuldades são compensadas pela força de vontade e pela permanente esperança, que parece mover tantos seres humanos. Em uma das primeiras noites, em uma casa nova que não é aquela maravilha toda e que fica numa pequena cidade do Estado do Arkanas, no sul dos Estados Unidos, a chuva castiga a estrutura meio decrépita da construção com goteiras. Há outros temores, como tornados, que se avizinham. E, por mais que os integrantes daquele núcleo familiar briguem, discutam entre si, no fim das contas eles sabem que eles terão apenas eles mesmos para dar a volta por cima, sacudir a poeira e persistir.

Não, não é uma obra de auto-ajuda. As dores são muitas, pesarosas. Mas é uma trama meio "vida real", costurada por uma série de episódios em que sorriremos, ficaremos tensos, nos emocionaremos. O menino David, por exemplo, com não mais de seis anos, possui uma condição que gera insuficiência em seu coração - e que criança dessa idade não AMA correr? Impedido de executar as mais básicas brincadeiras, encontrará compensação em outras formas, especialmente após a chegada da amorosa e excêntrica avó (e as cenas envolvendo os dois são de arrancar suspiros). Já Jacob se empenhará com todas as forças em fazer acontecer uma horta, tendo dificuldades com a irrigação, com a colocação da produção no comércio local e até mesmo com a desconfiança da comunidade que lhe acolhe, mas não podemos esquecer que se trata de uma família oriental tentando a vida no Sul dos Estados Unidos, nos poeirentos e imprevisíveis anos 80. Parece ser um filme que versa sobre a complexidade das relações. E sobre o que realmente importa nessa vida.

Primoroso também na parte técnica, o filme utiliza a sua fotografia meio granulada, empalidecida, para reforçar o caráter abstrato do projeto. Há uma calma permanente, uma aura quase mística, sensação ampliada pelos ângulos de câmera meio oblíquos e pela trilha sonora nada óbvia (e muito grudenta). Evitando os estereótipos, a obra também promove desvios de rota o tempo todo - e confesso que me diverti (e me comovi) com uma completa quebra de expectativa envolvendo um vizinho da família, um veterano de guerra que é também um fanático religioso (papel de Will Patton), uma espécie de combo que tinha tudo para descambar para um lado menos "otimista". Nas graças da crítica, a obra foi lembrada em seis indicações ao Oscar, tendo remotas chances. Mas o carinho de todos com o projeto e a recepção calorosa da crítica e do público, compensarão a ausência da estatueta dourada. Prepare os lenços de papel. Provavelmente serão necessários.

segunda-feira, 22 de março de 2021

Picanha.doc - Professor Polvo (My Octopus Teacher)

De: James Reed e Pippa Ehrlich. Com Craig Foster. Documentário / Aventura, Singapura, 2020, 85 minutos.

Preciso ser sincero com vocês: não achava que uma obra sobre a amizade entre um homem e um polvo pudesse ser possível. E não só é, como Professor Polvo (My Octopus Teacher) é um filme maravilhoso, sensível, tocante, evocativo e bucólico, que nos faz mergulhar - com o perdão do trocadilho - em um universo completamente desconhecido, para nos deixar quase tão revigorados quanto o protagonista Craig Foster. Fotógrafo e documentarista, Craig era o sujeito comum que, como muitas pessoas, estava estressado com a rotina. Diagnosticado com fadiga adrenal - uma condição que gera dor no corpo todo, dificuldade para concentrar, vontade de comer alimentos muito salgados ou cansaço persistente - o homem driblou a depressão, com longas sessões de mergulho numa belíssima praia isolada no extremo Sul da África (próxima ao Cabo das Tormentas).

Será nesse local meio paradisíaco, que Craig voltará a encontrar a paz que tanto procurava. Em sessões de mergulho silenciosas, bentônicas, quase místicas, o fotógrafo passará a observar o dia a dia de tubarões, de caranguejos, de peixes, de algas, conchas e sedimentos, numa terapia bastante intensiva que envolve um mar com temperatura inferior a 8ºC e uma explosão de cores, formatos, tamanhos. Excêntrica, curiosa, a fauna marítima - um verdadeiro festival de variedades -, passa a ser observada também pela lente da câmera do fotógrafo, que volta a se sentir estimulado a realizar aquilo que sempre amou. E esse sentimento se intensifica quando ele é atraído por um bizarro animal que utiliza a própria floresta de algas, as tocas, as pedras, ou outros itens do plâncton para se camuflar. É na repetição diária das visitas que se estabelecerá uma relação de confiança entre o homem e o molusco.

Só que o que poderia soar como apenas contemplação aborrecida em um daqueles documentários vistos em canais específicos, se transforma, nas mãos de Craig, não apenas em uma curiosa jornada de amizade, mas também em um verdadeiro exercício de gênero. Da desconfiança inicial do animal, até o momento em que ele se arrisca a "tocar" o braço do protagonista com um de seus tentáculos cheios de ventosas, somos inundados por sensações que nos levam a ficar tensos, que nos fazem sorrir e que nos comovem. Hábil no uso da trilha sonora e na hora de escolher os melhores "ângulos" de câmera, Craig dá um verdadeiro show ao equilibrar aquilo que assistimos, com a sua vertiginosa narração em off. As sequências em que a nossa heroína marinha precisa escapar de tubarões predadores ou mesmo o instante em que ela parece se divertir com um cardume de peixes são verdadeiros prodígios visuais, com o documentarista utilizando à perfeição o seu desenho de produção naturalista, vívido.

Não por acaso, sequências como aquela em que o polvo precisa saltar para fora das águas para fugir de um de seus predadores, enquanto ouvimos um sôfrego barulho de respiração em meio a câmeras trepidantes e em close, conferem movimento e dramaticidade a narrativa. Mais ou menos como se o mergulhador nos alertasse, o tempo todo, para o fato de que essa amizade pudesse ser interrompida intempestivamente, sem muita explicação e sem muito motivo. E é dessa forma que a obra ganha força, como já disse antes, em termos narrativos. Craig deseja que sua amiga fique viva o máximo de tempo possível, nesse ciclo aquático bastante aleatório. Mas também não pode lutar contra a natureza das coisas. Diferentemente do que acontece com a sua fadigada existência que, depois de passar quase um ano visitando diariamente um polvo, passa a ter novo sentido. A ponto de o mergulhador criar uma comunidade - a Sea Change Project - que defende florestas marítimas como aquela que se torna cenário de seu filme. Emocionante é pouco.

sexta-feira, 19 de março de 2021

Pérolas da Netflix - Shaun: O Carneiro - O Filme: A Fazenda Contra-Ataca (Shaun the Sheep Movie: Farmageddon)

De: Richard Starzak e Will Becher. Com John Sparkes e Justin Fletcher. Animação / Aventura / Comédia / Ficção Científica, EUA / França / Reino Unido, 2019, 86 minutos.

Quem me acompanha aqui no Picanha sabe do meu fascínio pelas animações em stop motion - e da consequente dificuldade de analisá-las de uma forma mais "justa". Sim, eu sei que todos os filmes envolvem um longo trabalho que vai pré-produção ao corte na final na ilha de edição - uma função que, em muitos casos, leva anos para ser concluída. Agora, imaginem vocês, um grupo de pessoas se prestar a pegar uma quantidade de objetos, de bonequinhos e de outros itens quase infinitos para fotografá-los, quadro a quadro, gerando não apenas a sensação de movimento, mas como, contando, efetivamente, uma história? Com começo, meio e fim? Com alguma lógica, que tenha graça, que seja relevante ou divertida? E talvez tudo isso explique o fato de Shaun, O Carneiro - O Filme: A Fazenda Contra-Ataca (Shaun the Sheep Movie: Farmageddon) ter entrado de última hora entre os indicados ao Oscar, na categoria Animação. Trata-se, ao cabo, de um trabalho admirável. Desafiador.

