quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Cinema - A Chegada (Arrival)

De: Denis Villeneuve. Com Amy Adamsn, Jeremy Renner, Forest Whitaker e Michael Stuhlbarg. Ficção científica, EUA, 2016, 116 minutos.

Disse certa vez o escritor Charles Baudelaire: "manejar sabiamente uma língua é praticar uma espécie de feitiçaria evocatória". Pois, em uma análise do espetacular e evocativo A Chegada (Arrival), é praticamente impossível permanecer alheio ao aforismo do autor de As Flores do Mal. E o quão verdadeiro ele parece ser a cada curva contemplativa que encontramos e a cada detalhe que apreendemos dessa película especialíssima do diretor Denis Villeneuve - que, ouso dizer, se consolida como um dos mais importantes de sua geração. Discutir a linguagem e os seus significados em um filme de ficção científica - em que, imagina-se, as pessoas esperem invariavelmente o maniqueísmo das guerras sem fim entre humanos e alienígenas - certamente não é tarefa fácil. Mas Villeneuve o faz não apenas com sensibilidade e profundidade, mas imprimindo ainda um caráter existencialista às noções de tempo e de espaço ou mesmo de presente, passado e futuro, confundindo cronologias e lógicas pré-estabelecidas. Sem ignorar a (importante) porção cinematográfica, evidentemente.

Poderíamos ser mais "evoluídos" se tivéssemos uma maior capacidade de diálogo? Se falássemos mais e ouvíssemos menos, nos tornaríamos uma humanidade mais compreensiva, tolerante, empática? Olharíamos mais para o outro? Baixaríamos a guarda um pouco mais? Compreenderíamos as intenções de cada um? É só pensar no nosso dia a dia. Quantas vezes não machucamos pessoas que amamos por dizer uma palavra errada na hora ainda mais errada. E o quão difícil é poder voltar atrás para afirmar que não era nada daquilo e sim exatamente o oposto. A linguagem é um feitiço que Villeneuve insere em um filme sobre doze naves alienígenas em formato de concha que "invadem" o nosso planeta, se estabelecendo em lugares diferentes, que não possuem nenhuma lógica entre si. As naves permanecem lá, quietas. Por muitas horas. Enquanto os terráqueos conversam e muito. Sobre atacar ou não. Sobre tentar conversar ou não. É diferente de Independence Day, quando os aliens já chegam chegando.


Pra tentar dialogar com os extraterrestres, é convocada a doutora Louise Banks (Amy Adams), especialista da área de linguística, que tentará traduzir os sinais sonoros enviados pelos tripulantes da nave invasora, com a intenção de tentar descobrir se eles representam uma ameaça, ou não. Ao seu lado estará um matemático (vivido com a habitual competência por Jeremy Renner), que lhe acompanhará na jornada, que deverá responder a uma simples pergunta: "o que vocês querem?". Mas confrontar os alienígenas, dentro da nave DELES, não será tarefa fácil e exigirá de Louise dezenas de visitas para que ela possa, minimamente, compreender as expressões sonoras dos seres - que, na aparência, lembram polvos gigantes de sete patas. E mais: a curiosa linguagem" deles, recheada de desenhos circulares, repletos de detalhes rústicos que escondem significados em cada um de seus elementos não-lineares. Conforme Louise faz avanços, se encanta e se aproxima dos objetivos reais dos visitantes, o mundo, numa espécie de paradoxal metáfora, retrocede, com cada uma das equipes de segurança do Governo dos países "invadidos" optando por tomar sozinhos as suas decisões. O que envolverá ataques do exército e ações bélicas diversificadas, por mais que a tal "defesa da nação", pareça ser desnecessária, inicialmente, já que é o medo do diferente que impera.

Genial em estabelecer a incapacidade de comunicação dos países do mundo - e não surpreende que os locais em que as naves se instalam sejam rivais tradicionais em guerras, como Estados Unidos e Rússia - como um reflexo da nossa sociedade atual, em que o ódio institucionalizado legitima os sujeitos a primeiro agredirem para depois perguntarem, A Chegada ainda se consolida como um tocante exercício cinematográfico que passa muito próximo de teorias científicas que acenam para a existência de universos paralelos ou recortes de espaço-tempo alternativos aos nossos. Nesse sentido, não é difícil encontrar ecos do magnífico Interestellar, de Christopher Nolan, ou mesmo de A Árvore da Vida, de Terrence Mallick. Este último, especialmente nas enigmáticas cenas em flashback que mostram Louise e sua filha e de como ela veio a perdê-la para uma grave doença. E, é preciso que se diga: reunir todos os pontos da curiosa equação que se estabelece no terço final dessa película e que envolvem um arco dramático relacionado a vida da protagonista é poder celebrar o estado puro da arte em seu caráter mais genuíno. Um processo eventualmente lento, contemplativo e, invariavelmente, satisfatório.


Praticamente GRITANDO para que a Academia lembre de Amy Adams no Oscar de 2017 - reparem em sua interpretação a capacidade de transmitir ao mesmo tempo horror e serenidade apenas com a respiração ofegante das primeiras visitas - Nolan tem ainda no elenco outros nomes importantes que realizam caracterizações competentes, como é o caso de Forest Whitaker, na pele do Coronel Weber. Do ponto de vista técnico, a obra também é um deleite. Se o compositor Jóhann Jóhansson, com suas notas urgentes, secas e claustrofóbicas imprime um tom ao mesmo tempo solene e angustiante para algumas sequências - ou mesmo para a narrativa como um todo -, o diretor de fotografia Bradford Young, mantém os atores em uma "penumbra permanente", que serve, em alguma medida, para denotar o estado de espírito de uma humanidade que não sabe lidar de maneira alguma com o fato que lhe ocorre. Ainda que penumbra, aqui, não represente a escuridão desconsolada, que torna alguns filmes apenas sessões de aborrecimento. Talvez você levante da sessão com mais dúvidas do que certezas. Muito provavelmente tenha vontade de assistir A Chegada de novo. Mas essa é uma obra que não tem todas as respostas, ao menos do ponto de vista racional, da comunicação. É mais ou menos como o nosso universo. Tão infinito que, se mandarmos um recado para o lado de lá, como ele será recebido?

