A nossa relação favorita do ano é sempre a mais difícil de elaborar. Primeiro porque, como de praxe, nunca conseguimos acompanhar tudo o que gostaríamos, com a devida atenção. Afinal, para ouvir um álbum nacional com atenção, é preciso mais do que o play enquanto lavamos a louça ou limpamos a casa. Sim, esse pode ser o ponto de partida de tudo, até porque ninguém é de ferro. Mas lá pelas tantas eu tenho por hábito abrir o meu caderno e, mesmo sendo leigo, fazer anotações disco por disco, música por música, destacando elementos que agradam, outros nem tanto. É a forma de tentar, minimamente, organizar esse levantamento para torná-lo, de alguma forma, satisfatório. Mas, como eu disse no começo: ele nunca estará completo. Até por que, por mais que ouçamos horas e horas de material, nunca chegaremos a uma conclusão definitiva.
E, nesse cenário, há ainda um outro problema: o de que estamos em uma bolha em que prestamos atenção somente àquilo que chega até nós, no nosso nicho. O que resulta em estilos ignorados, gêneros que passam ao largo e grandes e pequenos artistas que, sem querer querendo, são deixados de lado. Sim, parece que a gente já tá pedindo desculpas por qualquer equívoco ou ausência ocorrida, mas é mais ou menos isso mesmo. Talvez não seja proposital. Algo deliberado. Apenas aconteceu. Ainda mais em um ano tão espetacular para a música brasileira, como esse 2024. A nossa produção, afinal, nunca foi tão democrática, tão diversa, tão cheia de possibilidades. Cabendo a nós, ouvintes, buscar aquilo que se faz para além do agronejo milionário, que ocupa absolutamente todas as paradas. De Céu à Liniker, passando por Duda Beat e Tuyo, eis o nosso pequeno recorte.
30) Irmão Victor (Micro-Usina): O conceito de uma usina - um tipo de estabelecimento industrial equipado de máquinas, onde se processa e se transforma a matéria-prima -, parece totalmente adequado ao que encontramos no quinto trabalho do gaúcho Marco Benvegnú, o nome por trás do Irmão Victor. Seja pela dificuldade em categorizar o som - que mescla estilos distintos indo da psicodelia sessentista, passando pelo soft rock da década seguinte, até chegar ao jangle pop moderno -, pela complexidade dos arranjos ou pela poética torta, tudo parece elaborado em um processo contínuo de (des)construção, como ele explicou em entrevista ao Tenho Mais Discos Que Amigos. "Eu costumo sair para caminhar na rua, paro em algum parque, alguma praça e escrevo algumas ideias" salientou a respeito do processo criativo. O resultado são canções de letras divertidas e literárias que aludem de Mutantes a O Terno, como é o caso da ótima Amarrado no Pulso do Cão (É uma febre ao contrário / Desencantando a cada passo / Sempre mastigando gelo). Aliás, os títulos curiosos também são um capítulo a parte, sendo meio impossível ficar alheio a Miska Bella Foi a Missa, Rua da Catequese e, especialmente, a excêntrica e estranhamente onírica Canção de Ninar Landinense.
29) A Banda Mais Bonita da Cidade (O Futuro Já Está Acontecendo): "Meu amor / Sou teu companheiro / Pra subir montanhas / E atravessar o mar", "Se tudo mudou / Já não tem mais jeito de voltar / Mas todo movimento é circular", "Toda brincadeira tem um fundo de verdade / O amor me traiu / E me deu o mundo". Pode até não haver um conceito definido no quarto trabalho da adorada Banda Mais Bonita da Cidade. Mas não dá pra negar que parece haver certa lógica, uma organização, quando a gente observa as frases acima, que se espalham em meio as oito canções do disco. Claro, com quinze anos de estrada, o quinteto de Curitiba já passou por muitas coisas em suas vidas - experiências traumáticas ou não, desafios, anseios, conquistas. E a maturidade parece também aparecer em cada curva do registro, com suas composições sólidas, menos apressadas e que parecem ir na contramão desse mundo tão acelerado que vivemos. "Acho que é um reflexo de como a gente tem sentido a vida mesmo", explicou a vocalista Uyara Torrente em entrevista ao site Marramaque, a respeito da escolha do repertório - e das letras que combinam simplicidade com uma verve mais filosófica, de reflexão sobre o mundo, suas idas e vindas, movimentos de retorno, de chegadas e de partidas.
28) Luiz Amargo (Amor de Mula): Esse é aquele que entra na lista dos discos nacionais que ninguém ouviu - mas que ainda está em tempo de descobrir. Debochado e com certa disposição à zoeira, o artista é daqueles que tem um estilo descritivo, literário e irônico para abordar as particularidades do amor. Aliás, mais do que particularidades, as irracionalidades. O próprio título do registro alude aos exageros proporcionados pela paixão arrebatadora. Que o artista converte em nove canções que trafegam pelo jangle pop, indie, folk e pela música de vanguarda paulistana de forma leve, fluída. Claro que esse perfil mais descontraído, jamais significa alienação. Aliás, o músico é neto de perseguidos políticos pela ditadura e as questões políticas e dilemas sociais aparecem, salpicadas aqui e ali, como no caso da ótima Amor, Cadê a Mula? (Você, vassalo / Ralou até o talo / Depois vestiu / A roupa de espantalho), que flerta com a psicodelia setentista, ainda que em sua alma resida o fiapo do sertanejo. O expediente se repete em outros momentos, como em Fruta Madura, um rock de influência paraguaia e de letra que quase fornece um resumo do estado das coisas no Brasil atual (Nesse mundo em crise, todo sequelado /Falei pra não investir na bolsa / Faz um poço artesiano, horta, boi, arado).