E, sinceramente, não é "passar pano" para os pequenos defeitos que a obra dos diretores Richard Starzak e Will Becher possa porventura ter. Mas, sim, compreender a mágica pretendida por um grande coletivo de pessoas que busca gerar entretenimento, fazer rir ou emocionar, utilizando massinha de modelar e algumas câmeras fotográficas - sim, estou sendo reducionista, mas vocês entendem meu ponto. Partindo dos eventos que marcaram a primeira aventura de Shaun e seus amigos - que se perdem na cidade -, o grupo de ovelhas ocupa seus dias tentando se entreter (sendo sistematicamente barrados pela postura meio ditatorial do cachorro Bitzer). O tédio no local é quebrado em uma noite aleatória em que os bichinhos tentam pedir uma pizza e acabam atraindo, por engano, um jovem e alvoroçado alienígena (seu nome é Lu-La) que cai com sua nave nas redondezas. O objetivo do grupo será o de devolver o ser intergalático para o espaço, antes que ele seja capturado por uma organização com intenções meio escusas.

Sim, pode soar meio bobinho - às vezes até infantil demais. Mas assim como no primeiro filme, para cada gag abusadamente visual em meio a um festival de cores e de acontecimentos aleatórios, surge algum tipo de referência nerd/pop/cultural que acertará em cheio o coração dos adultos que resolvem seguir a jornada de Shaun. Uma das minha preferidas, por sinal, é aquela que evoca a famosa fotografia Lunch Atop a Skycraper (ou Almoço no Arranha-Céu), que foi tirada em Nova York, no começo dos anos 30. Na animação, a inusitada cena surge em um instante de poucos segundos, quando os carneiros fazem uma parada em meio a construção de uma estrutura faraônica que visa a atrair algum objeto voador não identificado à propriedade - um dos objetivos do fazendeiro para levantar alguma grana, que lhe possibilitará a aquisição de um tão sonhado maquinário agrícola novo.

Mas há outras e divertidas referências que vão de clássicos como ET: O Extraterrestre (1982) - a cena da lua sendo cortada é um improviso ótimo! -, Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), Sinais (2002) e, a mais óbvia de todas, a de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968). Já a série Arquivo X é lembrada apenas com uma referência maravilhosa à trilha sonora, que faz rir e surpreende em igual medida. Graciosa, a animação também agrada a qualquer público pela fofurice (e pelo carisma) dos protagonistas, sendo praticamente impossível não torcer para que tudo saia a contento, enquanto percorremos uma jornada que traz importantes lições sobre amizade, valores familiares e respeito às diferenças. Não, não vai mudar o mundo ou gerar impacto como é com os produtos da Pixar. mas é agradável, traz cor, leveza e ainda pode ser facilmente acessada na Netflix - o que ajuda bastante quem pretende completar a maratona do Oscar!

quinta-feira, 18 de março de 2021

Curta Um Curta - A Concerto Is a Conversation

- Posso fazer uma pergunta? 

- Claro, vovô. 

- Você pode me dizer o que é um concerto?

- (Risos) É basicamente uma peça que possui um solista e um conjunto, uma orquestra. E os dois estão 'conversando'". 

Esse diálogo prosaico, leve, entre o compositor Kris Bowers e seu avô nonagenário Horace Bowers, abre o tocante documentário em curta-metragem A Concerto Is a Conversation - um dos cinco indicados em sua categoria no Oscar e que pode ser conferido na íntegra, no Youtube. Gravado em formato de entrevista, o filme volta no tempo para contar um pouco da história de Horace. Filho de escravos no Sul dos Estados Unidos, ele enfrenta o desafio de ser um jovem negro nos Estados Unidos dos anos 40, para se estabelecer em Los Angeles, na Califórnia, onde consegue uma vaga de trabalho em uma lavanderia. Extremamente bem humorada, a obra funciona magnificamente ao centrar a câmera no rosto da dupla de protagonistas, em closes em que podemos ver suas divertidas reações durante a conversa - a despeito da seriedade da temática. Na atualidade, Kris é um dos nomes mais promissores entre os compositores de Hollywood, sendo o responsável pela trilha sonora do vencedor do Oscar Green Book: O Guia (2019). Estreando uma nova peça para violino chamada For a Younger Self, o jovem artista de 29 anos revisita a juventude do avô, que sofre de câncer, enquanto se questiona sobre a sua presença, ocupando espaços que normalmente não são ocupados por negros - o que certamente é fruto do esforço e do legado dos antepassados. Vale demais conferir!

Cinemúsica - O Homem do Futuro

De: Cláudio Torres. Com Wagner Moura, Alinne Moraes, Gabriel Braga Nunes e Maria Luisa Mendonça. Comédia / Ficção Científica, Brasil, 2011, 106 minutos.

"Todos os dias quando acordo / Não tenho mais o tempo que passou / Mas tenho muito tempo." Devo confessar a vocês que sou absolutamente fascinado pela mistura de comédia, romance e ficção científica que o diretor Cláudio Torres utiliza em muitas de suas obras e não é diferente com o maravilhoso O Homem do Futuro. Prestes a completar dez anos de seu lançamento, a obra estrelada por Wagner Moura e Alinne Moraes é um tour de force nostálgico em que o tema das viagens no tempo é atualizado para a realidade brasileira, com ótimos efeitos especiais, diálogos espirituosos, piadas divertidas e excelentes escolhas para a trilha sonora. Admito que enquanto revisitava o filme - lembrava da paixão provocada por ele, no agora distante 2011 -, ainda não sabia bem em quadro aqui do Picanha o incluiria. Por estar disponível na Netflix poderia ser uma Pérola do streaming. Ou será que ele ficaria melhor colocado nos Grandes Filmes Nacionais? Só que enquanto acompanhava as desventuras de Zero (Wagner Moura) e Helena (Alinne Moraes), me dei conta do poder da música dentro dessa pequena joia do nosso cinema.

Aliás, talvez seja exagero da minha parte, mas eu arriscaria dizer que a obra conseguiu reposicionar a canção Tempo Perdido da Legião Urbana, quase a elevando a um outro patamar, exatos 25 anos depois de seu lançamento, bem nos anos em que a nossa Pátria se libertava do longo período de Ditadura Militar. Repaginada para o filme, a música - talvez antes imaginada por Renato Russo como um grito de independência de um contexto político que, agora, ficava para trás (era preciso recuperar o "tempo perdido", "olhar para frente" e "deixar a luz ligada mesmo que não tenhamos medo do escuro"), passa a ter ares oníricos, quase de sonho, com ecos, efeitos enfumaçados e outras trucagens que vêm a fortalecer a narrativa do sujeito inteligente, mas, meio sem graça, que é humilhado pela garota mais bonita da faculdade em uma noite despretensiosa de festa, no ano de 1991. Quando "surge" em cena, a canção é evocada de forma meio confusa, entortada, ilusória, fantasmagórica. Lembra quando Non, Je Ne Regrette Rien da Edith Piaf surge nos devaneios do personagem do Leonardo Di Caprio em A Origem (2010)? Pois é, o efeito é mais ou menos o mesmo.

Agora, passados 20 anos do ocorrido, Zero se tornou um cientista arrogante e debochado, que ocupa seus dias como professor de alunos que, ele mesmo, qualifica como "bando de debiloides". Ainda traumatizado pela fatídica noite da festa - onde ele é enganado por Helena e por um certo Ricardo (Gabriel Braga Nunes), que também tem algum tipo de interesse na moça -, o protagonista recebe a notícia de que está prestes a ser demitido. Sem alternativa, ele aciona um acelerador de partículas experimental, que ainda não foi concluído, que será capaz de fundir o espaço/tempo, fazendo com que retorne justamente para a noite da festa em que sofreu a humilhação. Seu objetivo, tal qual um Marty McFly de De Volta Para o Futuro (1985) será alterar o passado, escapando do ultraje sofrido. Mas será que modificar o que já se viveu pode ser a saída para uma vida melhor? Será que os sofrimentos passados, as dores superadas não podem nos ajudar a enfrentar de frente os nossos problemas? Mudar o destino pode ser o sinônimo para uma vida realmente feliz?