Nota: 9,5

Na Espera - Silence (Filme)

Um novo filme do Martin Scorsese sempre será motivo de atenção para qualquer cinéfilo - e Silence, mais recente projeto do diretor e que acaba de receber um trailer, já começa a ser cotado para figurar na temporada de premiações. A obra, que estreia por aqui no dia 26 de janeiro de 2017, impressiona pelo tamanho: serão 195 minutos. Adaptação de um livro escrito por Shusaku Endo, a história é ambientada no Japão do século XVI e trata de missionários portugueses - que, pelo visto, dominavam o inglês - que viajam ao País oriental para confortar convertidos locais e impedir que senhores feudais torturem padres cristãos, que é a maneira local encontrada para tentar expulsar do Japão os catequistas europeus.


Quem conhece a biografia de Scorsese sabe que ele, por pouco, não virou padre. "Eu era muito envolvido com religião, eu fui criado em uma família extremamente católica, o que refletiu na minha personalidade", afirmou o diretor em entrevistas à imprensa para divulgação do trailer. O filme é protagonizado por Adam Driver e Andrew Garfield, mas parece ter em Liam Neeson a grande interpretação do elenco - não por acaso, já se inicia o burburinho para possível indicação ao Oscar na categoria Ator Coadjuvante. Filme de época, longo, com narrativa densa... mas é um Scorsese. O trailer que mistura momentos mais contemplativos, com outros de maior tensão, só serviu para aumentar ainda mais nossa expectativa. Por aqui, já estamos Na Espera!



segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Picanha em Série - 3%

De: César Charlone e Pedro Aguilera. Com João Miguel, Bianca Comparato, Michel Gomes, Vaneza Oliveira e Viviane Porto. Ficção Científica, Brasil, 2016, oito episódios.

Há que se louvar o fato de a primeira série da Netflix produzida no Brasil ser de um gênero pouco comum por aqui: no caso, a ficção científica. Ainda mais pelo fato de estarmos acostumados a linguagem das comédias farsescas no cinema - aquelas protagonizadas pelo Leandro Hassum e mais alguém - e à dramaturgia simplista das novelas e suas tragédias eventualmente distantes da realidade das famílias tupiniquins. Ou seja, merecem elogios o Cesar Charlone e o Pedro Aguilera - os criadores do projeto - por se desafiarem. E por proporem uma distopia a respeito de um universo em um futuro não tão distante assim, em que apenas 3% da população vive no bem bom. Enquanto os outros 97% penam em uma vida miserável, com alta escassez de recursos, em meio a um ambiente sujo e inóspito, conhecido apenas como Continente (ou Lado de Cá).

A ideia era muito boa e prometia, especialmente pelo fato de este recorte ser, aparentemente, muito fiel a nossa realidade. E as distopias, é preciso que se diga, quase sempre apresentam, em seu contexto, analogias capazes de apresentar o mundo tal qual nós vivemos. Em que os pobres se tornam cada vez mais pobres, as custas da ganância e da ambição daquela parcela da população mais abastada, que não verá problema algum em gerar políticas - ou leis - que mantenham essa equação exatamente como está. Contando muitas vezes com o apoio justamente daqueles que são oprimidos - e obras-primas da literatura, como 1984 de George Orwell ou mesmo filmes recentes, como o ótimo Distrito 9 são bons exemplos de distopias que apresentam metáforas que passam de raspão na realidade. Então, confesso que fui salivando assistir a 3%, quase no modo maratona. Mas, digamos que a série tem muitos probleminhas.


O mais gritante de todos disparado envolve as interpretações. Na trama, os jovens que vivem nos 97% tem a chance de, aos 20 anos, passar por uma bateria de provas - físicas, morais e psicológicas - que poderá lhes render o acesso ao mundo de riquezas e oportunidades do local conhecido apenas por Mar Alto. Mas o grupo de atores pós-adolescentes comandado pela protagonista Michele (Bianca Comparato) definitivamente não convence. Aliás, em alguns momentos constrange - também por culpa do roteiro opaco. Em determinada prova, Michele deve convencer os pais de uma jovem morta durante o Processo a aceitar a ideia de permitir a sua outra filha, a participação nas mesmas provas. Michele chora, faz discurso antiquado sobre ter perdido o irmão e, assim, num passe de mágica, convence o casal desconhecido a dizer as palavras que lhe garantem a aprovação no desafio. Mas a cena não é convincente. E esse é apenas um exemplo de forçação de barra.

Aliás, a necessidade que tem o roteiro - e seus diálogos - de desenhar para o telespectador aquilo que está sendo apresentado também se configura em um problema. Não são poucas as vezes em que aquilo que se vê recebe uma bengalinha textual para que não haja dúvidas quanto aquilo a que se está querendo dizer. Em determinada prova os participantes se veem presos em uma espécie de albergue em que um pequeno grupo, capitaneado por Marco (Rafael Lozado), se esforça para tentar arrombar o portão de saída. O que lhes poderá dar a liberdade e a vitória no desafio. Sem alcançar sucesso na empreitada, do nada o grupo se revolta e, adotando postura fascista, passa a saquear os demais integrantes, roubando suas comidas e bebidas. Quando o grupo que está sendo vilipendiado reage, Rafael usa da violência e brada: "isso aqui é um microcosmo da nossa sociedade, onde poucos mandam e muitos obedecem". Sério, seria muito mais bonito deixar para que nós mesmos tirássemos essa conclusão.


E se a construção da "nova juventude política fascista", que se vale da meritocracia para alcançar seus objetivos, ao menos é bem pensada - o mesmo Rafael é de uma família tradicional em que todos os seus membros foram aprovados nos testes para o Mar Alto, não hesitando em utilizar de ódio e violência para alcançar seus objetivos - o mesmo não se pode dizer de toda a conjuntura estabelecida, o que é uma pena. Não que a construção de um universo totalitário tivesse que ser maniqueísta ou unidimensional, mas causa verdadeiro estranhamento o fato de os recrutadores das provas serem sujeitos eventualmente simpáticos e "humanos" - a exceção do protagonista Ezequiel (o talentoso João Miguel, em um papel errado) - e genuinamente preocupados com os seus pupilos. Assim, mesmo em um cenário de injustiças sociais, não parece haver sujeitos "do mal" na trama, o que torna as ações da Causa - um grupo insurgente que aparece volta e meia - um tanto inócua. O próprio "casal fundador" tantas vezes citado, parece ter saído da pobreza, tendo "construído" o Mar Alto com humildade, trabalho e empatia. Mas como pode, assim, o sistema ter se tornado tão injusto?