27) Melly (Amaríssima): Pode soar meio estranho, mas amaríssimo é o superlativo de amargo. E ouvindo as músicas do primeiro registro de inéditas da baiana Melly, que trafegam com suavidade pelo R&B, o samba reggae, o soul e o rap, o termo não parece combinar muito. Há uma leveza ali, é inegável. Que ondula pelas melodias nunca exageradamente expansivas. Ainda assim, talvez as aparências enganem. Versátil, a artista passa por temas de crescimento pessoal e amor com uma franqueza surpreendente - ainda mais pra quem se diz tímida. "É que amadurecer, sinestesicamente, me remete ao amargo", explicou em entrevista à Rolling Stone. Sim, sair da adolescência pra vida adulta, quase sempre é desconfortável. No caso da artista, mesmo com apenas 22 anos, ela converte dilemas existenciais, paixões fugazes e reflexões cotidianas em um conjunto homogêneo de canções - diretas, bem produzidas e cheias de personalidade. Um bom exemplo desse conjunto, pode ser encontrada na bela Rio Vermelho, parceria com Russo Passapusso, uma verdadeira ode à tranquilidade e à cura emocional proporcionada pela natureza, que é reforçada pela letra filosófica sobre a passagem do tempo (Manhã de Sol, deixa queimar / Preocupações, soltas no ar / Já que é amanhã, deve esperar).
26) Oruã (Passe): Definir o tipo de som feito pelos cariocas do Oruã não é tarefa muito fácil. Para além da mais evidente psicodelia setentista de guitarras ondulantes, o coletivo mescla kraut rock, afrobeat, free jazz, candomblé, Clube da Esquina e indie pop anos 90 de uma forma única e homogênea. Em linhas gerais, quem acompanha o trio formado por capitaneado por Lê Almeida parece saber exatamente o que vai encontrar a cada registro: um som colorido mas nunca artificial, cru e sem neurose. "O Oruã é filho do centro do Rio de Janeiro, nasceu à noite e frequenta os bailes pela madrugada", resume o coletivo, nos materiais de divulgação. Para quem se aventura por esse quarto álbum os caminhos podem ser inesperados, contraditórios, como uma metáfora para a cidade. O mar e o litoral que contrastam com a decadência do centro, a riqueza dos bairros nobres em desacordo com as favelas e a periferia, o surfe idílico de comunhão com a natureza, batendo de frente com o concreto e a aspereza das ruas. Há algo evocativo, quase como uma miragem que faz colidir o cartão postal com a pobreza, a injustiça e a violência. E canções de títulos quase autoexplicativos como Caboclo, Escola Construtivista, Insensatez Abolição e Análise da Conjuntura contribuem para a formação desse cenário denso, complexo e enevoado da metrópole borbulhante. Um sopro de criatividade.
25) Maria Beraldo (Colinho): Um disco que cresce a cada nova audição. E que clama pela repetição, dada a quantidade de elementos espalhados em cada canto. De essência heterogênea, especialmente pela variedade de estilos - que resultam em uma sonoridade inquietante, que lembra uma mistura de FKA Twigs com Fiona Apple -, esse segundo registro da artista parece ampliar ainda mais as discussões sobre sexualidade lésbica, identidade queer e questões ligadas à gênero, sempre de forma sedutora, retirando o ouvinte da zona de conforto. "Me leva no dedo molhado, o cheiro, o gosto da minha / Viaja essе mundo lembrando do peso da minha bunda no teu / Colinho", provoca já na arrancada, com a faixa título - canção de melodia fragmentada, capaz de gerar estranhamento. Esse sentimento de fuga do óbvio percorre todo o registro, que navega em meio ao jazz, ao pop de vanguarda, ao funk e à eletrônica, de forma criativa, torta. As raras candidatas à hit, caso de Truco, que fez parte da trilha sonora do filme Regra 34, tem versos repetidos quase como um mantra, enquanto a base instrumental hipnótica parece se expandir. Com inspiração em outras artes, como a literatura - e em autores como Jorge Amado e James Baldwin -, a musicista constrói uma obra teatral, política e cheia de vigor.