Com uma série de lições sobre tempo, memória, experiências e superação, a narrativa é costurada com uma série de gags divertidas, que se alternam com momentos bastante comoventes. Ao voltar para o passado, é uma graça ver o cuidado do desenho de produção, que coloca um telefone celular de proporções enormes na mão de uma pessoa que circula na rua. Em compensação, quando retorna para o tempo "presente", com a alteração concretizada, Zero se depara com uma vida acinzentada e tecnológica, tão luxuosa quanto degradante - como comprovam seus crimes com a Receita Federal. Só que nessas idas e vindas no tempo o destaque mesmo é a música. Além da onipresença de Tempo Perdido, que ressurge um bom punhado de vezes pontuando a narrativa, há ainda By My Side do INXS, Reflections Of My Life do Marmalade e It's The End Of The World As We Know It (And I Feel Fine) do REM, além de uma versão bem apropriada de Creep, do Radiohead, cantada pelo próprio Moura. O Homem do Futuro é um filmaço: leve, bem humorado, capaz de gerar saudade de algum tempo que vivemos e não sabemos situar bem. Mas a meu ver a obra se torna ainda melhor e maior pelo bom uso da música. 

quarta-feira, 17 de março de 2021

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Kolya: Uma Lição de Amor (República Tcheca)

De: Jan Sverák. Com Znedek Sverák, Andrej Chalimon, Irina Livanova e Ondrej Vetchý. Drama / Comédia, República Tcheca, 1996, 111 minutos.

Filmes com homens de meia idade, sem nenhuma experiência com crianças, que precisam lidar, inesperadamente, com pequenos, não chegam a ser exatamente uma novidade - e basta puxar pela memória para que nos lembremos de "clássicas" comédias hollywoodianas como Um Tira no Jardim de Infância (1990) e Operação Babá (2005), pra ficar em dois exemplos. No sensível e emocionante Kolya: Uma Lição de Amor (Kolja), obra tcheca que venceria o Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira na cerimônia de 1997, o tom é um pouco menos engraçado e muito mais comovente - ainda que a linha geral seja sendo a do sujeito meio mal humorado que vai ter o seu coração amolecido pela convivência forçada com um menino. O que ocorrerá não por circunstâncias prosaicas do cotidiano e sim por exigências que envolvem o contexto político e social da então Tchecoslováquia que, à época - a trama se passa em 1989 -, era ocupada pela União Soviética.

É nesse cenário que somos apresentados ao professor Franka (Znedek Sverák), um renomado solista de violoncelo que perde a sua posição na orquestra filarmônica após a ocupação comunista. Não tendo escolha para manter os boletos em dia ele se torna músico de funerais, realizando ainda outros bicos (como o de pintor de lápides) para tentar sobreviver. Mas a oportunidade de colocar as dívidas em dia surge quando o coveiro Broz (Ondrej Vetchý) lhe faz uma inusitada proposta: casar-se de fachada com uma jovem russa que deseja obter a cidadania tcheca, o que lhe possibilitará driblar as exigências do Partido Comunista. Só que, uma vez realizado o trambique, a nova esposa simplesmente desaparece, emigrando com seu amante para a Alemanha Ocidental. Pior, deixando para trás o jovem Kolya (Andrej Chalimon), um menino de apenas cinco anos que fica sozinho após o falecimento da avó, vítima de um AVC. Único "parente", caberá a Franka a responsabilidade de cuidar do pequeno. E, bom, aí temos um filme.

Só que diferentemente das comédias americanas que fazem um humor mais físico, tirando muito da graça do conflito geracional e do caos instaurado pelos pequenos - isso me fez lembrar também outro clássico da Sessão da Tarde, o impagável Três Solteirões e Um Bebê (1987) -, a tensão aqui se dá muito mais pela completa mudança do estilo de vida de Franka, um solteirão convicto de quase 60 anos de idade que jamais imaginou em sua vida ser pai, que agora se depara com uma inesperada responsabilidade. Mesmo com problemas financeiros, o protagonista é uma espécie de bon vivant, que gosta de "namoros" descompromissados, enquanto ocupa seu tempo tocando em seu decrépito apartamento, povoado por pombos que, de forma inusitada, afiam seus bicos no parapeito da janela. Enquanto solicita apoio do serviço social local, Franka vai aprendendo a lidar meio na marra com o curioso, taciturno, mas extremamente expressivo menino - e não é preciso ser nenhum adivinho para saber que desse combo meio a contragosto, sairá uma bela amizade.

Não bastasse a estrutura narrativa bastante clássica e a crítica a um regime estatizante que sufocava os habitantes da Tchecoslováquia - sendo possível ver, aqui e ali, tanques e soldados russos espreitando pela vizinhança -, a obra do diretor Jan Sverák também comoveu as plateias mundo afora pela certeira mistura entre música, arte, amizade e poesia. Algo capaz de formar um coletivo revolucionário que é complementado pela belíssima paleta de cores da fotografia, pelo bucolismo das tomadas em meio a árvores e outros aspectos da natureza e pelas tomadas de câmera de grande sensibilidade. Em um filme sobre um homem que precisa proteger um pequeno do mundo que o rodeia, é fundamental que torçamos pela dupla - e o carisma e a química entre ambos nos faz rir e chorar muitas vezes na mesma cena, como na inesquecível sequência em que Franka se "perde" de Kolya na estação de metrô. Em tempos tão duros como os que vivemos, essa pequena obra-prima europeia ainda nos lembra da importância do respeito às diferenças, especialmente em um contexto de polarização política. É possível, afinal conviver com o diferente. E, aceitá-lo. Assim como o nosso protagonista aceita a condição que lhe é imposta.

segunda-feira, 15 de março de 2021

10 Considerações Sobre os Indicados ao Oscar 2021 - Esnobes, Surpresas e Curiosidades

A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood anunciou nesta segunda-feira os indicados ao Oscar desse ano. E, como é de praxe, a gente faz uma análise sobre as escolhas, bem como as grandes ausências, os esnobes e as surpresas da relação!

1) É tudo tão diferente nessa temporada que já está se arrastando - o Oscar ocorre somente em 25 de abril -, que muitos candidatos que já foram favoritos até mesmo para vencer em suas categorias, perderam força com o desenrolar do ano e a chegada das prévias. Acho que o caso mais gritante entre os filmes, nesse sentido, é o do sensacional Destacamento Blood, que foi tão esnobado que sequer o Delroy Lindo foi lembrado entre os coadjuvantes. Aliás, a obra recebeu apenas uma indicação, na categoria Trilha Sonora Original. Outro filme que sofreu com o "esnobe" foi o belo Relatos do Mundo. Nem a foto de Tom Hanks estampada na capa e a campanha da Netflix ajudaram nesse caso. O resultado? Apenas uma nominação na categoria Fotografia.

2) Ok, Relatos do Mundo e Destacamento Blood podem ter sido esnobados, mas ainda assim a Netflix passou o "rodo" ao conquistar 35 indicações - 11 a mais do que no ano de 2020. Quem faz a festa é o cinéfilo, que pode colocar a agenda em dia ao assistir diretamente no streaming obras, como, Mank - aliás, o filme de David Fincher lidera o número de nominações, com 10 -, Os 7 de Chicago, A Voz Suprema do Blues, Era uma Vez um Sonho, Crip Camp, Festival Eurovision da Canção: A Saga de Sigrit e Lars, Rosa e Momo, O Céu da Meia-Noite, Professor Polvo, A Caminho da Lua, Pieces of a Woman, Shaun, o Carneiro, o Filme: A Fazenda Contra-Ataca e O Tigre Branco, além dos já citados no tópico anterior.