Outras decisões também são exóticas nesse sentido. Por exemplo, no Mar Alto não é permitido ter filhos. Mas, por quê não propagar os genes meritocráticos de seus habitantes, deixando o povão na miséria sem chance alguma? E que sistema fascista é esse em que minorias são conduzidas até o final do processo, num misto de pena e admiração por seus atos - como no caso da rebelde Joana (Vaneza Oliveira)? São meio estranhas as concepções do roteiro e a impressão que dá é que não foram bem desenhados os lados nessa história toda. E, por mais cruel que isso possa parecer, muito provavelmente o cenário "verdadeiro" dessa distopia seria muito mais adverso com um personagem cadeirante - no caso Fernando (Michel Gomes, o melhor do elenco jovem) - do que aquele em que vemos na série. Mesmo superando eventuais dificuldades - aliás, as provas também apresentam problemas, já que raciocínio lógico, velocidade de pensamento, capacidade de resolver charadinhas bobas e perspicácia para trapacear parecem ser condição fundamental para a migração para a porção rica.


Pra não dizer que não falei de flores, o caso é que a primeira série brasileira da Netflix parece o tempo todo rir do fato de ser um produto realizado com escassez de recursos. E se nas ficções científicas americanas o mundo do futuro sempre é altamente tecnológico, com cores frias e asséptico, no nosso 3% os cenários são absolutamente bregas, com cores extravagantes e figurinos anacrônicos, formando um conjunto que mais parece saído da vida "altamente tecnológica" da irmã do Sr. Hulot, no clássico Meu Tio (1958). Não é por acaso que, mesmo em um universo futurista, a visualização de uma prancheta eletrônica "da pau", obrigando Ezequiel a resolver a questão na base do tapa. As próprias (e, por vezes, inexplicáveis) aparições dos conselheiros - comandados por Matheus (o veterano Sérgio Mamberti) - são curiosas, com cada integrante surgindo enfileirado em uma tela poeirenta em que, aquele que fala, é mostrado mais a frente dos demais - gerando cenas em que fica difícil controlar o riso involuntário. Não vou nem citar o aparato tecnológico que sempre parece insuficiente para localizar os integrantes da Causa. Ou mesmo as conspirações dos personagens DENTRO do universo de disputas rumo ao Lado de Lá. E o que dizer da descartável personagem Aline (Viviane Porto), que aparece para monitorar as ações de Ezequiel, mas sem uma lógica que possibilite a esse arco dramático qualquer tipo de significado. Enfim, a primeira série da nacional da Netflix ainda pode melhorar, e muito, se conseguir desenhar melhor seus personagens e se encontrar mais sentido em seu retrato de uma sociedade em que sujeitos próximos vivem em condições diferentes. Por enquanto, não passa de um produto que desperta a curiosidade. Mas decepciona, de alguma forma.

Nota: 5,3

sábado, 26 de novembro de 2016

Lançamento de Videoclipe - The Lumineers (Sleep On The Floor)

Da safra recente de bandas que misturam o folk e o country pode-se dizer que o The Lumineers é uma das mais simpáticas. Conhecido pelo megahit Ho Hey, que integra o primeiro e homônimo registro de 2012, o trio está em plena temporada de divulgação de seu segundo álbum, intitulado Cleopatra, que foi lançado no começo desse ano. Na semana passada, o grupo disponibilizou um tocante videoclipe para a canção Sleep On The Floor, que abre o trabalho. O vídeo mostra um casal aparentemente enfadado pela rotina e que sonha com uma vida a dois um pouco mais movimentada e que possa quebrar, ao menos em partes, a rotina. A música é bonita e o clipe singelo e bonito, mantém uma aura de mistério em relação a real condição de seus personagens. Vale clicar e conferir!

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Espaço do Leitor - Alice In Chains (Alice In Chains) por Tonho Soares

O nosso brother e músico de alta qualidade Tonho Soares prestou a merecida homenagem ao terceiro e homônimo disco do Alice In Chains. Pegue a sua camisa de flanela e o seu All Star de cano longo e embarque diretamente à metade dos anos 90!

Alice in Chains é o terceiro álbum de estúdio da banda Alice in Chains. O disco também é conhecido como Tri Pod devido as artes de capa (um cão de três pernas), e da parte de trás (foto de Frank Lentini, um homem de três pernas). O álbum - último de estúdio lançado pela banda com Layne Stanley nos vocais - é um dos mais melancólicos do grupo, o que não chega a ser novidade. Temas pesados como depressão, isolamento, uso de drogas, raiva e morte sempre fizeram parte do contexto do Alice In Chains Apesar de não tão bem sucedido quanto Dirt, o álbum chegou a dupla platina nos Estados Unidos e vendeu mais de três milhões de cópias pelo mundo, mesmo não tendo suporte através de turnês. O registro é considerado pelos fãs o trabalho mais depressivo da banda, devido a seu estilo lento e mórbido, mas pesado, principalmente nas letras de canções como Grind, Head Creeps e Frogs.



Com exceções da já citada Grind, de Heaven Beside You, e de Over Now, as letras são todas escritas por Layne Stanley, fazendo deste álbum sua maior contribuição lírica para banda. Faixas como Shame In You e Nothin Song trazem a tona toda melancolia que Layne vivia e que Jerry Cantrell sempre soube musicar com talento ímpar. De riffs pesados a melodias tranquilas o diferencial do Alice In Chains sempre foi a mescla entre a energia de alguns sons e a depressão de outros.Tri Pod é um daqueles discos que se aprende a ouvir com o tempo, descobrindo a cada audição um detalhe novo, uma nova forma de ser impactado pela obra do artista. A música melancólica nos leva a reflexão, seja por suas letras profundas, seja pelo transe proporcionado por seus acordes e melodias. Num tempo em que a música parece estar se perdendo em meio a melodias plastificadas e criadas em softwares de computador, o deleite que um disco feito de corpo e alma nos proporciona, não tem preço. Resta a nós, saber dar o devido valor e continuar consumindo música - ou mesmo outras formas de arte - que sejam verdadeiras.


