Disse certa vez o escritor Charles Baudelaire: "manejar sabiamente uma língua é praticar uma espécie de feitiçaria evocatória". Pois, em uma análise do espetacular e evocativo A Chegada (Arrival), é praticamente impossível permanecer alheio ao aforismo do autor de As Flores do Mal. E o quão verdadeiro ele parece ser a cada curva contemplativa que encontramos e a cada detalhe que apreendemos dessa película especialíssima do diretor Denis Villeneuve - que, ouso dizer, se consolida como um dos mais importantes de sua geração. Discutir a linguagem e os seus significados em um filme de ficção científica - em que, imagina-se, as pessoas esperem invariavelmente o maniqueísmo das guerras sem fim entre humanos e alienígenas - certamente não é tarefa fácil. Mas Villeneuve o faz não apenas com sensibilidade e profundidade, mas imprimindo ainda um caráter existencialista às noções de tempo e de espaço ou mesmo de presente, passado e futuro, confundindo cronologias e lógicas pré-estabelecidas. Sem ignorar a (importante) porção cinematográfica, evidentemente.
Poderíamos ser mais "evoluídos" se tivéssemos uma maior capacidade de diálogo? Se falássemos mais e ouvíssemos menos, nos tornaríamos uma humanidade mais compreensiva, tolerante, empática? Olharíamos mais para o outro? Baixaríamos a guarda um pouco mais? Compreenderíamos as intenções de cada um? É só pensar no nosso dia a dia. Quantas vezes não machucamos pessoas que amamos por dizer uma palavra errada na hora ainda mais errada. E o quão difícil é poder voltar atrás para afirmar que não era nada daquilo e sim exatamente o oposto. A linguagem é um feitiço que Villeneuve insere em um filme sobre doze naves alienígenas em formato de concha que "invadem" o nosso planeta, se estabelecendo em lugares diferentes, que não possuem nenhuma lógica entre si. As naves permanecem lá, quietas. Por muitas horas. Enquanto os terráqueos conversam e muito. Sobre atacar ou não. Sobre tentar conversar ou não. É diferente de Independence Day, quando os aliens já chegam chegando.
Pra tentar dialogar com os extraterrestres, é convocada a doutora Louise Banks (Amy Adams), especialista da área de linguística, que tentará traduzir os sinais sonoros enviados pelos tripulantes da nave invasora, com a intenção de tentar descobrir se eles representam uma ameaça, ou não. Ao seu lado estará um matemático (vivido com a habitual competência por Jeremy Renner), que lhe acompanhará na jornada, que deverá responder a uma simples pergunta: "o que vocês querem?". Mas confrontar os alienígenas, dentro da nave DELES, não será tarefa fácil e exigirá de Louise dezenas de visitas para que ela possa, minimamente, compreender as expressões sonoras dos seres - que, na aparência, lembram polvos gigantes de sete patas. E mais: a curiosa linguagem" deles, recheada de desenhos circulares, repletos de detalhes rústicos que escondem significados em cada um de seus elementos não-lineares. Conforme Louise faz avanços, se encanta e se aproxima dos objetivos reais dos visitantes, o mundo, numa espécie de paradoxal metáfora, retrocede, com cada uma das equipes de segurança do Governo dos países "invadidos" optando por tomar sozinhos as suas decisões. O que envolverá ataques do exército e ações bélicas diversificadas, por mais que a tal "defesa da nação", pareça ser desnecessária, inicialmente, já que é o medo do diferente que impera.
Genial em estabelecer a incapacidade de comunicação dos países do mundo - e não surpreende que os locais em que as naves se instalam sejam rivais tradicionais em guerras, como Estados Unidos e Rússia - como um reflexo da nossa sociedade atual, em que o ódio institucionalizado legitima os sujeitos a primeiro agredirem para depois perguntarem, A Chegada ainda se consolida como um tocante exercício cinematográfico que passa muito próximo de teorias científicas que acenam para a existência de universos paralelos ou recortes de espaço-tempo alternativos aos nossos. Nesse sentido, não é difícil encontrar ecos do magnífico Interestellar, de Christopher Nolan, ou mesmo de A Árvore da Vida, de Terrence Mallick. Este último, especialmente nas enigmáticas cenas em flashback que mostram Louise e sua filha e de como ela veio a perdê-la para uma grave doença. E, é preciso que se diga: reunir todos os pontos da curiosa equação que se estabelece no terço final dessa película e que envolvem um arco dramático relacionado a vida da protagonista é poder celebrar o estado puro da arte em seu caráter mais genuíno. Um processo eventualmente lento, contemplativo e, invariavelmente, satisfatório.
Praticamente GRITANDO para que a Academia lembre de Amy Adams no Oscar de 2017 - reparem em sua interpretação a capacidade de transmitir ao mesmo tempo horror e serenidade apenas com a respiração ofegante das primeiras visitas - Nolan tem ainda no elenco outros nomes importantes que realizam caracterizações competentes, como é o caso de Forest Whitaker, na pele do Coronel Weber. Do ponto de vista técnico, a obra também é um deleite. Se o compositor Jóhann Jóhansson, com suas notas urgentes, secas e claustrofóbicas imprime um tom ao mesmo tempo solene e angustiante para algumas sequências - ou mesmo para a narrativa como um todo -, o diretor de fotografia Bradford Young, mantém os atores em uma "penumbra permanente", que serve, em alguma medida, para denotar o estado de espírito de uma humanidade que não sabe lidar de maneira alguma com o fato que lhe ocorre. Ainda que penumbra, aqui, não represente a escuridão desconsolada, que torna alguns filmes apenas sessões de aborrecimento. Talvez você levante da sessão com mais dúvidas do que certezas. Muito provavelmente tenha vontade de assistir A Chegada de novo. Mas essa é uma obra que não tem todas as respostas, ao menos do ponto de vista racional, da comunicação. É mais ou menos como o nosso universo. Tão infinito que, se mandarmos um recado para o lado de lá, como ele será recebido?
Nota: 9,5