quarta-feira, 26 de abril de 2017

Tesouros Cinéfilos - Ela (Her)

De: Spike Jonze. Com Joaquin Phoenix, Scarlett Johansson, Amy Adams, Rooney Mara e Chris Pratt. Ficção científica / Drama, EUA, 2013, 126 minutos.

Tentar imaginar como será o amanhã talvez seja um dos mais divertidos exercícios possibilitados pelas artes. O pintor Leonardo Da Vinci viveu entre o final do século 15 e o começo do 16 e, ainda assim, em meio a seu material de arquivo, foi possível encontrar desenhos de helicópteros, robôs e tanques de guerra, que só surgiriam muito tempo depois. Julio Verne e outros escritores - como Isaac Asimov, Aldous Huxley, George Orwell e Arthur Clarke - também arriscaram "testemunhar" o futuro por meio de suas obras que, em muitos casos, apresentavam distopias pessimistas no que dizia respeito a relação entre homem e tecnologia. O cinema também já assombrou o mundo e seus espectadores com uma infinidade de grandes filmes repletos de reflexões existencialistas, de análises sobre a condição humana na pós-modernidade e a respeito dos limites possíveis para a inteligência artificial. De 2001 - Uma Odisséia no Espaço (1968), passando por Blade Runner (1982), até chegar no recente Interestelar (2014), não foram poucos os autores que roteirizaram obras de ficção científica que estabeleciam diálogo direto com aquilo que ainda estava por vir.

Mas e se o futuro já for agora? Se ele já estiver acontecendo bem debaixo do nosso nariz e talvez não tenhamos ainda percebido? É possível dizer que é esta a impressão que temos ao assistir ao magnífico Ela (Her), de Spike Jonze. A trama nos apresenta a Theodore (Phoenix), um sujeito solitário, de modos discretos, que passa os seus dias entre o seu apartamento de mobília modesta e o trabalho, em que executa a tarefa de escritor de cartas (de amor, de congratulações, de pedidos de desculpas) para terceiros. Com dificuldade para superar o término do relacionamento com a divertida Catherine (Mara), Theodore utiliza salas de bate-papo - como aquelas antigas, do Uol - para tentar algum tipo de interação com novas pessoas, com a intenção de buscar um novo relacionamento, ou mesmo algum tipo de "válvula de escape" para as noites mais isoladas.



A situação muda de figura quando ele compra e instala em seu computador um novo sistema operacional de inteligência artificial. É a partir dele que "nasce" Samantha (Johansson), que não apenas lhe ajudará nas tarefas do dia a dia - lembrando de reuniões, ou mesmo revisando as cartas escritas -, como também lhe servirá de "ombro" amigo, ouvindo confidências, dando conselhos e fazendo o sujeito sorrir de qualquer bobagem dita com sua voz rouca, simpática e onipresente. Evidentemente, não demora para que Theodore passe a sentir algo a mais pelo programa de computador que evolui a todo instante e, como uma espécie de mulher perfeita (e invisível), lhe acompanha a todos os lugares ou mesmo em seu apartamento, dando opiniões, interagindo e... transando. Aliás, será essa última e, aparentemente, improvável situação, que elevará o relacionamento a um outro patamar, com o protagonista mais seguro a respeito de suas escolhas, se sentindo mais vivo e feliz.

E se você ainda não viu o filme e está achando tudo isso muito estranho, é preciso que se diga que é justamente o naturalismo com que Jonze trata o relacionamento entre homens e máquinas - afinal de contas, ele já não existe em um modo bastante avançado? - um dos pontos altos da película. Algo reforçado, por exemplo, pelo piquenique de "casais" realizado a certa altura da obra. Da mesma forma o diretor, que também escreve o roteiro, resiste a (óbvia) tentação de transformar Theodore em um sujeito esquisitão, introspectivo ou isolado do mundo que, vivendo a margem da sociedade, encontraria satisfação em sua vida apenas por meio de relacionamentos abstratos ou não palpáveis. Ao contrário, o sujeito tem amigos - caso da designer de jogos Amy (Adams) ou o colega de trabalho Paul (Pratt) - ainda que as suas interações não sejam necessariamente expansivas.