Texto: Tonho Soares

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Cinema - A Garota do Trem (The Girl On The Train)

De: Tate Taylor. Com Emily Blunt, Rebecca Ferguson, Haley Bennett, Justin Theroux e Édgar Ramirez. Drama / Suspense, EUA, 2016, 113 minutos.

Ainda que demore um pouco a engrenar, especialmente em sua primeira meia hora, A Garota do Trem (The Gilr On The Train) é um bom filme. Tem um roteiro intrigante, alguma dose de suspense e um tanto de drama. Este último principalmente nos primeiros minutos, quando a protagonista Rachel (Blunt), é apresentada. Rachel está devastada pelo fato de seu relacionamento ter fracassado. E parece ter incrível dificuldade para superar a perda, já que ela reflete (literalmente) sobre isso nas 24 horas de seu dia. Num misto de voyeurismo e autocomiseração, ela passa os dias indo e vindo dentro de um trem, de onde pode enxergar a nova vida de seu ex, agora um sujeito feliz, ao lado de sua nova esposa, Anna (Ferguson), com quem tem um filho. Num estilo meio Janela Indiscreta dos vagões, ela aproveita pra assistir também a vida feliz, de propaganda de margarina, de um outro casal de vizinhos, que mora duas quadras ao lado de sua antiga residência.

Com a protagonista abusando da expressão triste o tempo todo, admito que o começo do filme foi um tanto desconfortável. Muito por perceber Rachel como uma mulher exclusivamente dependente de um homem para ser feliz - e se, de fato, isso se consolidasse durante a película, esta seria nada menos do que lamentável no conjunto geral, por ainda acreditar na felicidade de uma jovem apenas estando ao lado do amado (ou de um homem qualquer). Mas não é o que ocorre e, pra sorte, o filme tem mais nuances (ou camadas), que vão se revelando aos poucos, conforme as histórias de todos se cruzam. A vizinha que Rachel observa diariamente do trem, é diarista de Anna e Tom (Theroux), seu ex. Seu nome é Megan (Bennett) e ela parece esconder segredos que, entre uma visita e outra a seu psiquiatra (Ramirez), vão se apresentar como elementos centrais para a compreensão da narrativa. Aliás, a própria Rachel tem os seus segredos.


Em um dia de bebedeira - e Rachel tem sérios problemas com alcoolismo, conforme perceberemos - ela tem a impressão de ver Megan perto da estação de trem em que ela desce, caminhando até ela para confrontá-la, após ter visto aquilo que ela acredita ser uma traição. Por meio de uma edição ágil, com cortes rápidos e secos, o cenário muda, com Rachel acordando seriamente machucada no rosto, recebendo, após, a trágica notícia de que Megan está misteriosamente desaparecida. Revelar mais do que isso - e penso que talvez já tenha dito demaaaaaais (desculpa o eventual spoiler, povo) - seria estregar uma trama que será recheada de idas e vindas, plots twists interessantes (ainda que, eventualmente, previsíveis) e mudanças de perspectivas, que serão organizadas de maneira inteligente pelo diretor Tate Taylor (do piegas Histórias Cruzadas), que mantém a dúvida sobre o que de fato terá acontecido naquela noite até os instantes finais da película.

Ainda assim, se para os mais exigentes o filme não chega a ser um primor no que diz respeito a sua história - talvez um pouco óbvia -, ao menos pode-se dizer que ele é conduzido de maneira eficiente, com bom uso de técnicas cinematográficas e riqueza de elementos. E este é um caso de obra que, com uma boa direção de fotografia - no caso de Charlotte Bruus Christensen -, é possível ter maior ou menor envolvimento com aquilo que se vê. E se a vida de Rachel é sempre acinzentada e escurecida, seja no trem, no bar, ou nas conversas caseiras com a amiga Cathy (sempre uma delícia assistir a qualquer coisa com a Laura Prepon), é possível perceber como o casamento de Anna, feliz ao lado de Tom, possui cores quentes e amareladas. Isso até o momento em que Rachel "invade" a vida de Anna, em uma das tantas cenas comoventes da película, modificando o cenário ao redor e inundando o mundo com sua melancolia.


Ainda que, aqui e ali, o filme opte por julgar (lamentavelmente) seus personagens - como na cena em que uma mulher muda de lugar, no trem, ao perceber a presença de garrafas de bebida alcoólica na bolsa de Rachel (ela adivinhou que ela era alcoólatra? E, se ela for, não continua sendo uma pessoa?) -, a grande força da película parece, de fato, residir em suas protagonistas - e, nesse sentido, adorei ser "enganado" pelo filme, que parecia ser uma coisa e era bem outra (ainda mais por não ter lido o livro de Paula Hawkins, no qual se baseia). Blunt exagera, mas entrega uma performance visceral e convincente como a protagonista - e em alguns fóruns não se descarta até indicação ao Oscar. Já Bennett transforma Megan em uma figura enigmática e imprevisível, com Ferguson completando o trio no papel de uma mãe dedicada e preocupada. Além de Prepon, as ótimas Lisa Kudrow (Friends) e Allison Janney (Mom), possuem papéis menores e de destaque na obra, que, no fim das contas, é toda das mulheres. O que, por si só, já faz merecer um ponto a mais na nota.

Nota: 7,7

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Lado B Classe A - MGMT (Oracular Spetacular)

Neopsicodelia, indietrônica, new rave, synthpop... caracterizar o tipo de som ou a vertente em que se enquadra a dupla MGMT poderia até ser meio difícil há oito anos atrás, quando Oracular Spetacular foi lançado. Mas o ideal mesmo, especialmente para quem ainda não ouviu esse verdadeiro clássico moderno, é se deixar levar pelo som absolutamente saboroso da banda ignorando qualquer tipo de categorização. Sim, há uma boa quantidade de anos 80 ali no meio, com sintetizadores e teclados bem amarrados somados a efeitos e bleeps dançantes tão utilizados por grupos variados como New Order, Pet Shop Boys e outros tantos. Mas também há doses de funk, de rock, de música africana (ou com sua percussão tribal) e até de R&B, formando um conjunto capaz de dialogar com tudo ao mesmo tempo, sem abandonar a ideia de fazer música que possa ser facilmente consumida pelas massas.