24) Bebe (SALVE-SE!): "Quem vai me salvar? A não ser eu mesmo?". A pergunta que fica ao final da introdutória faixa título do segundo registro de estúdio de Bebe, parece pavimentar as ideias que se espalharão pelo disco. A canção é doce, quase mântrica - o que é reforçado pelo coralzinho gospel. Mas nela reside uma potência provocativa, que dialoga com uma artista que não apenas está mais madura, mas também mais confiante de suas escolhas. "Quando as pessoas chegam na minha idade, começam a viver conflitos, e a gente vai conseguindo aprender a mudar o nosso comportamento em relação a essas coisas. Tentar se posicionar mais, entender que a gente não tem controle sobre tudo, conseguir separar necessidades humanas reais e necessidades impostas pra gente", detalhou, em entrevista à Revista Noize. Experimental, harmônico, sofisticado e muito bem produzido, o álbum é mais um a mesclar R&B, rap, jazz e pop eletrônico, com um resultado moderno, futurista. É um tipo de música que se não chega a ser totalmente inovadora, no mínimo dialoga com a contemporaneidade. O que pode ser comprovado nas ótimas Assome e De Ponta Cabeça, esta em parceria com o rapper BK. "Quero me relacionar, ser ouvida por pessoas da minha idade, e talvez fomentar a cena que está a fim de estar aberta", comentou.
23) Chico Bernardes (Outros Fios): Canções que parecem ganhar cores mesmo em meio à melancolia. Letras poéticas que refletem sobre passado e futuro ou a respeito da transição do tempo - mas sem nunca soarem meramente nostálgicas. Melodias que crescem para além da voz e do violão minimalista que marcariam o autointitulado registro de estreia, lançado em 2019, o que permite alcançar outros lugares sonoros. Em linhas gerais, são muitos os elementos que evidenciam o amadurecimento do cantor e compositor, que parece mais iluminado, com brilho próprio. Experimental mas acessível - especialmente pelo uso de sintetizadores solares - esse segundo álbum parece também mais existencialista que o projeto anterior - o que certamente tem a ver com as transformações ocorridas em um período de pandemia, de isolamento, de ausência de laços, de trocas e de afetos. "No geral, acho que abriu (o disco) ao ouvinte uma viagem solitária, de maneira pessoal. Imagino que vá ressoar diferente para cada um", explicou em entrevista ao site Tracklist. Um bom exemplo do conceito do trabalho pode ser percebido em canções como Até Que Enfim, em que a transitoriedade da vida se torna palpável (A vista é bem melhor do que era antes / Mas nos custa entender / Passagem).
22) Pietá (Nasci no Brasil): Exaltar a música brasileira. O que veio antes, o que existe agora e o que vem depois. O passado e o futuro, a tradição e modernidade, em busca de construir uma uma sonoridade e poesia únicas, que se conectem com as pessoas. Que lhes aproxime da arte, para além da música. Se fosse possível descrever o objetivo do terceiro álbum do sempre ótimo coletivo Pietá, penso que ele se aproximaria disso. Afinal, poucos grupos nacionais fazem tão bem a aproximação entre temas folclóricos, ancestrais e regionalistas, com assuntos mais amplos ligados à política, a sociedade e à cultura. Há um apelo ao popular que, nesse 2024, fez a banda capitaneada por Juliana Linhares furar a bolha, já que a linda Perfume de Araçá (Quando ponho os olhos em você / Vem essa alegria me tomar), foi trilha sonora da novela No Rancho Fundo da Globo. Mas há ao mesmo tempo um componente erudito, que tem a ver também com a formação acadêmica do trio, completado por Fred Demarca e Rafael Lorga. "O álbum é uma afirmação das belezas que brotam das dúvidas, das sombras e das mazelas de um País. Ao que ainda é possível de ser vivido e transformado", resumiu a banda, no material de divulgação. Se você tem dúvidas, tente não se emocionar com Temquitê ou O Tempo É Uma Pessoa.
21) Tuyo (Paisagem): A contemplação do comum como tema central. Em alguma medida, assim pode ser resumida a experiência com o terceiro registro de estúdio dos curitibanos da Tuyo - um álbum que tem a simplicidade como matéria-prima, mas sem jamais incorrer na mera banalidade. Mesclando novamente a soul music com o hiperpop, o R&B e o house, o trio formado pelas irmãs Lio e Lay Soares (vozes) e pelo músico Jean Machado, nos transporta para cenários idílicos, em que a passagem do tempo funciona como uma alegoria para o método artístico do grupo. "Fincamos o pé em coisas pelas quais a gente tem paixão e outras coisas que a gente nega, como as tendências à megalomania, a hiper configuração de palcos, a saturação do que é grandioso e monumental", explicou Lio em entrevista à Rolling Stone, justificando o processo mais lento, em tempos tão velozes. Aliás, a alternância entre a calma e a pressa, o silêncio e o grito percorrem o registro, que convida o ouvinte para adentrar um território conhecido, mas sob uma nova perspectiva. O resultado são canções magnéticas, como Devagar, Escuro Total e Dentro Dessa Noite, que equilibram na medida certa os ritmos brasileiros, com certo experimentalismo eletrônico - o que é reforçado pelos sintetizadores enevoados e primaveris.
