terça-feira, 17 de dezembro de 2024

30 Melhores Discos Nacionais de 2024

A nossa relação favorita do ano é sempre a mais difícil de elaborar. Primeiro porque, como de praxe, nunca conseguimos acompanhar tudo o que gostaríamos, com a devida atenção. Afinal, para ouvir um álbum nacional com atenção, é preciso mais do que o play enquanto lavamos a louça ou limpamos a casa. Sim, esse pode ser o ponto de partida de tudo, até porque ninguém é de ferro. Mas lá pelas tantas eu tenho por hábito abrir o meu caderno e, mesmo sendo leigo, fazer anotações disco por disco, música por música, destacando elementos que agradam, outros nem tanto. É a forma de tentar, minimamente, organizar esse levantamento para torná-lo, de alguma forma, satisfatório. Mas, como eu disse no começo: ele nunca estará completo. Até por que, por mais que ouçamos horas e horas de material, nunca chegaremos a uma conclusão definitiva.


 

E, nesse cenário, há ainda um outro problema: o de que estamos em uma bolha em que prestamos atenção somente àquilo que chega até nós, no nosso nicho. O que resulta em estilos ignorados, gêneros que passam ao largo e grandes e pequenos artistas que, sem querer querendo, são deixados de lado. Sim, parece que a gente já tá pedindo desculpas por qualquer equívoco ou ausência ocorrida, mas é mais ou menos isso mesmo. Talvez não seja proposital. Algo deliberado. Apenas aconteceu. Ainda mais em um ano tão espetacular para a música brasileira, como esse 2024. A nossa produção, afinal, nunca foi tão democrática, tão diversa, tão cheia de possibilidades. Cabendo a nós, ouvintes, buscar aquilo que se faz para além do agronejo milionário, que ocupa absolutamente todas as paradas. De Céu à Liniker, passando por Duda Beat e Tuyo, eis o nosso pequeno recorte.


 


 

30) Irmão Victor (Micro-Usina): O conceito de uma usina - um tipo de estabelecimento industrial equipado de máquinas, onde se processa e se transforma a matéria-prima -, parece totalmente adequado ao que encontramos no quinto trabalho do gaúcho Marco Benvegnú, o nome por trás do Irmão Victor. Seja pela dificuldade em categorizar o som - que mescla estilos distintos indo da psicodelia sessentista, passando pelo soft rock da década seguinte, até chegar ao jangle pop moderno -, pela complexidade dos arranjos ou pela poética torta, tudo parece elaborado em um processo contínuo de (des)construção, como ele explicou em entrevista ao Tenho Mais Discos Que Amigos. "Eu costumo sair para caminhar na rua, paro em algum parque, alguma praça e escrevo algumas ideias" salientou a respeito do processo criativo. O resultado são canções de letras divertidas e literárias que aludem de Mutantes a O Terno, como é o caso da ótima Amarrado no Pulso do Cão (É uma febre ao contrário / Desencantando a cada passo / Sempre mastigando gelo). Aliás, os títulos curiosos também são um capítulo a parte, sendo meio impossível ficar alheio a Miska Bella Foi a Missa, Rua da Catequese e, especialmente, a excêntrica e estranhamente onírica Canção de Ninar Landinense

 


 

29) A Banda Mais Bonita da Cidade (O Futuro Já Está Acontecendo): "Meu amor / Sou teu companheiro / Pra subir montanhas / E atravessar o mar", "Se tudo mudou / Já não tem mais jeito de voltar / Mas todo movimento é circular", "Toda brincadeira tem um fundo de verdade / O amor me traiu / E me deu o mundo". Pode até não haver um conceito definido no quarto trabalho da adorada Banda Mais Bonita da Cidade. Mas não dá pra negar que parece haver certa lógica, uma organização, quando a gente observa as frases acima, que se espalham em meio as oito canções do disco. Claro, com quinze anos de estrada, o quinteto de Curitiba já passou por muitas coisas em suas vidas - experiências traumáticas ou não, desafios, anseios, conquistas. E a maturidade parece também aparecer em cada curva do registro, com suas composições sólidas, menos apressadas e que parecem ir na contramão desse mundo tão acelerado que vivemos. "Acho que é um reflexo de como a gente tem sentido a vida mesmo", explicou a vocalista Uyara Torrente em entrevista ao site Marramaque, a respeito da escolha do repertório - e das letras que combinam simplicidade com uma verve mais filosófica, de reflexão sobre o mundo, suas idas e vindas, movimentos de retorno, de chegadas e de partidas. 

 


 

28) Luiz Amargo (Amor de Mula): Esse é aquele que entra na lista dos discos nacionais que ninguém ouviu - mas que ainda está em tempo de descobrir. Debochado e com certa disposição à zoeira, o artista é daqueles que tem um estilo descritivo, literário e irônico para abordar as particularidades do amor. Aliás, mais do que particularidades, as irracionalidades. O próprio título do registro alude aos exageros proporcionados pela paixão arrebatadora. Que o artista converte em nove canções que trafegam pelo jangle pop, indie, folk e pela música de vanguarda paulistana de forma leve, fluída. Claro que esse perfil mais descontraído, jamais significa alienação. Aliás, o músico é neto de perseguidos políticos pela ditadura e as questões políticas e dilemas sociais aparecem, salpicadas aqui e ali, como no caso da ótima Amor, Cadê a Mula? (Você, vassalo / Ralou até o talo / Depois vestiu / A roupa de espantalho), que flerta com a psicodelia setentista, ainda que em sua alma resida o fiapo do sertanejo. O expediente se repete em outros momentos, como em Fruta Madura, um rock de influência paraguaia e de letra que quase fornece um resumo do estado das coisas no Brasil atual (Nesse mundo em crise, todo sequelado /Falei pra não investir na bolsa / Faz um poço artesiano, horta, boi, arado).