Tenho a impressão de que quando Oracular Spetacular foi lançado ele não era esse disco todo. Pelo que me lembro ele foi mal recebido pela crítica. E o público, já naquela época meio saturado de bandinhas que queriam ser o hype da semana, talvez também tenha torcido um tanto o nariz. Ou não dado muita bola. Na verdade confesso que não sei se, hoje, mudou alguma coisa. Mas o caso é que uma revisão do álbum, que possui pelo menos três hits insuperáveis - Time To Pretend, Electric Feel e Kids - faz com que olhemos com carinho para aquele passado em que Spotify, Deezer e outras plataformas de streaming para a música não passavam ainda de sonhos distantes. A dupla Ben Goldwasser e Andrew Van Wyngarden lançou mais dois discos depois dessa estreia que, hoje, pode ser vista como surpreendente - Congratulations (2010) e MGMT (2013). Ambos, apesar de bons, passaram longe do impacto provocado por Oracular.


Ainda que não haja nenhum tipo de conceito - ao menos de forma clara -, o caso é que já começa com a capa. Em um cenário praiano, a dupla veste plumas e glow sticks e adota pinturas tribais como se estivesse pronta para um luau efervescente e litorâneo, repleto de cores de final da tarde. E a super lua ao fundo? Sim, se for o caso o registro possibilita, com a sua psicodelia dançante e multicolorida em meio aos vocais enfumaçados e atolados em sintetizadores, uma viagem para onde quer que se queira. Viagem, que pode ser literal ou não. Recomendável também seria acompanhar algumas canções com o videoclipe a tiracolo, já que a banda é especialista nisso. Kids, com sua letra absolutamente sincera e divertida sobre as angústias de se ter um filho - e de manter a postura orgulhosa, mesmo nos momentos mais detestáveis da paternidade - possui, sem sombra de dúvidas, um dos melhores clipes da história recente. Um pequeno filme de terror para os pequenos, diga-se.

Aliás, sinceridade nas letras parece ser a especialidade da dupla, que não se furta em falar de assuntos cotidianos, subvertendo a lógica estabelecida e retirando graça de onde, inicialmente, só seria possível encontrar tragédia. Se a especial Weekend Wars - com sua percussão marcante - é sobre superar dificuldades do dia a dia, The Youth é um hino sobre a juventude que se esvai. Já a niilista Time To Pretend, que abre o registro, poucas vezes foi tão honesta em relação a vida de um rock star, que pode apenas querer tocar, ganhar grana, escolher uma modelo gostosa pra casar, se entupir de cocaína e ter o carrão último modelo. This is our decision to live fast and die young / We've got the vision, now let's have some fun / Yeah it's overwhelming, but what else can we do? (É uma decisão nossa de viver rápido e morrer jovem / Nós fomos os visionários, agora vamos nos divertir um pouco / Tudo bem, é opressivo, mas o que mais poderíamos fazer?) pergunta a banda durante a ponte que leva a um dos mais arrebatadores refrões do disco.


Charmosamente descompromissada e abusando de certa displicência juvenil - até pra cantar, às vezes parece haver forte flerte com a desafinação - a dupla, que ao vivo e no estúdio se torna um grupo, com a adição de mais três integrantes, parece beber de fontes variadas que, muito provavelmente, integraram a formação musical de Ben e Andrew. Assim, não é difícil encontrar em cada curva do registro alguma citação a artistas tão variados como David Bowie, Toto, Prince ou Flaming Lips. Mas tudo feito com doses cavalares de personalidade e sem jamais soar como algo anacrônico ou fora de seu tempo. (e mesmo as semelhanças com contemporâneos modernosos como Arcade Fire, Vampire Weekend ou Animal Collective é capaz de colocar a banda em um cenário confortável que possibilitou certa renovação musical no início do milênio) Nesse sentido, independente de sua importância, o caso é que nós, aqui do Picanha, não cansamos NUNCA de ouvir o Oracular. Um verdadeiro Lado B Classe A.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Pérolas do Netflix - Bem-Vindo à Marly-Gomont (Bienvenue à Marly-Gomont)

De: Julien Rambaldi. Com Marc Zinga, Aïssa Maïga, Bayron Lebli e Médina Diarra. Comédia dramática, França / Bélgica, 2015, 93 minutos.

Fruto do preconceito e da discriminação que são resultado da mais completa ignorância humana, o racismo já foi retratado dezenas de vezes no cinema. Talvez como forma de (tentar) exorcizar o seu passado sombrio no que diz respeito ao tema, Hollywood se tornou - inclusive em sua filmografia recente - especialista em contar histórias que debatem a conquista de direitos civis dos negros, a superação do período escravista e o respeito a igualdade entre raças, deixando de lado, ainda, e salvo algumas lamentáveis exceções, qualquer tipo de estereótipo que possa estar vinculado a sua presença na sociedade. E por mais que a vitória de Donald Trump na terra do Tio Sam represente um enorme retrocesso - que, inclusive "legitima" o discurso de ódio contra as minorias - não se pode negar a importância do poder transformador da sétima arte que, por meio de obras como Doze Anos de Escravidão (2013), Amistad (1997), A Cor Púrpura (1986) e Conduzindo Miss Daisy (1989), nos apresenta uma dura realidade não tão distante assim.

Bom, mas o racismo, como sabemos todos nós, não é exclusividade dos Estados Unidos, como mostra o singelo, simpático e envolvente Bem-Vindo a Marly-Gomont (Bienvenue à Marly-Gomont), essa pequena pérola do cinema francês, presente na plataforma de streaming Netflix. Diferentemente dos filmes mais sérios e, naturalmente, mais engajados sobre o assunto, o diretor Julien Rambaldi opta por uma abordagem mais leve ao retratar o preconceito sofrido pela família Zantoko, nascida no Congo, em um pequeno povoado provinciano do interior da França. O chefe da família, Seyolo (Marc Zinga), recém se formou em medicina em Kinshasa e recebe a oportunidade de mudar de vida com a mulher e os dois filhos para trabalhar na tal Marly-Gomont do título, como o médico do posto de saúde local. Só que na comunidade, em grande parte formada por pessoas brancas, idosas e altamente católicas, nunca na vida se viu um negro. E, evidentemente, quebrar esse paradigma não será fácil, já que a hostilidade diante daquilo que se desconhece muitas vezes está na raiz do problema.