Adotando um desenho de produção (e um figurino) que faz um contraponto perfeito entre a metrópole ultratecnológica e digital com as roupas e objetos retrô - afinal, nunca sabemos quando será a vez das calças cintura alta masculinas retornarem - Jonze ainda estabelece diálogo, em Ela, com uma série de questões caras a modernidade. Assim, no que diz respeito a forma como nos relacionamos com a tecnologia, o caso é que, a sensação de solidão, o individualismo e o desencanto completo na pós-modernidade, parecem ser questões sempre presentes no filme e que nos fazem pensar nele por muitas horas depois. E quais os limites para um relacionamento? Não possuir um corpo para tocar, abraçar, beijar, nos impede de amar? É possível definir isso? É por essas e outras questões que essa pequena obra-prima moderna - que não faria feio como uma versão estendida de um episódio de Black Mirror - é um verdadeiro Tesouro Cinéfilo. A obra não acaba quando termina - aliás, tudo fica em nossa mente. Inclusive a trilha sonora exuberante, robusta e melancólica desenhada e executada pela Karen O, do Yeah Yeah Yeahs. Fundamental.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Tesouros Cinéfilos - Gosto de Cereja (Ta'm e Guilass)

De: Abbas Kiarostami. Com Homayon Ershadi, Abdolrahman Bagheri, Afshin Khorshid Bakhtiari e Safar Ali Moradi. Drama, Irã / França, 1997, 95 minutos.

Gosto de Cereja (Ta'm e Guilass), assim como ocorre com a grande maioria dos filmes feitos no Irã, possui uma história simples, linear, sem efeitos especiais ou grandes interpretações. Não é por acaso que a escola denominada como Novo Cinema Iraniano - vertente em que se produzem obras de diretores como Jafar Panahi, Majid Majidi e Abbas Kiarostami, entre outros - está muito mais para Neorrealismo Italiano do que para Cinemão Hollywoodiano. (o que não é nenhuma surpresa, vamos combinar) O estilo por vezes lento, capaz de emular um cotidiano pasmacento, numa alegoria para uma rotina aparentemente trivial e inegavelmente realista combina bem com a lógica vista nos filmes do pós-guerra na Itália, em que características como uso do som diegético, filmagens em locação, tom documental e uso de atores não profissionais eram a ordem do dia.

Na obra de Kiarostami, peça central do movimento, somos apresentados a um homem de meia idade (Ershadi), que vaga em sua caminhoneta pelas ruas empoeiradas de Teerã atrás de alguém que possa lhe auxiliar em um trabalho bastante particular. Disposto a se suicidar, o homem, chamado de senhor Badii, precisa de alguém que lhe acompanhe em sua jornada até um local pré-determinado para que, em um buraco junto a uma árvore, seja possível lhe enterrar (caso seja bem sucedido) ou lhe socorrer (caso a sua tentativa seja falha). Evidentemente a tarefa não será fácil, por mais que Badii ofereça uma boa quantidade de dinheiro a qualquer um que aceite ao menos ouvir a sua proposta. E a cada novo caroneiro, aumenta a nossa curiosidade sobre as motivações desse homem de ar melancólico, aparentemente infeliz e, talvez, solitário.



E aí está, justamente, um dos grandes acertos de Kiarostami. Ao não apresentar absolutamente nenhum flashback do passado do protagonista, nos tornamos impotentes diante de sua ação e, ao mesmo tempo, incapazes de tomar qualquer tipo de partido. Ele deve se matar? Sim? Não? Ele parece ter dinheiro o suficiente. Por quê dar cabo de sua vida então? Ele sofreu por amor? Perdeu alguém importante em sua vida? São todas perguntas que possibilitam a nós, espectadores, ampliar a noção de existência desse sujeito para um sem fim de possibilidades. Afinal de contas, seremos nós que elaboraremos, de forma ativa, uma parte dessa história. Será por meio de nossas ideias e fluxos de pensamento que refletiremos sobre nossas próprias vidas, bem como sobre como as conduzimos, analisando ainda o que é importante ou não em nossas existências.