3) Ainda entre as ausências, particularmente uma das que mais senti foi a da Regina King, diretora de Uma Noite em Miami, que bem que poderia ter sido lembrada em sua categoria, pelo belo trabalho no filme disponível na Amazon. Ainda assim, em matéria de "diversidade", é provável que esta seja uma das premiações mais democráticas da história - especialmente após a campanha do #OscarSoWhite. Além dos protagonistas negros em filmes como Judas e o Messias Negro e A Voz Suprema do Blues, nesse ano há espaço para um ator de etnia oriental (Steven Yeun por Minari) e até de origem muçulmana (Riz Ahmed, por O Som do Silêncio). E há também o fato de que, pela primeira vez na história, duas mulheres foram lembradas na categoria direção - uma delas, a Chloe Zhao, de Nomadland, é oriental. Já Emerald Fenell estava fazendo a sua estréia em Bela Vingança.

4) Aliás, falando em O Som do Silêncio e Bela Vingança, impressionante como estas obras ganharam força na reta final, antes do anúncio das premiações. Sobre o primeiro, a Amazon pode estar finalmente aprendendo como "trabalhar" as suas obras depois do fiasco do último ano. Tanto que até o Paul Raci foi lembrado como Ator Coadjuvante. Já o Bela Vingança certamente já trata como um prêmio o simples fato de ter sido lembrado: o tema espinhosos, nesse caso, certamente será uma barreira para o eterno conservadorismo de parte dos votantes.

5) Sinceramente achei uma baita surpresa a presença da Maria Bakalova por Borat: Fita de Cinema Seguinte entre as coadjuvantes. Ainda mais em um filme tão incisivamente cômico! Mas, confesso, adorei. Entre as surpresas, também simpatizei com a presença do Thomas Vinterberg entre os diretores. Adoro a filmografia do dinamarquês, ainda não assisti ao Druk: Mais Uma Rodada, mas gosto quando a coisa foge de óbvio! O mesmo vale para a única indicação de O Tigre Branco, que teve como prêmio de consolação uma menção na categoria Roteiro Adaptado.

6) Acreditem: Glenn Close conseguiu a raríssima proeza de ser indicada ao Oscar e ao Framboesa pelo MESMO PAPEL. Bom, eu já tinha dado a letra sobre essa bizarra possibilidade e quem já aguentou as duas horas de Era Uma Vez Um Sonho entende os motivos disso.

7) Achei uma peninha o divertido As Mortes de Dick Johnson ter ficado de fora na categoria Documentário. Aliás, ele saiu de um dos favoritos para completamente ignorado na relação final.

8) Também não deu para o Brasil na luta por um carecão dourado: o sonho Bacurau fica na gaveta (mas o filme segue sendo um espetáculo e AZAR do Oscar. Eles que lutem!).

9) Quase me passa batido o fato de que poderemos ver Chadwick Boseman recebendo o primeiro Oscar póstumo para um ator negro na história (concorre como Ator em A Voz Suprema do Blues) e só esse fato já nos deixa bastante animados para conferir a premiação!

10) Por fim, não sei onde andava a Academia que ignorou solenemente joias como First Cow, Estou Pensando em Acabar com Tudo e Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre. Numa premiação em meio à pandemia, com obras mais intimistas (e até introspectivas), é quase um equívoco o "esquecimento". Coisas do Oscar.

Agora é aguardar a premiação e aproveitar o longo tempo para colocar as sessões em dia!


Indicados:


Melhor Filme

Meu Pai

Judas e o Messias Negro

Mank

Minari

Nomadland

Bela Vingança

O Som do Silêncio

Os 7 de Chicago


Melhor Ator

Chadwick Boseman, por A Voz Suprema do Blues

Anthony Hopkins, por Meu Pai

Riz Ahmed, por O Som do Metal

Steven Yeun, por Minari

Gary Oldman, por Mank


Melhor Atriz

Frances McDormand, por Nomadland

Viola Davis, por A Voz Suprema do Blues

Vanessa Kirby, por Pieces of a Woman

Andra Day, por Estados Unidos vs Billie Holiday

Carey Mulligan, por Bela Vingança


Melhor Diretor

Chloé Zhao, por Nomadland

Lee Isaac Chung, por Minari

Emerald Fennell, por Bela Vingança

David Fincher, por Mank

Thomas Vinterberg, por Another Round


Melhor Ator Coadjuvante

Sacha Baron Cohen, por Os 7 de Chicago

Leslie Odom, Jr., por Uma Noite em Miami

Daniel Kaluuya, por Judas e o Messias Negro

Paul Raci, por O Som do Metal

Lakeith Stanfield, por Judas e o Messias Negro


Melhor Atriz Coadjuvante

Yuh-Jung Youn, por Minari

Olivia Colman, por Meu Pai

Maria Bakalova, por Borat: Fita de Filme Seguinte

Amanda Seyfried, por Mank

Glenn Close, por Era uma Vez um Sonho


Melhor Roteiro Adaptado

Chloé Zhao, por Nomadland

Kemp Powers, por Uma Noite em Miami

Christopher Hampton, Florian Zeller, por Meu Pai

Sacha Baron Cohen, Anthony Hines, Dan Swimer, Peter Bayhman, Erica Rivinoja, Dan Mazer, Jena Friedman e Lee Kern, por Borat

Ramin Bohrani, por Tigre Branco


Melhor Roteiro Original

Lee Isaac Chung, por Minari

Aaron Sorkin, por Os 7 de Chicago

Will Berson, Shaka King, Keith Lucas e Kenny Lucas por Judas e o Messias Negro

Emerald Fennell, por Bela Vingança

Abraham Marder, Darius Marder e Derek Cianfrance, por O Som do Silêncio


Melhor Filme Internacional

The Man Who Sold His Skin - Tunísia

Collective - Romênia

Better Days - Hong Kong

Another Round -Dinamarca

Quo Vadis, Aida? - Bósnia e Herzegovina


Melhor Fotografia

Nomadland

Mank

Relatos do Mundo

Os 7 de Chicago

Judas e o Messias Negro


Melhor Documentário

Collective

Time

My Octopus Teacher

The Mole Agent

Crip Camp


Melhor Documentário em Curta-Metragem

Colette

A Love Song for Latasha

Hunger Ward

Do Not Split

A Concerto Is a Conversation


Melhor Curta-Metragem

Feeling Through

The Letter Room

The Present

Two Distant Strangers

White Eye


Melhor Animação

Soul

Wolfwalkers

Onward

Shaun, o Carneiro – O Filme – A Fazeda Contra-ataca

A Caminho da Lua


Melhor Curta de Animação

Burrow

Genius Loci

If Anything Happens I Love You

Opera

Yes-People


Melhor Canção Original

Husavik (Eurovision Song Contest: The Story of Fire Saga)

Hear My Voice (Os Sete de Chicago)

Speak Now (Uma Noite em Miami)

lo Sì (Seen) (Rosa e Momo)

Fight For You (Judas e o Messias Negro)


Melhor Trilha Sonora Original

Soul

Relatos do Mundo

Minari

Da 5 Bloods

Mank


Melhor Edição

O Som do Metal

Os 7 de Chicago

Bela Vingança

Nomadland

Meu Pai


Melhor Figurino

A Voz Suprema do Blues

Emma

Mulan

Mank

Pinocchio


Melhor Cabelo e Maquiagem

Emma

Era Uma Vez um Sonho

O Voz Suprema do Blues

Mank

Pinocchio


Melhor Edição de Som

O Som do Silêncio

Relatos do Mundo

Mank

Greyhound: na Mira do Inimigo

Soul


Melhor Design de Produção

Mank

Relatos do Mundo

Tenet

A Voz Suprema do Blues

Meu Pai


Melhores Efeitos Visuais

Love and Monsters

O Céu da Meia-Noite

Mulan

The One and Only Ivan

Tenet

quinta-feira, 11 de março de 2021

Lasquinha do Bernardo - Adeus, Daft Punk...e Obrigado MTV Brasil!