20) Papisa (Amor Delírio): "Pode acreditar / Nem tudo é deserto / Depois da noite escura / Outro dia vai nascer / E quando acontecer / O sol brilhará". A janela abriu e o sol entrou. E tudo está mais aquecido, vivo. E não é que Fenda (2019), a estreia em disco da cantora paulista Rita Oliva, a Papisa, fosse excessivamente melancólico ou sombrio. Talvez ele fosse mais íntimo, com uma sonoridade mais densa, que unia misticismo e introspecção - aliás, a própria capa já entregava esse componente mais ritualístico (nas vestes, nas cores, nos adereços e maquiagens). Só que tudo isso foi há cinco anos, antes da covid-19 e de uma inesperada interrupção de tudo aquilo que estava programado. "Fiquei em um momento de luto pela pandemia – pelo mundo inteiro, pela música que tinha parado. Depois disso, percebi que eu queria realmente a música como um recurso para trazer encantamento para a vida, trazer sol, e foi essa a minha busca", explicou a artista em entrevista ao Scream & Yell. E esse aspecto mais ensolarado pode ser percebido não apenas nas melodias, que mesclam psicodelia moderna com o dream pop noventista, mas também nas letras, mais otimistas - o que pode ser constatado em canções como Vai Passar (do trecho que abre essa pequena resenha).
19) Pluma (Não Leve a Mal): O disco de estreia dos paulistanos da Pluma permite dizer que o pop nacional respira. Mas nunca o pop óbvio, previsível, que em duas ou três semanas já estará esquecido, frente a enxurrada de lançamentos. Não. Por que por mais acessível que o som do quarteto capitaneado pela vocalista Marina Reis possa parecer - serão muitos os refrãos na cabeça após duas ou três audições -, o registro também é marcado por certo experimentalismo que leva a sonoridade do minimalismo à expansão, promovendo uma mescla de indie rock, dream pop, neo soul e R&B. De Rita Lee à Tame Impala, as referências do coletivo parecem ser várias, unindo passado, presente e futuro com personalidade e uma aura própria. "Muitas vezes começamos com a parte instrumental, com ritmos quebrados, harmonias doidas, e eu sentia uma vontade de trazer algo que segurasse a música, que as pessoas tivessem mais facilidade em acompanhar", salientou Marina em entrevista à Revista Noize, a respeito do processo criativo do grupo e dessa busca pelo equilíbrio entre o popular e o virtuoso. O resultado são canções sólidas e primaveris, como Corrida!, Plano Z e Não Leve a Mal - esta última uma das mais perfeitas letras sobre a insegurança em uma nova paixão (Não leve a mal se não te olhei / Se desviei).
18) Rafael Castro (Vaidosos Demais): Vamos combinar que a espera por um novo disco do paulista Rafael Castro valeu a pena. São nove anos desde Um Chope e Um Sundae (2015) que, a despeito de ser um trabalho divertido - aliás, marca registrada do artista -, parece produto de uma época que não existe mais. Um período mais ingênuo talvez. Em que assuntos políticos, sociais e religiosos mal e mal apareciam - e é difícil ignorar esses temas hoje em dia. Aqui, o músico retorna em boa forma, apostando em letras ácidas, provocativas e em uma mescla de estilos que vai no limite entre o brega o o indie. A abertura, com a engraçadíssima Bar e Lanches, já dá o tom, ao dar aquela avacalhada na cultura hipster branquela de classe média, com seus hábitos gourmetizados e afetações de todo o tipo, mas que pagam vale de bacanas frequentando locais "raiz" (Um pico bom pra ser descoladex / E postar que é bom demais se misturar). O álbum pode até perder um pouco de força na segunda metade, justamente quando o músico resolve falar mais sério. Mas nada que apague o brilho de canções como O Algoritmo Te Escolheu (sobre a busca incessante dos influenciadores pelos holofotes), ou na autoexplicativa A Esquerda Errou Nesse Sentido (sobre os equívocos do progressismo cirandeiro).
17) Exclusive Os Cabides (Coisas Estranhas): Junte uma pitada do rock divertido da Superguidis, adicione uma dose da psicodelia moderna de grupos como o MGMT e acrescente ainda uma porção da sonoridade noventista de coletivos como Pavement ou Pixies e talvez consigamos resumir o tipo de som feito pelos catarinenses do Exclusive Os Cabides. Devo admitir que, em pleno outubro de 2024, tenho um pouco de ranço de banda metida a engraçadinha - mas o caso é que o completo descompromisso do segundo álbum do grupo, foi me cativando a cada nova audição. Sabe aquele sentimento de "já ouvi isso antes, mas parece totalmente novo" que, muitas vezes, ocorre diante de um novo álbum? Foi exatamente o que rolou aqui. Já escutei isso aqui dezenas de vezes. Mas bora lá escutar de novo. Meio que viralizado no Tik Tok por conta do single Lagartixa Tropical, o grupo é daqueles que mistura cenários improváveis, objetos inanimados, amores tortos e animais estranhos (e marinhos) em um conjunto que, curiosamente, forma uma unidade - um bloco que faz sentido. Pra quem quiser começar, recomendo ir direto em Luminária de Lava. Será um caminho divertido, ensolarado e sinuoso, que alternará melancolia e bom humor de forma certeira.