Transformando ainda cada passageiro em um personagem essencial para a trama, Kiarostami torna, assim, a obra muito mais dinâmica do que os cenários desérticos e o clima arrastado fariam parecer. Se o soldado iraniano visto logo no começo do filme parece disposto a fugir a todo o custo daquela que pessoa que ele considera maluca, o seminarista visto no instante seguinte não apenas ouve toda a conversa do protagonista como ainda, de maneira comovente, tenta demovê-lo de sua ideia. Mas certamente nenhum dos "caroneiros" de Badii supera o professor universitário turco que trabalha como taxidermista e que conta a sua própria história sobre ter tido vontade de se suicidar quando jovem. E é praticamente impossível não sorrir ao ouví-lo falar sobre a importância do sabor das amoras, do nascer do sol e da felicidade das crianças indo para a escola, quando resolveu desistir de sua ideia.


Inconclusivo em seu final, Gosto de Cereja ainda é recheado por uma série de imagens metafóricas e enigmáticas que dão conta da qualidade de Kiarostami enquanto diretor. Se ao parar em uma pedreira para observar as escavações Badii vê sua própria sombra sendo soterrada por uma máquina que lhe despeja terra, por outro é capaz de trazer vivacidade para o encontro peculiar com um afegão que trabalha como segurança - e lhe oferece um prato de omelete. São aquelas coisas simples da vida que nos fazem pensar, que nos envolvem e que nos tocam, nos tornando parte existente do desalento daqueles que vemos. Sensação que é aumentada pelo fato de Kiarostami ter utilizado, em grande parte das filmagens, atores não profissionais, que sequer tinham lido o roteiro. Construir um filme assim, delicado, sutil e ao mesmo tempo potente sobre um tema tabu é digno de Palma de Ouro em Cannes. O prêmio, concedido em 1997, não foi por acaso.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Foi um Disco Que Passou Em Minha Vida - Radiohead (OK Computer)

Lembro que tinha dezesseis anos quando assisti ao clipe de Paranoid Android, do Radiohead, pela primeira vez. Era uma daquelas tardes invernais em que a MTV Brasil ainda exibia programas vespertinos bacanas, como o Gás Total. Admito ter ficado paralisado na ocasião. Que música era aquela? Cheia de idas e vindas, de curvas nunca óbvias e de andamentos curiosos amparados por um vocal lamurioso que colocava a canção no limite entre os rockões para serem cantados no estádio e a musiqueta intimista pra ouvir trancado no quarto. E o que dizer da parte visual do clipe? Uma sequência de imagens em animação capaz de denunciar um certo desencanto com uma sociedade doente, violenta, intolerante e individualista. Sim, agora em maio - mais precisamente no dia 21 - faz 20 anos que o grupo inglês lançou o clássico OK Computer - Paranoid Android é a segunda canção do álbum. Mas o impacto causado pelo lançamento na época não chega a superar o fato de que o registro, nos tempos que vivemos hoje, nunca foi tão atual.

Comprar o disco envolveu uma pequena epopeia que aliava a junção dos trocados necessários para a aquisição do registro e a torcida para que ele de fato EXISTISSE em uma loja do shopping local que, há muitos anos, já nem existe mais - e que certamente, na ocasião, estava mais interessada em comercializar os álbuns de alguma boy band. Com o sucesso na empreitada - os R$ 16,50 mais bem empregados DA VIDA - corri para casa para poder escutar o trabalho (na época lembro que o videoclipe de Karma Police já era figurinha fácil na programação da mesma MTV). Mas devo confessar que a experiência, inicialmente, não foi fácil. Quem conhece o OK Computer sabe que não se trata de um registro simples. O clima desalentador, as letras potentes (e, inicialmente, incompreensíveis), os excessos eletrônicos, a melancolia sôfrega, os refrões escassos... para alguém de 16 anos, definitivamente, aquela foi uma experiência difícil, mas transformadora. E que me fazia perceber algo diferente e a gostar mais do disco quanto mais eu insistisse em ouvi-lo!