Já na chegada a família experiencia o preconceito em todos os seus movimentos, que são espionados pelas frestas, pelos cantos de cada quadra da aldeia, sendo exacerbados até mesmo no silêncio dos demais moradores, que sequer são capazes de dirigir a palavra aos novos vizinhos. Uma simples ida a feira pode ser desastrosa, denunciando uma discriminação que está enraizada no íntimo de todos dali. Na escola as crianças são chamadas por termos preconceituosos e, no fim das contas, a família toda fica desencantada com a sua nova morada, especialmente a esposa Anne (Aïssa Maïga) que, a despeito da simpatia que tenta transmitir, encontra na comunidade absolutamente conservadora e fechada apenas a inapelável distância. O único que mantém certo otimismo e esperança é Seyolo. Ainda que não consiga pacientes inicialmente - os moradores preferem viajar 15 quilômetros para a cidade vizinha para serem atendidos pelo médico branco -, o jovem se aproxima dos moradores que frequentam o bar, fazendo amizade e ganhando, aos poucos, alguma confiança. Não que seja o suficiente para qualquer tipo de transformação imediata em suas vidas.

Por mais que o tema seja sério - e por vezes até mesmo revoltante, ainda mais sabendo do fato de que o filme é baseado em história real, ocorrida no ano de 1975 - o diretor perfuma todos as sequências com certa "tristeza graciosa" (se isso é possível), sem deixar de chamar a atenção do espectador para a importância do respeito as diferenças - ainda que, aqui e ali, isso não signifique necessariamente profundidade de argumento. E conforme os desconfiados moradores de Marly-Gomont vão descobrindo que a cor da pele de uma pessoa nada tem a ver com o seu caráter ou com a qualidade do trabalho que ela exerce, o filme vai sendo iluminado por um clima de esperança que culmina em um dos mais tocantes finais de filme do cinema recente. Ainda que as tentativas da filha Sivi (Médina Diarra) de jogar futebol com os meninos, a presença da animada e barulhenta família congolesa - que transforma uma pálida canção religiosa em uma efervescente apresentação gospel - e mesmo um ponto de vista político sobre o assunto, também se configurem como barreiras a ser superadas.


Em uma época em que, no Brasil, nos acostumamos a ver os preconceitos de todos os tipos travestidos de "liberdade de expressão" - alguém se esqueceu sobre como foram tratados os médicos cubanos do Programa Mais Médicos do Governo Federal, que não seriam tão "qualificados" como os daqui? - assistir a uma obra como Bem-Vindo à Marly-Gomont serve, sim, para nos fazer sorrir, mas também para nos alertar para o fato de que a discriminação racial existe, não foi superada e deve ser combatida por todos nós todos os dias. Um médico não será pior ou melhor por ser preto - ou não será um "curandeiro", como chega a mencionar um dos personagens da obra, em meio a sua argumentação. Ou mesmo um bandido, como imagina outro. O mesmo vale para um advogado. Um jornalista. Um empresário. Os moradores daquele povoado perdido no tempo em alguma época da "Idade Média" custaram um tanto para compreender isso. E quando perceberam, passaram a ser um povo mais empático, mais gentil, mais generoso. Enfim, mais feliz.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - O Sonho de Wadjda (Arábia Saudita)

De: Haifaa Al Mansour. Com Waad Mohammed, Abdullrahman Al Gohani, Reem Abdullah e Sutan Al Assaf. Drama, Arábia Saudita / Alemanha, 2012, 97 minutos.

Acredite se puder: gravado em 2012, O Sonho de Wadjda (Wadjda) é o primeiro filme da história feito na Arábia Saudita. Sim, há apenas quatro anos. E isso não é por acaso, já que no País não são aceitas manifestações artísticas em espaços públicos como teatros ou cinemas. Aliás, tais locais sequer existem. Por essa lógica, não é necessária a confecção de filmes, já que estes, evidentemente, não serão vistos. O caso é que, como ocorre em muitos estados extremistas, as expressões culturais são encaradas como uma forma de subversão que, vejam só, poderá fazer as pessoas pensarem. Enfim, questionarem, refletirem sobre o universo em que estão inseridas ou sobre suas próprias existências, crenças ou convicções. Bom, não se pode negar que os reis de lá - o País vive sob uma monarquia - tinham certa razão, já que O Sonho de Wadjda pega justamente no maior problema não apenas da Arábia Saudita, mas da maioria dos estados islâmicos e que envolve a forte opressão as mulheres e a sua total e histórica submissão aos homens.

Assim como ocorre nos filmes iranianos, a trama parte de um fiapo de história para apresentar e analisar um contexto muito maior. Tudo que Wadjda (Mohammed), que tem apenas 10 anos de idade, quer, é poder andar de bicicleta. Ela passa os dias brincando com os guris em meio as ruas empoeiradas e escaldantes do subúrbio da capital Riade, em especial com o jovem Abdallah (Al Gohani). Mas quando todos sobem nos veículos de duas rodas para apostar corridas, a menina acaba ficando para trás, já que, na sociedade absolutamente conservadora e machista em que vivem, não é permitido as garotas andar de bicicleta ou de carro. Aliás, às mulheres do País não é permitida coisa alguma, já que o Estado está em uma das piores posições do mundo no que diz respeito a igualdade entre gêneros no âmbito doméstico, de acordo relatório produzido pelo World Economic Forum.


No País, são várias as restrições as mulheres, que são extremamente afetadas pelas políticas não inclusivas locais, que se utilizam de um padrão que enaltece o gênero masculino e inferioriza o feminino. Não por acaso, uma das leis mais conhecidas e que atesta essa desigualdade, é aquela que estabelece a necessidade de as mulheres terem um guarda masculino, responsável por conceder autorizações acerca da vida cotidiana, como por exemplo, o direito de trabalhar, frequentar a escola, ir a estabelecimentos públicos e até ir ao médico. Bom, as mulheres sequer podiam votar quando o filme foi lançado - conquista que só foi alcançada, após uma onda de protestos, em 2015. Nesse sentido, a grande sacada da obra da diretora Haifaa Al Mansour é ir apresentando esse cenário de opressão aos poucos para o espectador, fazendo com que ele seja envolvido e, inevitavelmente, arrebatado, por aquela que é a realidade das mulheres árabes.