É até estranho, mas as memórias mais marcantes que tenho da MTV Brasil, que encerrou suas atividades em 2013 e hoje é mais conhecida pelos reality shows adolescentes enlatados, não são de músicas. Todo adolescente ou jovem (sortudo) que tivesse algumas tardes livres, entre uma atividade extracurricular e outra, parava para assistir e aguardar ansiosamente o seu videoclipe favorito, especialmente nos saudosos Disk MTV e MTV Top 20, com os clipes mais votados do dia e da semana. Esse período forjou muitos jovens, que riram com as clássicas bobajadas do Foo Fighters em Learn To Fly e All The Small Things do Blink 182, que dançaram em frente à televisão com o super hit Hey Ya! do Outkast, que se emocionaram com a tristíssima Wherever You Will Go da esquecida One Hit Wonder The Calling e, claro, ficaram ouriçados com os vários voluptuosos clipes da musa daquela geração, Britney Spears.

Embora fossem inúmeros vídeos icônicos, que ainda perpassam por nosso imaginário nas mais nostálgicas noites, apenas um era aquele clipe: em meados de 2001, com uma estética sideral inovadora necessária para transformar a música em mera trilha sonora, junto com a narrativa rockstar-clubber alienígena, a dupla francesa Daft Punk lançava o hit One More Time que alugou um pequeno espaço em minhas preferências recheadas de pop punk, emo e pop rock brasileiro. A sonoridade até aquele momento desconhecida e um videoclipe sensacional não foram o suficiente para que eu pudesse me declarar um apreciador da música eletrônica, seja lá o que isso signifique em um universo de milhares de gêneros e subgêneros. Afinal, afirmar isto é tão abstrato e genérico quanto dizer que gosto de cinema ou de futebol. 

 

Contudo, há duas semanas, fui surpreendido pelos produtores robôs. Seis anos após a publicação do seu último vídeo no YouTube, Guy-Manuel de Homem-Christo, dono do nome mais legal da música, convenhamos, e Thomas Bangalter, as duas faces por trás da emblemática indumentária do Daft Punk, anunciaram o encerramento da trajetória mais bem sucedida, inovadora e popular da música eletrônica. E, confesso, fiquei triste com a notícia. Não por me considerar um conhecedor e entusiasta dos samples e sintetizadores, mas porque, em 2014, quando tudo já era indie rock na minha vida, gastei parte do suado salário de professor do ensino básico para adquirir o, naquele ano ganhador do Grammy de Melhor Álbum, excelente Random Access Memories. 


O disco lançado em 2013, produzido ao longo de cinco anos, se tornou a obra mais celebrada do Daft Punk. Depois de décadas imersas em álbuns "convencionais", incluindo nesse pacote a trilha sonora de Tron: O Legado (2010), a dupla decidiu explorar uma instrumentalização mais orgânica, utilizando como base os tradicionais baixo, bateria e guitarra. O resultado foi a mistura que considero perfeita entre o pop, o funk/soul dos anos 70 com doses cirúrgicas e muito bem alinhadas de elementos eletrônicos. Recheado de colaborações como Pharrell Williams, Julian Casablancas (The Strokes), Nile Rodgers (Chic) e Giovanni Giorgio, a última obra inédita do duo francês traz aquela sensação paradoxal de nostalgia e descoberta. Nada parece novo, mas tudo soa como novidade. Por exemplo, o grande hit do disco, Get Lucky, poderia tranquilamente atuar em qualquer playlist de reuniões familiares, agradando nossos pais pelo balanço dançante e, ao mesmo tempo, empolgando aquele primo adolescente, ávido frequentador de baladas. Contudo, os títulos que sintetizam a experiência da obra são as pesadíssimas e alucinantes Giorgio By Moroder e Contact em oposição à leveza de The Game of Love e à simplicidade de Lose Yourself to Dance. Talvez por isso este álbum seja tão especial: alívio e tensão, analógico e digital, passado e futuro.

Daqueles discos viciantes que nos pegam pela mão e sutilmente nos guiam por um caminho sóbrio, aparentemente simples, porém de sonoridade complexa, Daft Punk faz coro à Olavo Bilac, Príncipe dos Poetas, ao versar sobre o trabalho árduo do artista: “Não se mostre na fábrica o suplício do mestre, porque a beleza, gêmea da verdade, arte pura, inimiga do artifício, é a força e a graça na simplicidade.”

Hoje, a era Daft Punk também é só uma memória, assim como a MTV Brasil. Não somente pelos vídeos icônicos, mas pelas boas músicas que aos poucos me fizeram sair da bolha. Agora, quem sabe, depois de semanas em looping, eu deixe o Random Access Memories em paz por um tempo.

quarta-feira, 10 de março de 2021

Curta Um Curta - O Que Sophia Loren Faria? (What Would Sophia Loren Do?)

É uma obra das mais graciosas o documentário em curta-metragem O Que Sophia Loren Faria? (What Would Sophia Loren Do?), que transforma a octogenária estrela italiana em uma espécie de "guia" da protagonista Nancy Kulik, uma simpática educadora aposentada que ocupa seu tempo assistindo clássicos como Matrimônio à Italiana (1964), Duas Mulheres (1960) e Tentação Morena (1958). Repassando episódios de sua própria vida - os desafios da juventude, o casamento de mais de 60 anos com o marido Alan, as tragédias e alegrias familiares -, Nancy utiliza os filmes de Loren como pequenas metáforas de superação, reconhecendo na atriz a importância de seu papel como exemplo não apenas de talento, mas de um tipo de beleza não tão convencional - como poderia ser, talvez, o de Grace Kelly. Bonito, otimista e comovente, o documentário de pouco mais de 30 minutos está disponível na Netflix e é um dos possíveis candidatos em sua categoria no Oscar, que ocorre no dia 25 de abril (lembrando que os indicados saem no próximo dia 15). Com premiação ou não, vale demais conferir!

Cinema - Raya e o Último Dragão (Raya and the Last Dragon)

De: Carlos López Estrada e Don Hall. Com Kelly Marie Tran, Awkwafina, Gemma Chan e Daniel Dae Kim. Animação / Aventura / Fantasia, EUA, 2021, 107 minutos.

Vamos combinar que a "naturalização" de uma existência em meio a uma pandemia quase faz com que nos esqueçamos da importância das artes em nossas vidas. Eu não sei como tem sido pra vocês, mas eu tive terríveis crises de ansiedade no último semestre - o que tem sido equacionado em boa parte com terapia, medicamentos e apoio daqueles que nos amam, além de doses cavalares de filmes, séries, obras literárias, músicas, canais de Youtube e até mesmo o BBB. Sim, porque se por um lado a cultura também nos ajuda a escapar, nem que seja por algumas horas (ou minutos) dessa rotina desalentadora de espera que parece não mais ter fim, por outro estes mesmos produtos feitos por atores, diretores, roteiristas, produtores e desenhistas, nos ajudam a manter as esperança por dias melhores. E este é exatamente o caso do maravilhoso Raya e o Último Dragão (Raya ans the Last Dragon), mais recente e incontestável animação dos estúdios Disney.

Quem me conhece sabe que eu tenho uma teoria que diz que o mundo seria um lugar muito mais fácil de habitar se as pessoas investissem mais tempo no consumo de obras de arte. É neles que, muitas vezes, confrontamos medos, incertezas, preconceitos. É assistindo a um filme ou lendo um livro que podemos quebrar paradigmas, repensar ideias ou refletir um pouco melhor sobre este ou aquele assunto. Significa que seríamos um coletivo melhor, mais justo, mais empático? Não sei. Talvez não fôssemos piores, o que por si só já poderia representar uma pequena vitória. O filme de Carlos López Estrada e Don Hall é a mesma história da Disney de sempre, com algum herói (ou heroína) que precisa salvar o "dia" de algum vilão opulento, misturando elementos místicos, sacros, históricos, folclóricos e até religiosos, com o combo sendo completado com um sem fim de personagens secundários fofinhos ou carismáticos, tudo feito com um traço irretocável. Mas o timing desse Raya e o Última Dragão, vamos combinar, beira a perfeição.