Aliás, até hoje escuto o trabalho envolvido por um amontoado de sentimentos que me fazem não cansar nunca do álbum. Se hoje, para escutar música, basta dar um play no Spotify, no final dos anos 90 a aquisição de um CD qualquer de um grupo ou artista que amávamos representava uma espécie de conquista particular. E não foram poucas as noites em que peguei escutando o disco com um pequeno dicionário de inglês ao lado, com o objetivo de traduzir as letras metafóricas, irônicas, complexas e abundantes de sentidos. E que, hoje, me fazem perceber o quão genial era - e ainda é - Thom Yorke e companhia. Fitter, healthier and more productive / A pig / In a cage / On antibiotics canta o vocalista em Fitter, Happier, capaz de resumir de maneira completa o espírito de uma sociedade individualista, hedonista, niilista e alienada. (aliás, a canção "divide" o álbum e acaba funcionando como elemento central do fluxo de ideias previsto por Yorke para a concepção do trabalho)

O caos do cotidiano trazido por OK Computer pode ser resumido ainda por uma vida em que alienígenas, acidentes automobilísticos, yuppies que trabalham em busca do sonho americano, reações químicas, doenças, politicagem, capitalismo desenfreado, corações machucados, trabalhos que nos matam lentamente e feridas que não curam "convivem" permanentemente ao lado do homem, que parece o tempo todo lutar para sobreviver. O espírito anárquico das melodias - e dos elementos eletrônicos e de uso de instrumentos musicais pouco usuais - transforma o registro em um material riquíssimo do ponto de vista sonoro, nunca previsível e invariavelmente surpreendente. Tudo combinando com o trabalho gráfico apresentado pelo encarte, que provoca inquietação, instiga e nos faz olhar atentamente em busca de significados escondidos em meio a símbolos e ícones que transformariam qualquer aula de semiótica em algo muito mais divertido.


Como não poderia deixar de ser, o disco me fez perceber que o rock and roll podia oferecer muito mais do que os cabelos compridos, as camisas de flanela e os All Star de cano alto do grunge - que a algum tempo já definhava. Foi a partir de OK Computer que todos nós nos sentimos (é possível assim dizer) impelidos a descobrir outras bandas, grupos e artistas de cenas mais independentes ou alternativas, o que provavelmente forjou o gosto musical de uma geração inteira - e não é por acaso que o registro de Thom Yorke e companhia é colocado AO LADO de Nevermind, do Nirvana, como um dos mais importantes dos anos 90. A partir do trabalho o Radiohead atingiu outro patamar dentro da indústria da música. Bom para os fãs que encontrariam, mais adiante, um outro registro espetacular, chamado Kid A (2000). Mas essa, é outra história.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Novidades em DVD - O Mar de Árvores (The Sea Of Trees)

De Gus Van Sant. Com Matthew McConaughey, Ken Watanabe, Naomi Watts e Katie Aselton. Drama, EUA, 2015, 110 minutos.

Autor de pequenos clássicos modernos, como Gênio Indomável (1997), o diretor Gus Van Sant costuma se dividir entre obras mais engajadas - casos de Milk - A Voz da Igualdade (2008) e Terra Prometida (2013) - com outras que trazem um espírito documental e um tipo de romantismo meio desviado, nunca lógico e que é apreciado poe fãs de cinema alternativo mundo afora - como é o caso do tocante Inquietos (2011). O Mar de Árvores (The Sea Of Trees) integra este último grupo de películas. É aquele tipo de obra um pouco mais lenta, com um tipo de fluidez (ou falta de) particular que poderá afastar os neófitos e talvez até irritar àqueles que já estão acostumados com o modus operandi do americano. Quem comprar a ideia - é o caso deste jornalista que vos escreve essa modesta resenha - encontrará um filme ao mesmo tempo razoável, mas igualmente esquecível.