Sem deixar de lado a comoção da busca de Wadjda pelo dinheiro que poderá representar a materialização de seu objeto de desejo - alcançado, aqui e ali, por meio de trambiques e negociações com outros alunos e amigos - a diretora esquadrinha, com sua câmera levemente distante, fluída e muito técnica, um contexto de desolação para TODAS as personagens do filme. Assim, mesmo quando aparecem aparentemente empoderadas - como no caso da mãe de Wadjda (a belíssima Reem Abdullah) -, as mulheres, no instante seguinte, apenas reforçam os estereótipos de uma sociedade puramente patriarcal, em que elas vivem exclusivamente para servir os seus maridos, donos ou o que quer que seja. Mesma situação vive, por exemplo, a diretora do colégio, ela mesma a responsável por oprimir as meninas que promovem pequenas subversões como ouvir música, usar tênis all star, ou pintar as unhas dos pés. Ela cresceu assim. Aprendeu dessa forma. E acompanhar sequências em que o casamento de uma criança é anunciado - algo normal no País -, em que uma árvore genealógica é mostrada, mas sem a presença dos familiares do sexo feminino ou em que um pedreiro grita obscenidades pedófilas para a protagonista do filme, apenas serve para reforçar ainda mais a realidade desoladora e de desencanto vivido pelas mulheres árabes.


Feito como um pequeno e sutil manifesto de repúdio a uma cultura milenar - e que, vejam bem, NÃO REPRESENTA o que diz o Alcorão e o islamismo como um todo, que prega a IGUALDADE entre seres humanos e seus gêneros -, O Sonho de Wadjda ainda consiste em um exercício absolutamente talentoso de todos os envolvidos na construção da narrativa que é conduzida de forma naturalista e sem maneirismos. Nesse sentido, o filme jamais soa como artificial ou mesmo amador, ainda que represente o ponto inaugural da sétima arte no País. E se o elenco todo é competente em sua caracterização é a jovem Mohammed que, literalmente, rouba a cena, ao encarnar a sonhadora Wadjda como uma menina determinada, sensível, graciosa e divertida, e que mantém ainda certa ingenuidade diante dos constantes choques de realidade que lhe são impostos. E se a pequena "conquista" do final do filme parece pouco para mãe e filha, por outro lado muitas serão as lágrimas dos espectadores com o pequeno passo dado. E que pode significar o fiapo de esperança que tanto necessitam as mulheres dessas nações.

Fontes:

Os direitos da mulher na Arábia Saudita: uma análise das concessões e proibições sob a ótica dos preceitos islâmicos
Religião e opressão contra as mulheres

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Cinema - Terra Estranha (Strangerland)

De: Kim Farrant. Com Nicole Kidman, Joseph Fiennes, Hugo Weaving e Maddison Brown. Suspense / Drama, Austrália, 2016, 112 minutos.

Pode-se dizer que Terra Estranha (Strangerland), filme de estreia de Kim Farrant, tem alguns méritos e um bom punhado de problemas. A grande virtude da obra, sem dúvida alguma, está na construção de um envolvente clima de suspense, que se sustenta mais ou menos até a metade da película. A moda de outras do gênero - como os ótimos Medo da Verdade (2007) e Os Suspeitos (2013) -, a trama gira em torno do desaparecimento de crianças. No caso, os dois filhos do casal Catherine (Kidman) e Matt (Fiennes), que, não faz muito, se mudaram para um lugar ermo, em meio ao deserto australiano. O epílogo interessante, que envolve o jovem Tommy (Hamilton) caminhando sem rumo em meio a madrugada, aliado ao comportamento absolutamente precoce - do ponto de vista sexual - da filha de apenas 15 anos (Brown) parece ser a deixa para que, cedo ou tarde, segredos envolvendo a família disfuncional venham à tona.

O fato de a família manter uma relação distante com os vizinhos e com os demais moradores da localidade também parece sinalizar para o fato de que há algo de estranho no ar. E não se pode negar que, nos momentos iniciais, Farrant constrói o filme sem pressa, abusando das imagens aéreas, dos planos gerais e dos travellings que buscam retratar a vida inóspita no meio do nada, em um cenário desolador em que tudo o que se vê é o amarelo escaldante da areia que reflete o sol, para onde quer que se olhe. Não bastasse o cenário opressor, é quando chega uma devastadora tempestade de areia, que os jovens efetivamente desaparecem. Enquanto a cidade tenta se recuperar do trauma do fenômeno natural, Catherine e Matt apelam para todas as possibilidades na busca pelos filhos, contando com a ajuda de David (Weaving), que atua como um xerife local.


Só que o caso é que, quanto mais a busca pelas crianças avança, mais o filme vai perdendo o sentido. Em geral não sou de me queixar sobre as conhecidas "pontas soltas" que deixam muitos filmes em aberto para a interpretação do espectador. Só que este, na aparente tentativa de apresentar várias subtramas, acaba não se aprofundando em nenhuma, chegando até mesmo a sugerir certo preconceito em alguns momentos. E o que fica é um amontoado de perguntas sem respostas. O tempo todo ficamos pensando: o que aconteceu? Quem está por trás do desaparecimento dos dois? Quais os segredos envolvendo o passado da família? O pai teria abusado da filha? A mãe teria abusado da filha? Eles foram abduzidos por ETs? Os nativos locais, uma população indígena com suas crenças e lendas, teria envolvimento? Alguma delas é ninfomaníaca? O deserto mata? Ou seria ele o caminho para a vida? A mãe tem problemas mentais? Por quê os outros adolescentes são tão estereotipados? Acredite, todas essas perguntas são POSSÍVEIS em algum momento da projeção, o que dá uma mostra da confusão estabelecida.