16) Duda Beat (Tara e Tal): Um pouco mais de safadeza e menos de sofrência. Talvez seja a maturidade e a confiança de chegar ao terceiro álbum, mas Duda Beat parece disposta a investir em um lado mais vivo, mais dançante, mais sensual, como um contraponto a certa melancolia brega, que marcaria o início da carreira. Em alguma medida, o título do projeto já evidencia esse processo de transformação, de uma cantora que mergulha em sentimentos mais intensos, mais potentes. "A 'tara' é o desejo de me libertar, de me jogar, e o 'tal' é o que vem depois, seja isso bom ou ruim", explicou em entrevista à Veja São Paulo, sobre aquele que parece ser também o seu disco mais eletrônico, dançante. Todas essas percepções são reforçadas frente a canções como as divertidas e ousadas Preparada e Saudade de Você, que conseguem ser românticas e hedonistas em igual medida, esta última culminando naquele que talvez seja o grande refrão da temporada (Saudade de você aqui agora / De noite vou te ver / Quero rebolar em cima de você / Bem melhor, bem melhor, bem melhor). São canções de melodias ricas, complexas, que jogam o ouvinte para o inferninho da pista de dança hipnótica e da noite fervilhante, mas sem ignorar aquele fundinho de melancolia que pode aparecer quando a madrugada avança.
15) Sofia Freire (Ponta da Língua): Batidas eletrônicas minimalistas,
percussão cadenciada, teclados sobrepostos, uma voz enevoada e limpa -
tudo no terceiro registro da pernambucana Sofia Freire exala modernidade
e personalidade. Ativa em uma série de projetos paralelos - seja como
instrumentista da banda de Gilberto Gil ou como integrante da banda
Eddie -, a artista avança para outros territórios com seu pop
levemente torto, nunca óbvio, que marcaria os registros anteriores. Nas
entrevistas de divulgação, a cantora foi bastante honesta ao falar do
bloqueio criativo que marcaria o período pandêmico. "Parecia que o que eu queria falar estava na ponta da língua, mas não saía",
afirmou, a respeito do conceito por trás do registro. O resultado é um
conjunto de canções de versos poéticos, repletos de jogos de palavras e
de figuras de linguagem, que falam de forma bastante íntima sobre
amadurecimento, relações humanas e inquietações sociais - como no caso
da sinuosa Arrebento (Como uma criança / Em sincera indisciplina / Ri e chora estourando / Os balões cheio de ar), que tem uma vibe meio Céu fase Tropix
(2016). "Me sinto realmente uma pessoa muito diferente do que há sete
anos atrás, liberta de muitas coisas, e o PDL é um retrato disso",
resumiu em entrevista ao site O Grito!
14) Carne Doce (Cererê): "Mais uma vez está na hora de partir / Pra ver se a distância pode nos unir". Poucas bandas exploram tão bem a dualidade da experiência humana como o Carne Doce. Em alguma medida é possível afirmar que delicadeza e selvageria caminham lado a lado com o pudor e a perversão, o bucólico e urbano, o amoroso e o sexy - o que é evidenciado não apenas nos versos cheios de antagonismos, mas também nas melodias que se alternam entre instantes urgentes e contemplativos. "É uma inclinação dela, dos autores que ela lê, de como ela vê a vida, e que ela acabou aprimorando com o exercício da composição” resumiu em entrevista ao Diário da Manhã, o guitarrista Macloys Aquino sobre sua parceria de grupo - e também de vida - Salma Jô. Nesse sentido as letras eventualmente reflexivas da compositora muitas vezes recebem como complemento uma sonoridade perfumada, primaveril, com guitarras melódicas e um apelo à natureza de sua região de origem, no caso o Centro Oeste. Com dez anos de carreira e um cancelamento nas costas - uma acusação de abuso sexual do baterista -, o coletivo chega ao quinto trabalho, Cererê, com suas principais atributos intactos, como comprovam as ótimas Noite dos Tristes, Suspiro, Na Bad e Festa.
13) Cátia de França (No Rastro de Catarina): "Em nossa casa podia faltar manteiga, mas nunca faltaria um livro". A frase dita por Cátia de França em mais de uma entrevista, serve pra dar conta da importância não apenas da educação, mas também da cultura em sua vida. Sua mãe, Adélia de França - a primeira professora negra da Paraíba -, sempre manteve a humilde residência da família "alimentada" por nomes como João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa e José Lins do Rego. E toda essa bagagem literária - que se une a uma formação musical completa -, permite à artista, atualmente com 77 anos, a construção de verdadeiros poemas em forma de canção, como aqueles que podem ser vistos nesse majestoso álbum, o oitavo da carreira da compositora. Unindo passado e presente e resgatando memórias que permanecem atuais, o projeto mescla pop, rock, reggae, bolero, samba e outros ritmos, traduzindo em alguma medida as incertezas dos nossos tempos. Nesse sentido, verdadeiros hinos como a feminista Espelho de Oloxá, escrito em 2017, seguem mais necessários do que nunca ("No meio da praça, que existe aqui dentro / Me vejo em protesto, nem tô me cabendo / Demandas do mundo, me importo, pertenço / Creio piamente na mudança dos ventos"). Pra ouvir sem pressa.