Inspirada em fatos reais, a trama nos joga para o meio da floresta Aokigahara - conhecida também como Sea Of Trees -, e localizada no pé do Monte Fuji, no Japão. Por conta da vastidão da mata fechada, de uma peculiar ausência de animais e por possuir um tipo de "silêncio perturbador" (como definem pesquisadores do local), é o segundo lugar do mundo mais procurado por aqueles que desejam cometer suicídio - atrás apenas da ponte Golden Gate. É para lá que vai o americano Arthur Brennan (Matthew McConaughey) com a aparente intenção de dar cabo de sua própria existência. No local ele encontrará o japonês Takumi Nakamura (Ken Watanabe) que, também desiludido com a vida, parece ter a mesma intenção. Bom, não é preciso ser nenhum gênio cinematográfico pra saber que a jornada dos dois homens servirá para reflexões a respeito de suas vidas, de futuro e também de passado.



Com estrutura bastante convencional, a obra vai e vem no tempo para mostrar como era a vida de Arthur - que é o verdadeiro protagonista - ao lado da esposa Joan (Naomi Watts) e de como as suas trajetórias culminarão em sua decisão. Seus conflitos são apresentados tomando por base uma convivência tediosa reforçada por uma fotografia sombria, o que faz com que, mesmo em ocasiões festivas - como jantas com amigos - ambos pareçam no limite da amargura e do desencanto mútuo. Assim, não deixa de surpreender uma pequena reviravolta na trama, que faz com que percebamos que os reais motivos para o ímpeto suicida do protagonista são outros - e não aqueles que imaginávamos, talvez relacionados a alguma traumática separação. (e esse não deixa de ser um dos pecados do filme, que constrói a convivência e a rotina do casal de maneira meio "torta", o que faz com que pouco nos afeiçoemos a eles)

Ainda assim, ao flertar de esbarrão com idéias estabelecidas em outros filmes - uma das mais perceptíveis envolve a lógica de imprevisibilidade abordada em Magnolia (1999) - a obra consegue alcançar outro patamar e ainda encontra, em seu terço final, a redenção capaz de torná-la melhor do que pareceria. Talvez para muitos cinéfilos aquilo que se verá próximo da conslusão seja a mais óbvia das obviedades (com o perdão da redundância) - isso sem levarmos em conta os possíveis "absurdos" dos pontos de vista metafísico, religioso ou espiritual naquilo que assistimos. Só que eu sou o fã de cinema mais desligado da história e me surpreendo até mesmo com o plot twist mais banal possível. E, de quebra ainda curti a lógica de romance a moda Ghost - Do Outro Lado da Vida (1990) estabelecida pela narrativa. Ponto para Van Sant.

Nota: 7,0

quinta-feira, 6 de abril de 2017

10 Considerações Sobre o Festival de Cinema de Lajeado

1) Sim, sabemos que já faz cinco dias que o 1º Festival de Cinema de Lajeado terminou, mas o caso é que a impressão que dá é de que demora um pouco pra cair a ficha do quão DEMAIS foi esse evento e do quão incrível foi fazer parte tão diretamente dele. No caso este modesto jornalista que vos escreve aqui periodicamente foi convidado para fazer parte da comissão de selecionadores, equipe que assistiu 288 curtas-metragens com o objetivo de promover à mostra competitiva só a nata da nata - ou as 55 obras finalistas. (e eu não consigo descrever o quão honrado fiquei por fazer parte dessa missão)

2) Ver o campus da Univates respirando cinema durante três dias - sem contar todas as semanas de preparação prévia - foi absolutamente sensacional. A lamentar apenas um fato que foi observado pelos realizadores, produtores e outros envolvidos: o de que os próprios estudantes da Instituição não prestigiaram plenamente o evento, optando por não ir para o Teatro quando do anúncio da liberação por parte dos professores. (o que parece comprovar o fato de que não foi por falta de incentivo que a participação não ocorreu)

3) Acho que não foi destacado em nenhum lugar da mídia local - não que eu tenha visto - o clima de protesto que tomou conta da noite de premiações (o grande vencedor, disparado, foi o FORA TEMER, com o ilegítimo sendo lembrado em praticamente todos os discursos dos vencedores, inclusive no da justa homenageada Julia Lemmertz). Aliás, uma reação natural dos envolvidos, dadas as políticas de exclusão de direitos e de apoio ZERO a educação e a cultura em nosso País, promovidas pelo (des)Governo golpista.