Porque a trama mostra um mundo fantasioso - conhecido por Kumandra - que está pronto para entrar em colapso. Por muito tempo a antiga civilização venerou dragões, bem como seus poderes e sua sabedoria. Só que quando surge uma espécie de força maligna conhecida como Druun - uma névoa tóxica que petrifica os habitantes do reino -, somente a princesa guerreira Raya (Kelly Marie Tran) poderá salvar o universo da extinção (o que significa encontrar o último dragão vivo para, após, reunir forças para juntar as peças de uma relíquia que evitará a quebra da estrutura). Parece complexo, mas durante a jornada é mais fácil compreender: após uma disputa entre líderes dos cinco reinos - conhecidos por cauda, espinha, garra, presa e garra -, há uma espécie de rompimento "político". E será necessário acertar essas diferenças para que Kumandra não se dissolva em definitivo e para que seja possível enfrentar esse mal maior, que é representado pelo Druun. Sabe a população brigando entre si em meio à pandemia, negando a existência da doença, duvidando da ciência (e das vacinas), enquanto a covid mata quase duas mil pessoas por dia, somente no Brasil? Pois é...

A mensagem de que a "união faz a força" e de que o caráter solidário e comunitário é tão ÓBVIA, que provavelmente nem será necessário esfregá-la na cara de quem assiste o filme. Com elegância, a obra alterna momentos absurdamente tensos e comoventes - como no instante em que Ba (Daniel Dae Kim) é transformado em pedra, logo no início (e juro que já saí vertendo lágrimas ali) -, com outros que são a mais pura diversão à moda da Disney, como no momento em que a figura "humanizada" e relativamente simples de Sisu (em trabalho de voz espetacular de Awkwafina), nos é apresentada. Recheado de ótimas lições, o filme utiliza suas tantas pequenas reviravoltas para nos lembrar o tempo inteiro de que a violência só gera a violência, com as consequências de embates podendo ser trágicas. Linda, a animação é ainda um deleite visual, e certamente fará sucesso entre os pequenos, que reconhecerão aquele clima meio de "videogame" no desenrolar episódico da narrativa, com as missões acontecendo num sistema de fases. É difícil não se encantar. Eu, durante os créditos, já estava alertando os amigos para essa jóia em forma de filme, que tornou minha noite de terça-feira um tanto mais leve. Assistam. Pra ontem.

Nota: 9,5

terça-feira, 9 de março de 2021

Grandes Filmes Nacionais - Todas as Mulheres do Mundo

De: Domingos de Oliveira. Com Paulo José, Leila Diniz, Ivan de Albuquerer, Joana Fomm e Flávio Migliaccio. Comédia dramática, Brasil, 1966, 89 minutos.

É muito provável que um filme como Todas as Mulheres do Mundo sequer saísse do papel nos dias de hoje, já que ele seria "cancelado" já na origem. Aliás, como foi cancelada a minissérie que revisitou a obra do diretor Domingos de Oliveira e que está disponível na Globoplay. Mas assistindo o filme com o distanciamento necessário - estamos falando do meio dos anos 60 e do período que dá início ao golpe que instaurou a Ditadura Militar no Brasil -, é possível encontrar uma obra desvairadamente debochada sobre um jornalista bon vivant e mulherengo, um tipo de machista bastante estereotipado que, naquela época, ainda era aceito com naturalidade. Sim, na atualidade uma figura como o protagonista Paulo (Paulo José) receberia uma série de textões e de notas de repúdio nas redes sociais. Naqueles tempos era apenas o homem de classe média carioca, que ama todas mas, que se vê arrebatado pelo charme irresistível de Maria Alice (Leila Diniz), uma jovem professora que é noiva do amigo Leopoldo (Ivan de Albuquerque).

Divertidíssima, a obra já começa com uma montagem sedutora em que fotografias, gravuras, obras de arte e outras figuras se intercalam na tela em meio a uma trilha sonora circense, enquanto a narração em off dá conta de como o amor soterra a liberdade e de como um homem feliz é um homem só. "O amor castra a autoiniciativa, destrói a individualidade, leva a fraqueza. O amor não dá pé", filosofa Paulo, que até se admite um sujeito feio, mas que coleciona centenas de amores. Esse é o ponto de partida que culminará num encontro fortuito com o amigo Edu (Flávio Migliaccio), onde o protagonista relatará os fatos que lhe envolveram em uma "falseta" - uma espécie de deslealdade, de traição. E tudo tem início em uma festa de final de ano em Paulo conhece Maria Alice, se apaixonando perdidamente. Da conquista, ao namoro até chegar ao casamento, o jornalista desfilará por todas as etapas erradas ou certas de um relacionamento, seus altos e baixos e de como devemos nos adaptar para o sucesso de uma vida a dois.

Sim, eu não me esqueci de que o filme é machista, mas ele também não deixa de ser sincero. Afinal de contas, figuras como Paulo não existem ainda nos dias de hoje? A meu ver seria até hipocrisia ignorar esse tipo de sujeito, que engana mulheres, é hedonista e que está preocupado apenas com a sua felicidade. De qualquer maneira confesso que me diverti com a obra, que é construída como uma série de episódios que fluem com alguma lentidão, navegando no limite entre a linguagem da Nouvelle Vague num encontro com a filmografia de Ingmar Bergman - algo reforçado pela fotografia em preto e branco e pelo caráter evocativo dos diálogos. Na cena da biblioteca, por exemplo, é possível se divertir com os esforços de Paulo que beiram à canastrice para atrair a atenção de Alice. Ao passo que sequências como a da boate, ou do encontro do protagonista na casa das primas, mais parecem extraídas de algum tipo de delírio felliniano.

Sim, porque se aceitamos numa boa o comportamento fútil do Marcelo Rubini vivido por Marcelo Mastroiani em A Doce Vida (1960) - que por coincidência também é um deslumbrado jornalista -, porque teríamos de encarar de forma diferente a atitude profana e de pura celebração da vida de Paulo? Sim, é certo que a película não faz concessões na hora de amenizar a misoginia, mas encaro Todas as Mulheres do Mundo como um justo veículo escapista em que tempos duros se avizinhavam no Brasil. Se apaixonar, afinal de contas, não seria buscar algum tipo de leveza perdida? Ir para a praia, convidar "mil pessoas" para um encontro, tomar um banho de mar, beijar e namorar não poderia representar algum tipo de fuga? Eu particularmente me regozijei com a sequência em que Paulo avisa todos os seus "outros amores" de que está apaixonado por Alice - com destaque para a sequência em que ele entra em um estúdio de TV disfarçado de árabe, apenas para conversar com uma de suas mulheres. Sim, é datado, é provavelmente ultrapassado e hoje em dia cancelado. O que não impediu o filme de figurar entre os 100 Melhores Filmes Brasileiros da História, em uma justíssima 37ª posição.

sexta-feira, 5 de março de 2021

Cine Baú - Ensina-Me a Viver (Harold and Maude)

De: Hal Ashby. Com Ruth Gordon, Bud Cort, Vivian Pickles e Charles Tyner. Comédia dramática, EUA, 1971, 91 minutos.

Colorido, psicodélico, divertido e melancólico em igual medida. A aparente incompatibilidade dos adjetivos ajuda a dar uma dimensão da complexidade do maravilhoso Ensina-me a Viver (Harold and Maude) - uma das tantas obras-primas do diretor Hal Ashby e que hoje em dia é cultuada pelos cinéfilos de uma forma quase comovente. Prestes a completar 50 anos de seu lançamento, o filme segue como uma excêntrica experiência que questiona padrões - especialmente de relacionamentos -, ao mesmo tempo em que discute temas como vida, morte, passagem do tempo, religião e até mesmo o absurdo do comportamento armamentista. O começo dos anos 70 representaria a década em que os norte-americanos assistiriam o arrefecimento da Guerra do Vietnã, impulsionado também pelas políticas de não violência dos grupos hippies que adotariam o flower power como ideologia.