12) Nabru (Desenredo): "Saberemos viver uma vida melhor que esta / Quando mesmo chorando é tão bom estarmos juntos?". Não é por acaso que o poema Desenredo, da filósofa e romancista mineira Adélia Prado parece ser central na hora de conceituar o álbum de estreia da rapper Nabru. Nas curvas sofisticadas e cheias de ambiguidades da obra da poetisa, está o caminho para a artista desemaranhar: histórias, vivências, a coletividade, a vida na periferia, os relacionamentos e as conquistas. E a paixão pela literatura, claro, que fica evidenciada não apenas nos versos engenhosos, mas na quantidade infinita de referências literárias, muitas delas servindo de inspiração para o registro. Um bom exemplo nesse sentido pode ser encontrado em Letramento, uma pequena faixa lo-fi de flow cadenciado, enevoado e urbano, em que a experiência comunitária se une à importância da alfabetização, já que Nabru é estudante de letras na USP (A minha vida é um romance estilo Jorge Amado / Por isso faz todo o sentido Tereza Batista). "A minha mãe ama ler! [...] Então, leio desde sempre, às vezes não tinha comida na minha casa, mas sempre tinha livro", explicou em entrevista ao Monkeybuzz. O resultado são canções potentes, reflexivas e também bem humoradas, como 4Shared, Cidade Encantada e Jeguerê.
11) Adorável Clichê (Sonhos que Nunca Morrem): Seis anos entre um lançamento de disco e outro para uma banda pode ser um hiato bastante longo - ainda mais em tempos tão urgentes, apressados e cheios de acontecimentos relevantes como os que vivemos. Ainda assim, esse foi o período levado pela Adorável Clichê para maturar o seu segundo registro de inéditas - trabalho que parece mais polido, com os vocais mais destacados, do que na enevoada estreia O Que Existe Dentro de Mim. Na essência, pouca coisa mudou no shoegaze psicodélico de guitarras primaveris - uma das marcas registradas do quarteto. O que para os fãs certamente é um atrativo. Com apenas nove músicas e 34 minutos de duração, esse é daqueles discos que por vezes parecem nostálgicos, familiares - especialmente pelas melodias açucaradas, que servem de base para as letras enigmáticas, que se organizam como pequenos fragmentos poéticos. Um bom exemplo está na ambígua Devagar, que parece uma canção sobre amores apressados, mas talvez seja apenas a respeito da importância da conscientização no trânsito (E eu confio tanto em você / Mas eu não quero te perder / Então vá devagar). Atmosférico em alguns momentos, barulhento em outros, esse é daqueles pra ouvir repetidamente.
10) Tássia Reis (Topo da Minha Cabeça): Talvez o ouvinte mais desavisado tenha sido pego de surpresa com o novo direcionamento da cantora e compositora Tássia Reis, em seu quarto registro de inéditas. Afinal de contas, quem se acostumou com a mistura de trap, soul e R&B de fluidez sofisticada, que sempre foram a marca da artista, vai encontrar aqui uma variedade ainda maior de estilos, que podem ir do jazz ao samba, passando pela bossa nova e pelo funk - às vezes até na mesma música. Em alguma medida, Tássia trafega muito bem em cada gênero, o que tem a ver com a sua formação musical, já que ela começou a frequentar as quadras das escolas de samba ainda na adolescência, quando dançava, desenhava fantasias e escrevia poemas que, mais adiante, se converteriam em canções. Sem jamais deixar para trás a sua tradição ancestral - o que é expresso também em seu visual, nos seus figurinos e no estilo como um todo (ela é designer de moda de formação) - a musicista é um dos expoentes da música contemporânea negra. O que se reflete nas músicas, que abordam assuntos diversos sobre espiritualidade (Nós Vestimos Branco), realidade da periferia (Asfalto Selvagem) e autoaceitação (na faixa título). Claro que nem tudo é militância, como comprova a sensualíssima Tão Crazy. Uma joia.
9) Gracinha (Corpo Celeste): "Sempre fui fascinada pelo espaço sideral e o disco em sua completude permeia esse tema, fazendo uma analogia em relação a um corpo celeste que flutua no espaço sozinho, mas que ao mesmo tempo faz parte de um todo". A explicação dada por Isabela Graça - em entrevista ao site O Inimigo -, a respeito do conceito por trás de seu disco de estreia, faz todo o sentido no momento em que apertamos o play. Com sintetizadores atmosféricos e efeitos eletrônicos etéreos, a curta Vênus (Estrela D'alva), que abre o trabalho, nos conduz por um cenário espacial e onírico em que a letra parece fundir temas íntimos com assuntos mais amplos, de questões ancestrais, de raça e de gênero (Sonhos desaparecidos no meio de nós / Cantando que não vão calar minha voz / Soberana flor, regada por sóis). Esse é só o ponto de partida de um trabalho rico não apenas no arcabouço melódico, mas também em seus versos, que podem ser divertidos, como em Fantasma, com sua letra sobre as dores de sofrer um ghosting (Porque era só ectoplasma / Não era nada palpável / Não passava de um fantasma), sensuais (na safadíssima e metafórica V.O.) ou românticos (Farol, em que ela fala sobre a paixão à primeira vista por uma mulher e o desejo de escrever uma canção pra ela).