4) Nesse sentido, louvável a iniciativa do idealizador do evento, o empreendedor Lauro Bergesch. Ao lado de uma linda equipe - e aqui saúdo em especial os amigos Monique Mendes e Alexandre Derlam - conduziu todo o Festival da melhor maneira possível. Fica a torcida para que este possa se tornar anual, fazendo parte do calendário fixo de nossa cidade.

5) Ouvi de mais de uma pessoa durante os dias de Festival: "Bah, não achei que assistiria filmes tão impactantes". E, escutar isso, é de encher de orgulho a comissão de selecionadores que debateu MUITO com o objetivo de incluir entre as finalistas, obras que discutissem questão de gênero, de injustiças sociais, uso de novas tecnologias, de igualdade de direitos, de sujeitos a margem da sociedade ou de temas modernos, como intolerância, racismo e preconceito. E, só pra citar algumas, obras como As Mina na Batalha, Preto Pobre Puto, Deus Neon, Djorge - Da Bonja Pro Mundo, Apaixonadinhos, Quem Luta Ocupa, Autopsia e Corpo Nu são ótimos exemplos nesse sentido. Sim, o tema do Festival eram as belezas naturais. Mas no fim das contas o mundo, como estamos vendo, não é tão belo assim. (e o debate pode contribuir para que este melhore)

6) Sobre os vencedores, adorei a conquista na categoria máxima para o Boa Noite, Charles. Quem pôde assistir a criativa película dos Irmãos Carvalho percebeu que ela era completa, flertando com o experimental, com o documental, com a ficção, com a animação e com o nonsense! Além de ser uma imprevisível história! Não tinha como não ser a grande campeã. (e é uma pena não saber onde posso encontrar o filme, já que queria mostrá-lo para outras pessoas que não puderam assisti-lo nos dias do Festival)



7) Ver o Deus Neon - obra arrebatadora sobre os tempos de intolerância e ódio, especialmente aquele disseminado na internet - faturar o prêmio de Melhor Ficção da Associação de Críticos também foi algo que me agradou bastante. E, é preciso que se diga que os prêmios para o filme Demônia - Melodrama em Três Atos também foram ótimos, porque esse é um dos mais imprevisíveis (e divertidos) filmes do Festival.

8) Existem filmes que não faturaram nenhum prêmio mas PRECISAM ser vistos por vocês, imediatamente (só não sei como): O Homem Que Virou Armário, Apaixonadinhos, A Vida Como Rizoma, Retrato de Dora, As Mina na Batalha e Espeto Corrido (este último talvez teria alguma chance se houvesse alguma premiação de público, tamanho o carinho demonstrado ao filme e ao seu realizador, o jovem Felipe Peroni, nos bastidores). Ah, e vale citar os realizadores locais, com destaque para a querida amiga Natasha Bouvier que apresentou o imperdível documentário experimental Sons Que Falam durante a mostra não competitiva.

9) O Roger Lerina foi o melhor Mestre de Cerimônias possível: leve, divertido, carismático, capaz de brincar com situações inusitadas e até mesmo inesperadas. Já a Bico Fino Brothers Band mostrou a tradicional qualidade rock and roll a que já estamos acostumados.



10) Problemas técnicos? Houve. Há muito a melhorar? Há. Mas quem se importa? Só o que queremos saber é: quando é o próximo mesmo?

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Cinema - Fragmentado (Split)

De: M. Night Shyamalan. Com James McAvoy, Anya Taylor-Joy, Betty Buckley e Haley Lu Richardson. Suspense / Fantasia, EUA, 2017, 117 minutos.