Nesse sentido, é possível afirmar que todo esse sentimento está presente no filme, que conta a história de um jovem de 20 anos obcecado pela morte (Bud Cort), que se apaixona por uma idosa prestes a completar 80 anos (Ruth Gordon), mas que tem uma vitalidade e um encanto pela vida que são contagiantes. O ponto de intersecção entre eles é a predileção por frequentar funerais, ainda que por motivos diferentes - o que dará início a amizade. Só que enquanto Harold ocupa os seus dias simulando maneiras aleatórias de se suicidar como forma de chamar a atenção de sua distraída mãe (Vivian Pickles) - o que rende um sem fim de cenas tão hilárias quanto soturnas -, Maude esbanja anarquia, vivendo cada dia de forma despreocupadamente sedutora, como se não houvesse amanhã. O que inclui sequências de roubos de carros, fugas aleatórias da polícia e outras traquinagens que deixarão o jovem completamente arrebatado.

Fazendo uma brincadeira com a convenção que diz que a nossa idade está "na cabeça", Maude quase chega a trocar de papel com Harold que, com seu irresistível pessimismo e sua melancolia edipiana, vê na idosa uma espécie de compensação pela mãe ausente - e os ecos freudianos surgem, aqui e ali, em consultas com um terapeuta que auxilia o rapaz em sua recuperação. Trata-se ao cabo de uma obra curiosa, excêntrica, que aproveita a sua temática imprevisível para fazer todo o tipo de crítica às convenções sociais e aos padrões impostos pela sociedade. O que pode ser visto, por exemplo, na persistência da mãe de Harold em tentar lhe arrumar uma namorada - as tentativas beiram a caricatura -, ou mesmo na inacreditável e iconoclasta sequência em que Maude se "finge" de pacifista para ser (falsamente) agredida por Harold, enquanto o seu tio militar persegue a dupla.

Burlesco, iconoclasta e eventualmente histriônico, o filme percorre cada uma das suas sequências na companhia da trilha sonora de músicas de Cat Stevens - e as letras de canções como Where do The Children Play, Tea Fot The Tillerman, On The Road To Find Out e Don't Be Shy acabam por ser o complemento perfeito para a narrativa de ares tão primaveris quanto sombrios que acompanhamos. Com belas tomadas - os planos aéreos com imagens do cemitério ou mesmo aquele que envolve um belíssimo pôr do sol -, o filme nos deixa de coração quente por nos fazer perceber que o amor (ou, vá lá, o afeto) pode surgir em nossas vidas num instante, dando significado e sentido as nossas existências de uma forma quase inexplicável. Completamente esnobado no Oscar daquele ano, Ensina-me a Viver receberia a justa homenagem mais tarde aparecendo em 45º lugar na lista de Melhores Comédias Americanas da História, de acordo com o American Film Institute (AFI), além de figurar em destaque em livros como o dos 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer. Simplesmente apaixonante.

quinta-feira, 4 de março de 2021

Pérolas da Netflix - M-8: Quando a Morte Socorre a Vida

De: Jeferson Dê. Com Juan Paiva, Mariana Nunes, Raphael Logam, Ailton Graça, Zezé Motta e Lázaro Ramos. Drama / Suspense, Brasil, 2020, 84 minutos.

Vamos combinar que um filme como M-8: Quando a Morte Socorre a Vida é muito melhor em sua intenção, do que em sua execução. O orçamento pode ser baixo, as limitações visíveis, mas o carinho com que todos tratam o projeto disponível na Netflix é palpável - o que também pode ser também  explicado pelas várias participações especiais, de atores do calibre de Lázaro Ramos, Zezé Motta e Aílton Graça, só pra citar alguns. O fio narrativo da obra pode ser resumido pela curiosidade que move o jovem estudante de Medicina Mauricio (Juan Paiva). Em meio a uma das aulas de Anatomia do primeiro semestre pergunta aos colegas brancos, de classe média se eles haviam reparado que todos os corpos disponíveis para dissecação no laboratório eram de pretos. E, pior do que isso: corpos que chegaram até a universidade sem uma "identidade", entregues como indigentes.

Maurício, já calejado pelo racismo estrutural que o rodeia, percebe que os únicos negros no ambiente acadêmico são seguranças, faxineiros, a senhora que atende no cozinha ou na secretaria. Único negro estudante, empreenderá uma verdadeira via crúcis para tentar identificar a origem do cadáver conhecido apenas como M-8 (e que passará a atormentá-lo em pesadelos em que se verá envolvido no dilema ético de "perfurar" cadáveres de pessoas da mesma raça que ele). Ao mesmo tempo em que tenta descobrir alguma pista no necrotério municipal, ou mesmo nos arquivos da faculdade, se deparará com um grupo de mães que protestam nas ruas, contra violência relacionada a crimes de ódio racial. Fechando o combo, a relação ao mesmo tempo afetuosa e conturbada com sua mãe Cida (a sempre ótima Mariana Nunes), que insiste em levá-lo ao terreiro de macumba, formará a história que une ancestralidade, religião, morte, misticismo, identidade de corpo, memória e luta contra o preconceito.

É um filme bom e curtinho que deixa sua marca sem esconder a bandeira ou o lado que está defendendo. A trilha sonora com canções de rappers como Rincon Sapiência e Xis e os grafites nos muros da comunidade em que Mauricio mora (em que a imagem de Marielle Franco, vereadora assassinada há quase três anos em circunstâncias ainda não esclarecidas, surge em toda a sua glória mais de uma vez), dão conta do contraste social, quando comparados com os ambientes hermeticamente asseados e monocromáticos das habitações dos colegas de classe média alta moradores da Zona Sul do Rio. Aliás, contraste é a palavra-chave aqui. Enquanto um preto andando na rua será motivo de uma truculenta e inexplicável ação da polícia, um branco será melhor atendido em uma repartição pública. Enquanto o branco terá medo de andar de ônibus por parecer sempre desconfiado do entorno, um preto só será digno de confiança no condomínio burguês quando estiver vestindo a farda de segurança.

Sim, é um filme que conecta uma série de temas místicos, com a ciência desenvolvida em uma faculdade, mas que une todos esses elementos incluindo, aqui e ali, a denúncia dos absurdos de um País que assassina um jovem negro a cada 23 minutos - e a cena em que Maurício apanha da polícia por simplesmente estar na rua, a noite, em um bairro nobre, é não apenas revoltante, mas também extremamente real, como não nos deixa esquecer o sem fim de "casos isolados" diários mostrados na imprensa (fora os tantos outros que não tomamos conhecimento). Trafegando no limite entre o suspense e o drama, a película do diretor Jeferson Dê ainda presta uma justa homenagem as religiões afro que, em muitos casos, é negligenciada quando o assunto é a arte para as grandes massas. Sim, as interpretações podem até pecar pela falta de naturalismo. Os diálogos podem soar até artificiais. Mas o entusiasmo que grita a cada frame, é o que ilumina a trajetória da obra. O que faz com que, como espectadores, nos tornemos solidários a causa.

terça-feira, 2 de março de 2021

Cinema - Judas e o Messias Negro (Judah and the Black Messiah)

De: Shaka King. Com Lakeith Stanfield, Daniel Kaluuya, Jesse Plemons, Dominique Fishback e Martin Sheen. Drama, EUA, 2020, 126 minutos.