8) Zé Manoel (Coral): Lembranças de infância, memórias da juventude, sonhos que parecem se materializar. Na refinada tapeçaria que compõe o quinto trabalho do pernambucano Zé Manoel, parece haver uma nostalgia de algo sempre pronto a transbordar. Um devaneio que transpõe os limites pra se tornar algo palpável. Quem acompanha a carreira do compositor e pianista deve ter lido nas entrevistas de divulgação a explicação sobre a faixa título, canção que teria sido "soprada" em sonho por Dorival Caymmi ao músico. "Tanto a palavra, quanto a melodia vieram por Caymmi, que cantava ‘Coraaal…’. Fiquei pensando no que ele queria me dizer, e entendi que, se Dorival estava me dando essa canção, não era para eu fazer o que ele faria, era para fazer do meu jeito", comentou em entrevista ao Monkeybuzz. Do seu jeito, Zé Manoel entrega um registro que mescla idiomas e ritmos, fluindo com leveza solar e celebrando, acima de tudo, a negritude - reforçada por participações especialíssimas, como as de Luedji Luna, Liniker e Alessandra Leão. Standards americanos dos anos 70 (Golden), música africana (Malaika), ritmos regionalistas (Menina Preta de Cocar), pop de vanguarda (Canção de Amor Para Johnny Alf), tudo se mistura formando um conjunto único.
7) Luiza Brina (Prece): A oração menos no sentido estrito da religião e mais como uma súplica ligada à música, às artes e suas conexões. O que envolve também a sua capacidade de cura. Assim pode ser resumido, em alguma medida, o conceito por trás do do sofisticado, grandioso e poético quarto trabalho de estúdio da mineira Luiza Brina. Numa entrevista ao podcast Vamos Falar Sobre Música, a artista explicou que começou a escrever as suas orações - parte delas norteia o disco -, após uma severa crise de pânico ainda em 2010. Repleto de participações especiais - de Silvana Estrada a Iara Rennó -, o projeto parece reforçar a importância da coletividade no processo de construção das manifestações culturais. O que se observa não apenas na profusão de vozes, mas na riqueza das orquestrações. Ainda assim, por mais amplo e cheio de curvas surpreendentes que seja o registro, de forma alguma isso significa excesso de hermetismo. Com uma leveza quase onírica, a cantora converte cada canção em um fragmento de tapeçaria fina, capaz de se conectar com temas diversos ligados à MPB de fora do eixo - e que unem o o folclore, o encontro com a natureza e o aceno às religiões de matriz africana. Claro, os temas mundanos não ficam de fora, como comprova a imperdível Oração 18.
6) Edgar (Universidade Favela): Um disco muito mais pessoal e sobre si - e talvez mais distensionado na abordagem política ou de problemas sociais. Assim pode ser encarada a experiência com o quarto registro de estúdio do rapper Edgar. Porque o fato é que, por mais ativista que a pessoa seja, em muitos casos ela também quer relaxar, viver a vida, curtir, transar - especialmente após o Brasil se livrar de uma pandemia brutal e de uma extrema direita que parecia só se fortalecer. Nesse sentido, talvez não seja por acaso a abertura do álbum já ser com a movimentada Descansa Militante, em que os versos descontraídos e sensuais funcionam quase como uma carta de intenções a respeito do trabalho (Eita, caralho / Olha só, mas quem diria / Comecei na militância / E acabei na putaria). O expediente se repete em outros momentos em que a urgência da vida periférica, com suas ameaças e caminhos incertos, se cruza com a diversão, a festa e os prazeres, como no caso da imprevisível Perigos Noturnos, em que uma madrugada vertiginosa é descrita como uma explosão de dança, sexo, dores e preconceitos. Misturando estilos distintos como trap, dancehall, grime, funk e reggaeton, Edgar consegue ser universal e particular em igual medida, ao retratar a quebrada como um espaço de profusão cultural, que encontra outras artes, línguas e experiências.
5) Bruna Alimonda (Estado Febril): Não sei como é pra vocês a experiência de ouvir música mas, no meu caso, na maioria das vezes a audição de um novo álbum vem acompanhada de alguma outra atividade - uma louça lavada, uma caminhada de fim de tarde, um texto elaborado no trabalho. Essa operação, em muitos casos, eu repito - e não são raras às vezes que o descompromisso se converte em paixão instantânea. E é esse o caso do registro de estreia de Bruna Alimonda. Um disco que propõe uma saborosa mescla de MPB, indie pop e latinidade, com letras divertidas que utilizam metáforas gastronômicas para falar das dores do amor, como no caso das ótimas Cebola (Eu to cortando cebola pra não chorar só por você) ou na autoexplicativa Janta e Põe a Mesa (A tua presença janta e põe a mesa / É como a xepa na segunda feira / Tempero bom que faz arder de amar). E aí é lá pelo meio do trabalho que surge a imperdível Para de Me Curtir e Me Ama, que é aquele tipo de música que faz com que a gente pare tudo o que está fazendo para prestar atenção. Da letra safadinha ao refrão grudento, passando pela sonoridade primaveril e sofisticada, tudo parece tão perfeito aqui, que esse é o tipo de canção que, quase sozinha, eleva o disco para um outro patamar.