Mas o pior de tudo é o fato de que a obra parece, em seu íntimo, reservar um espaço especial para a demonização da sexualidade, já que a personagem de Kidman, pelo que se pode notar, tem um saudável apetite sexual. Ela simplesmente gosta de transar - e até procura outros homens, além do marido, durante o filme. E esse gene parece ter passado para a filha. Só que, como a vontade natural de fazer sexo de ambas é um choque muito grande pra tradicional família americana de bem - e os personagens do filme, como não poderiam deixar de ser, são altamente religiosos -, eles resolvem que Catherine também é da pá virada. Sim, maluca. O que resulta na inclusão de uma cena em que a mãe, desesperada, vai aos gritos para o meio do deserto atrás do filha e, em meio a alucinações envolvendo a jovem, retorna nua e suja para a comunidade. Talvez Freud pudesse explicar essa ideia que cairia bem no começo do século passado em que o prazer sexual poderia ser confundido com loucura. Ou será que isso pode acontecer? Ainda mais no cenário apresentado?


Trazendo no elenco secundário personagens que se esforçam em suas interpretações para contribuir com o clima de suspense consolidado pela obra - o próprio Hugo Weaving tem boa caracterização - o caso é que Terra Estranha fica no quase. Quase bom. Quase legal. Ou talvez o filme seja (quase) genial, vai ver. Genial na ideia de promover a fuga de uma jovem que vê todos os homens ao seu redor - pai, professor, amigos da cidade - interessados exclusivamente eu seu corpo e no prazer hedonista - e invariavelmente misógino - que este pode proporcionar. Mergulhando, assim, na fuga da natureza infinita e de grande magnitude, nem que esta seja em um deserto, que poderia representar a libertação de uma vida de subserviência masculina - algo que talvez a sua mãe não tenha conseguido a vida inteira. Será? Como eu disse são muito mais perguntas do que respostas. A conclusão sobre se isto é bom ou ruim fica com vocês.

Nota: 5,7

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Lançamento de Videoclipe - Mahmundi (Hit)

Em um ano de maravilhosos lançamentos nacionais, a cantora Mahmundi, com seu disco homônimo, muito provavelmente será figurinha fácil nas listas de melhores álbuns de 2016. Apostando no uso de sintetizadores, teclados, além das tradicionais linhas de baixo e guitarra, a cantora entrega uma verdadeira coleção de canções ensolaradas, radiofônicas e com refrões na medida para tocar nas rádios mais descoladas do País. E a canção Hit, que agora recebe um videoclipe dirigido por Hugo Braga, parece funcionar como um verdadeiro resumo daquilo que encontramos no interior desse saborosíssimo registro! O vídeo mostra a artista desfilando pelo bairro oriental de Liberdade, em São Paulo, e curtindo a noite ao lado dos amigos em karaokês da cidade. Há uma clara inspiração oitentista - tal qual o disco - em cada uma das situações vividas por Mahmundi no clipe. Já assistiu? Então clica e confere!







quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Disco da Semana - Lady Gaga (Joanne)

Joanne, o álbum novo da Lady GaGa, não deixa nos duvidar da capacidade de reinvenção da artista. Um exemplo de camaleão da indústria como, notoriamente, foi David Bowie (inclusive uma das referências do novo disco), GaGa nos entrega dessa vez um registro intimista, menos suntuoso se comparado aos álbuns anteriores e totalmente focado em sua potência vocal e capacidade de composição.  O primeiro single do novo material pôde ser ouvido no início de setembro. Trata-se de Perfect Illusion, que indicava que GaGa seguiria por um novo caminho sonoro em seu quinto álbum de estúdio. Diferente do que se esperava após essa espécie de teaser, que fez com que as expectativas de todos projetassem Lady GaGa com um comeback orientado ao rock, ela veio consideravelmente mais folk e country do que se previa, muito embora a própria cantora não queira encaixar o novo material em um ou outro estilo específico.

De fato, Perfect Illusion é a música mais eletrônica do registro e a mais próxima, dentro do conjunto de canções de Joanne às músicas do disco anterior, ARTPOP (2013). Teria sido esse lançamento como lead single uma forma de atrair os olhares do mundo para o novo material? Se sim, funcionou bem. Quando saiu, a canção iniciou uma nova era pós-jazz para GaGa, que lançou em 2014, em parceria com Tony Bennett, o álbum Cheek to Cheek, totalmente voltado ao estilo. O lançamento de 2014 nos trouxe uma Lady GaGa diferente de tudo que havíamos visto vindo dela até então: menos extravagante, menos holofotes e publicidade sobre cada pequena atitude, uma imagem mais suave e mais intimismo. Se GaGa já era referida como uma artista multifacetada, o álbum em colaboração nos fez compreender a capacidade de reinvenção da artista, que faturou um Grammy Award de Best Traditional Pop Vocal Album em 2015 pelo material.


Antes de lançar Joanne a cantora também focou na carreira de atriz, participando da quinta temporada a série de televisão American Horror Story: feito que lhe rendeu um Globo de Ouro. Todos esses movimentos nos fazem perceber uma Lady GaGa muito mais madura. RedOne, do time de produtores e compositores escalados para Joanne, é um nome familiar, com quem GaGa já trabalhou diversas vezes antes. Kevin Parker, do Tame Impala, trouxe seu rock psicodélico à urgente Perfect Illusion. Beck, Emilie Haynie, Mark Ronson e BloodPop são outros nomes que assinam a produção do disco e que, com suas diferentes referências, ajudaram Lady GaGa a entregar ao público um registro bastante singular. Ainda nas colaborações, é impossível não destacar a participação de Florence Welch, do Florence + The Machine nos vocais e na composição de Hey Girl, faixa que é o único featuring do álbum. A união dos vocais de Welch e Germanotta é uma realização notável, feito pelo os qual os fãs de ambas as cantoras ansiavam há muito tempo.

Repleto de referências country e ao folk, ao cowboy e ao imaginário interiorano americano e aos Beatles, Joanne convida às histórias que GaGa conta cantando, com as músicas funcionando como sequências conectadas para o entendimento de algo maior: do álbum em si. Joanne é um disco complexo, completo, em que é possível perceber que Lady GaGa se entregou, assumindo o total controle da direção criativa e para onde deseja rumar a partir de agora. O resultado é um álbum pessoal, divisor de águas na carreira dessa GaGa performer que, de quando em quando, nos deixa sem palavras para qualificar propriamente seu trabalho.

Nota: 8,5 


Texto: Lucas Wendt