Os eventos que viriam a desencadear o covarde assassinato do líder ativista do partido dos Panteras Negras, Fred Hampton, é o fio que conduz a narrativa do espetacular Judas e o Messias Negro (Judah and the Black Messiah) - mais um daqueles filmes que deve ser figurinha fácil na edição do Oscar desse ano. Em tempos em que o preconceito e a violência contra os negros parecem ser "legitimados" pelo comportamento bélico de figuras como o ex-presidente norte americano Donald Trump - que descreve manifestações de movimentos como o Black Lives Matter como "terrorismo doméstico", numa espécie de subversão da lógica que beira o delírio -, uma obra como esta, dirigida por Shaka King, se torna ainda mais relevante e atemporal. Afinal de contas, não seria nenhum exagero comparar aquele turbulento ano de 1968, cheio de acontecimentos históricos, com o nosso pandêmico, caótico e recém concluído 2020. O racismo estrutural, afinal de contas, segue em alta. 

Atribuída ao revolucionário Che Guevara, a frase "as palavras são lindas, mas a ação é suprema" ecoa nos bastidores e em cada reunião dos Panteras Negras. O FBI acompanha à distância esse movimento e as progressões feitas. E para tentar estar um passo à frente do coletivo, designa um ladrão de carros de nome William O'Neal (Lakeith Stanfield) para atuar como infiltrado no grupo. Uma vez dentro dos encontros na sede do partido, na unidade de Chicago, William se aproximará de Hampton (Daniel Kaluuya), passando a compreender melhor suas motivações e sendo também influenciado pelo movimento que questiona o capitalismo e que luta por direitos civis e por união entre povos, buscando ainda reduzir as desigualdades e a pobreza. Mas tudo isso será suficiente para demovê-lo de um acordo de "delação premiada" em que ele verá a sua própria pena por roubo e falsificação reduzidas? A luta contra a exploração a que ele TAMBÉM está submetido fará com que ele revise suas posições?

É ao caminhar nessa linha tênue em que "irmão fica contra irmão" que a narrativa ganha força. Na sede do partido ninguém sabe das intenções de William, que recebe a sua missão das mãos do agente Roy Mitchel (Jesse Plemons, o nosso famoso Matt Damon de baixo orçamento) e do próprio J. Edgar Hoover (Martin Sheen), diretor do FBI que via com preocupação os movimentos combativos feitos pelos Panteras, mas também por outros coletivos como os Crowns. Aliás, as disputas internas entre grupos posicionados mais a esquerda, à época, dá conta da desorganização que, em certa medida, também impedia os ideais revolucionários de evoluírem para além de políticas mais "básicas" como o café da manhã comunitário para crianças pobres. Para a socialização do atendimento médico e da educação para todos era preciso união. E as formas de "militar" também surgem como uma dificuldade imposta pela imagem arranhada dos Panteras que, aqui e ali, são vendidos como um coletivo violento e excessivamente beligerante. 

Nesse sentido, não chega a surpreender a fala de Mitchel que, em certa altura compara o ativismo dos Panteras Negras com a violência racial proposta pela Ku Klux Klan - como se fossem estruturas meramente iguais, atuando em espectros políticos opostos. Mais ou menos como colocar lado a lado os atuais grupos de supremacistas brancos com os antifascistas - e este diálogo com os tempos atuais torna a narrativa ainda mais pungente. Com um desenho de produção e um figurino elegantes e uma trilha sonora alegoricamente incômoda - de notas caóticas, propositalmente altas e confusas -, a obra ainda é um prodígio em matéria de interpretações. Tanto que não será surpresa se Kaluuya e Stanfield, que repetem a parceria certeira de Corra! (2017), forem lembrados entre os indicados para o carecão dourado. É um filme dolorido, em alguma medida até desalentador. Mas o ideal permanece. Ecoa. Fica a história. A memória. Afinal de contas um revolucionário pode morrer. Mas não a revolução. Filmaço!

Nota: 9,0

segunda-feira, 1 de março de 2021

Cine Baú - O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs)

De: Jonathan Demme. Com Jodie Foster, Anthony Hopkins, Scott Glenn e Ted Levine. Suspense / Policial, EUA, 1991, 118 minutos.

O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs) é um suspense policial com o DNA dos anos 90. Pra começar tem uma dupla de antagonistas - vivida por Jodie Foster e Anthony Hopkins -, que se alternam em diálogos cheios de virtuosismo enquanto esbanjam, cada um a sua maneira, uma boa dose de carisma. Depois, há um vilão engenhoso (vivido por Ted Levine), que reforça o caráter maniqueísta da narrativa - afinal de contas, naquela época, era bem mais fácil odiar um depravado (e perturbado) transexual, que dilacerava suas vítimas. Há ainda o componente patriótico representado pelo desejo da jovem Clarice Sterling (Foster) de se tornar integrante do FBI. Há ainda o ambiente machista e a sexualização da coisa toda, com os olhares "famintos" dos homens em geral em direção à protagonista, como uma espécie de metáfora mais que perfeita para o canibalismo do excêntrico Hannibal Lecter, que passa seus dias no subsolo macambúzio de uma prisão de segurança máxima.

Seria ainda possível falar dos figurinos, dos tons pasteis, de um ou outro exagero alegórico que talvez não funcionasse tão bem nos dias de hoje, mas... os tempos eram outros. E, de alguma forma, a obra baseada no livro de Thomas Harris segue como uma das mais psicologicamente tensas experiências cinematográficas já realizadas. Não há aqui grandes excessos gore. Não há sangue e vísceras voando pelos ares. Ou jump scares aleatórios. Não há penumbra permanente ou outros elementos do desenho de produção que reforçassem algum tipo de mal estar generalizado. No caso dessa pequena obra-prima de nossos tempos, o terror está muito mais na sugestão. Na expectativa de algo que parece sempre prestes a acontecer - e a gente sabe que vai acontecer. Do dito pelo não dito. Da provocação. Da incerteza sobre o que virá ali adiante. Quem vai sofrer? Quem vai viver?

E a meu ver esse senso de horror iminente não pode ser melhor representado pelo fato de que, mesmo preso, o psiquiatra Hannibal Lecter (Anthony Hopkins) represente uma tenebrosa ameaça. Uma força do mal sempre pronta a explodir ao menor deslize. Como numa espécie de contradição entre os seus modos plácidos, sua voz calma, seus olhos azuis e as suas vestes sóbrias, a intensidade de suas ações parece no limite da violência imprevisível ou da reviravolta intempestiva. Escalada para investigar um novo assassino em série que tem tocado o terror ao atacar mulheres, para depois dilacerar as vítimas retirando parte de suas peles, Clarice vai o encontro de Hannibal, já que integrantes do FBI acreditam que o personagem de Hopkins possa auxiliar na compreensão da psique do sujeito, que responde pelo apelido de Bufallo Bill (Levine). E, é claro, sabemos que Hannibal não entregará qualquer tipo de informação de mão beijada, o que desencadeará uma sequência de eventos tão tensos quanto memoráveis.

É, ao cabo, uma obra lindamente costurada, com uma série de sequências icônicas - muitas delas, parodiadas ou imitadas (como na parte em que Hannibal surge para um encontro com uma senadora, utilizando a sua inesquecível "focinheira"). Tendo como uma de suas forças os já citados diálogos - gosto muito da parte em que Hannibal avacalha o suposto provincianismo de Clarice -, a película também tem nas grandes intepretações uma de suas marcas registradas. Nesse sentido, não foi por acaso que Foster e Hopkins viriam a faturar o Oscar nas categorias Atriz e Ator. Aliás, sobre o carecão dourado, a obra conseguiria algo raro: ganhar os cinco principais prêmios - além dos atores, a distinção para Filme, Diretor e Roteiro Adaptado (Ted Tally), repetiria um feito alcançado apenas pelos clássicos Aconteceu Naquela Noite (1934) e Um Estranho no Ninho (1975). Já em listas de melhores, o filme é também figurinha fácil, surgindo em relações como a do American Film Institute (com o o 74º Melhor Filme Estadunidense de Todos os Tempos) e em livros como 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer. Clássico é pouco.