4) Liniker (CAJU): "Quando eu alçar o voo mais bonito da minha vida / Quem me chamará de amor, de gostosa, de querida? / Que vai me esperar em casa, polir a joia rara / Ser o pseudofruto, a pele do caju". Muito provavelmente não há um ser humano vivo que não tenha, em algum momento de 2024, se pego cantando os versos da envolvente faixa-título do segundo disco em carreira solo da Liniker. E esse foi realmente o registro que deu um upgrade na carreira da artista, fazendo-a furar a bolha para encontrar outros públicos - com direito a aclamação também da crítica. Do leve experimentalismo do trabalho anterior, o igualmente belo Indigo Borboleta Anil (2021), o que fica neste novo projeto é a fusão de estilos - jazz, sou, disco, R&B, eletrônica, pagode, brega - como uma de suas marcas. Reflexões sobre amor, inseguranças, a complexidade dos relacionamentos e até a transitoriedade da vida surgem, aqui e ali, salpicadas em músicas que esbanjam intensidade e vulnerabilidade em igual medida - casos das ótimas VELUDO MARROM, ME AJUDE A SALVAR OS DOMINGOS e FEBRE. "Às vezes, minha essência e meu trabalho me colocam neste lugar intocável. A deusa, a musa. E não, só quero sair e tomar uma cerveja com as minhas amigas", resumiu, em entrevista ao UOL.
3) Paula Cavalciuk (Pangeia): Ainda somos capazes de nos maravilhar com a nova MPB? Com tantos artistas que, por vezes, parecem se repetir, requentando fórmulas já meio batidas? Admito que volta e meia essas questões passam pela minha cabeça. Mas aí acontecem coisas lindas como esse Pangeia, o segundo registro de inéditas de Paula Cavalciuk e a gente percebe que, sim, há muito espaço para esse tipo de som - e, a realidade é que, quanto mais melhor. Nascida na pequena Tapiraí, em São Paulo, a compositora toma por base a viola caipira, seu instrumento desde sempre, para compor uma sonoridade que vai no limite entre o bucólico e o onírico, o artístico e o comercial. Um bom exemplo disso pode ser percebido no lindo single Dança do Vento, em que a sua voz doce flana com leveza, o que converte os versos simples cobertos por uma aura regionalista, em uma experiência quase transcendental (Vento que tirou a flor pra dançar / Me chamou também / Vento que empurrou cortina na janela / Me puxou tão bem). Tradicional e contemporâneo em igual medida, esse é daqueles registros pra colocar no repeat e ir desvendando aos poucos. Há muita beleza envolvida. O que pode ser comprovado por outros instantes irresistíveis, casos da provocativa Deus da Internet e a roqueira faixa título.
2) Céu (Novela): "Um disco humano, cheio de vulnerabilidades, gravado sem computador". Marca registrada dos trabalhos recentes da cantora Céu - como Tropix (2016) e Apká (2019) -, a ambientação mais digital ou tecnológica parece ter sido deixada de lado em favor de uma experiência mais orgânica com seu sexto trabalho. Claro que isso não significa que a artista abandonou a sua MPB envolvente e sofisticada, que mescla efeitos eletrônicos minimalistas, batidas econômicas e vocais enevoados. Está tudo lá, com a elegância e a brasilidade de sempre - mas talvez com algum tipo de naturalismo a mais. E que pode ter a ver com a própria nostalgia temática do disco, com seu romantismo meio anos 80. "Eu sou / A protagonista da minha novela", brinca na faixa Into My Novela, um rock contemporâneo que talvez não fizesse feio na trilha sonora de algum projeto de Silvio de Abreu. Outra música que tem uma energia novelesca estilo Jovem Guarda é a deliciosa Crushinho. Romântica, moderna, contraditória, divertida, ela fala das complexidades do relacionamento para culminar no refrão mais adocicado (e safado) da temporada: "Vem aqui ouvir / Tu é meu crushinho / Eu só quero dar, dar muito carinho". Mais um ótimo registro que consolida Céu como uma das mais interessantes artistas de nosso País.
1) Amaro Freitas (Y'Y): Não são necessários nem quinze segundos Mapinguari (Encantado da Mata), canção que abre o quarto registro de estúdio do pianista Amaro Freitas, para que sejamos transportados para um universo bucólico, místico, em que florestas, córregos e outros elementos da fauna e da flora se convertam em unidades concretas, palpáveis, dotadas de uma nitidez límpida. A música tem pouco mais de um minuto e meio de duração, mas funciona como uma perfeita carta de apresentação daquilo que encontraremos no transcorrer dos 43 minutos de duração do álbum. Conexão com a natureza, ancestralidade, religiosidade - no piano sofisticado e cheio de possibilidades do artista parece sempre haver espaço para a colisão de ideias abstratas e corporificadas, primitivas e contemporâneas e que resultam de uma viagem feita pelo compositor à Amazônia, em 2020. Lá, ele ouviu o som do encontro dos rios Negro e Solimões, o canto dos pássaros diante das nuvens carregadas de chuvas, as gotas espocando nas vitórias-régias. "Ouvir a Amazònia foi como conhecer um outro Brasil", resumiu em entrevista à Revista Piauí. O resultado é um disco sólido, meditativo e transcendental, que faz com que ninguém saia igual da experiência de escutá-lo.
Bom, não foi fácil finalizar essa lista e talvez na semana que vem ela já fosse outra. A nossa música respira, como um organismo vivo - e isso é um grande mérito. Dos artistas, de quem os consome, e dos veículos que lhes dão espaço. E que venha 2025.