Não sei como é pra vocês, mas para este jornalista e cinéfilo que vos escreve parece haver um certo magnetismo (ou encantamento) quando o assunto é o diretor M. Night Shyamalan. A impressão que temos é a de que faz mais ou menos uns 189 filmes que ele não entrega uma obra realmente decente mas, ainda assim, que causo é esse que faz com que fiquemos vidrados a cada novo lançamento seu? Assim que saiu o trailer de Fragmentado (Split), já o coloquei imediatamente na lista dos "a ser assistido". Como é de praxe, o filme não é lá tãããão bom - e, paremos de uma vez por todas com aquela história de aguardar eternamente um novo O Sexto Sentido (1999). Mas ao menos, se não levarmos aquilo que assistimos tão a sério, a película diverte com sua mescla de humor caricato e suspense peculiar.

No começo da obra vemos um homem sequestrando três jovens em um estacionamento e as levando para uma espécie de abrigo subterrâneo. O homem em questão é Kevin (James McAvoy), sujeito de personalidade excêntrica e, ao menos aparentemente, muito violento. Só que a agressividade inicial, logo da lugar a uma sensação de estranhamento quando percebemos que o raptor possui algum tipo de transtorno - no caso o Transtorno Dissociativo de Personalidade -, distúrbio que faz com que ele retorne ao porão na pele de um jovem obcecado por moda, como um menino de apenas nove anos ou como um estudioso da história do Oriente Médio. Assim, é possível constatar que o homem autoritário responsável pelo crime em questão é apenas uma das facetas de um sujeito perturbado e que parece possuir algum tipo de trauma em seu passado.



Apesar de ser vendida como um brutal suspense, a obra flerta com o humor em vários momentos - seja na exótica (e dispensável) aparição do diretor em uma sequência, seja na caracterização das várias personalidades do protagonista o que exige, diga-se, uma interpretação que, apesar dos esforços de McAvoy, parece estar bem longe de seu alcance (ou capacidade) - o que é uma pena, já que ele é, inegavelmente, um sujeito carismático. É claro que, em um filme de Shyamalan, a porção de suspense e a predileção por pequenas reviravoltas se mantêm de pé até os instantes finais, quando o surgimento de uma vigésima quarta personalidade no rapaz, torna a película o suspense efetivamente prometido - com direito a boas doses de violência. O que não significará necessariamente a redenção ou a transformação neste em um thriller de grande qualidade.

Ainda assim, é preciso dar algum mérito ao diretor indiano, que se mantém firme no propósito de fazer um cinema autoral - ainda mais num universo recheado de prequels, reboots, sequências e adaptações. O mesmo vale para a escolha do tema e não se pode negar que a abordagem a respeito da doença do protagonista é fascinante, nos fazendo pensar o tempo todo a respeito das possibilidades existentes em cada uma das personalidades de Kevin. Uma pode ser mais forte que a outra (do ponto de vista físico)? Falar outras línguas? Ter inteligências distintas? E a dor física? Pode ser sentida de forma diferente por cada uma delas? E os elementos sobrenaturais? São capazes de aflorar? É o que em partes tenta responder, dentro do filme, a psicóloga Karen Fletcher (Betty Buckley).


[SPOILER ALERT: não leia se não viu o filme e não quer ter alguma surpresa comprometida] Mas os fãs do diretor se surpreenderão MESMO com os últimos momentos da película quando da aparição de um personagem que já faz parte do universo do indiano. Será algum indicativo de continuação? Ou será que foi apenas uma brincadeira? Pra quem gosta de surpresas e reviravoltas, pode-se dizer que a sequência - que mostra o personagem de Bruce Willis em Corpo Fechado, interagindo com um grupo desconhecido em uma cafeteria - foi realmente inesperada. (ainda que os instantes anteriores a este sejam realmente decepcionantes, especialmente no que diz respeito a redução do impacto na abordagem da pedofilia - e se o tema fosse melhor tratado este poderia ser um filme realmente GRANDE do diretor, como nos velhos tempos)

Nota: 5,3