 


 

27) Melly (Amaríssima): Pode soar meio estranho, mas amaríssimo é o superlativo de amargo. E ouvindo as músicas do primeiro registro de inéditas da baiana Melly, que trafegam com suavidade pelo R&B, o samba reggae, o soul e o rap, o termo não parece combinar muito. Há uma leveza ali, é inegável. Que ondula pelas melodias nunca exageradamente expansivas. Ainda assim, talvez as aparências enganem. Versátil, a artista passa por temas de crescimento pessoal e amor com uma franqueza surpreendente - ainda mais pra quem se diz tímida. "É que amadurecer, sinestesicamente, me remete ao amargo", explicou em entrevista à Rolling Stone. Sim, sair da adolescência pra vida adulta, quase sempre é desconfortável. No caso da artista, mesmo com apenas 22 anos, ela converte dilemas existenciais, paixões fugazes e reflexões cotidianas em um conjunto homogêneo de canções - diretas, bem produzidas e cheias de personalidade. Um bom exemplo desse conjunto, pode ser encontrada na bela Rio Vermelho, parceria com Russo Passapusso, uma verdadeira ode à tranquilidade e à cura emocional proporcionada pela natureza, que é reforçada pela letra filosófica sobre a passagem do tempo (Manhã de Sol, deixa queimar / Preocupações, soltas no ar / Já que é amanhã, deve esperar).

 


 

26) Oruã (Passe): Definir o tipo de som feito pelos cariocas do Oruã não é tarefa muito fácil. Para além da mais evidente psicodelia setentista de guitarras ondulantes, o coletivo mescla kraut rock, afrobeat, free jazz, candomblé, Clube da Esquina e indie pop anos 90 de uma forma única e homogênea. Em linhas gerais, quem acompanha o trio formado por capitaneado por Lê Almeida parece saber exatamente o que vai encontrar a cada registro: um som colorido mas nunca artificial, cru e sem neurose. "O Oruã é filho do centro do Rio de Janeiro, nasceu à noite e frequenta os bailes pela madrugada", resume o coletivo, nos materiais de divulgação. Para quem se aventura por esse quarto álbum os caminhos podem ser inesperados, contraditórios, como uma metáfora para a cidade. O mar e o litoral que contrastam com a decadência do centro, a riqueza dos bairros nobres em desacordo com as favelas e a periferia, o surfe idílico de comunhão com a natureza, batendo de frente com o concreto e a aspereza das ruas. Há algo evocativo, quase como uma miragem que faz colidir o cartão postal com a pobreza, a injustiça e a violência. E canções de títulos quase autoexplicativos como Caboclo, Escola Construtivista, Insensatez Abolição e Análise da Conjuntura contribuem para a formação desse cenário denso, complexo e enevoado da metrópole borbulhante. Um sopro de criatividade.


 

25) Maria Beraldo (Colinho): Um disco que cresce a cada nova audição. E que clama pela repetição, dada a quantidade de elementos espalhados em cada canto. De essência heterogênea, especialmente pela variedade de estilos - que resultam em uma sonoridade inquietante, que lembra uma mistura de FKA Twigs com Fiona Apple -, esse segundo registro da artista parece ampliar ainda mais as discussões sobre sexualidade lésbica, identidade queer e questões ligadas à gênero, sempre de forma sedutora, retirando o ouvinte da zona de conforto. "Me leva no dedo molhado, o cheiro, o gosto da minha / Viaja essе mundo lembrando do peso da minha bunda no teu / Colinho", provoca já na arrancada, com a faixa título - canção de melodia fragmentada, capaz de gerar estranhamento. Esse sentimento de fuga do óbvio percorre todo o registro, que navega em meio ao jazz, ao pop de vanguarda, ao funk e à eletrônica, de forma criativa, torta. As raras candidatas à hit, caso de Truco, que fez parte da trilha sonora do filme Regra 34, tem versos repetidos quase como um mantra, enquanto a base instrumental hipnótica parece se expandir. Com inspiração em outras artes, como a literatura - e em autores como Jorge Amado e James Baldwin -, a musicista constrói uma obra teatral, política e cheia de vigor.

 


24) Bebe (SALVE-SE!): "Quem vai me salvar? A não ser eu mesmo?". A pergunta que fica ao final da introdutória faixa título do segundo registro de estúdio de Bebe, parece pavimentar as ideias que se espalharão pelo disco. A canção é doce, quase mântrica - o que é reforçado pelo coralzinho gospel. Mas nela reside uma potência provocativa, que dialoga com uma artista que não apenas está mais madura, mas também mais confiante de suas escolhas. "Quando as pessoas chegam na minha idade, começam a viver conflitos, e a gente vai conseguindo aprender a mudar o nosso comportamento em relação a essas coisas. Tentar se posicionar mais, entender que a gente não tem controle sobre tudo, conseguir separar necessidades humanas reais e necessidades impostas pra gente", detalhou, em entrevista à Revista Noize. Experimental, harmônico, sofisticado e muito bem produzido, o álbum é mais um a mesclar R&B, rap, jazz e pop eletrônico, com um resultado moderno, futurista. É um tipo de música que se não chega a ser totalmente inovadora, no mínimo dialoga com a contemporaneidade. O que pode ser comprovado nas ótimas Assome e De Ponta Cabeça, esta em parceria com o rapper BK. "Quero me relacionar, ser ouvida por pessoas da minha idade, e talvez fomentar a cena que está a fim de estar aberta", comentou.

 

 


23) Chico Bernardes (Outros Fios): Canções que parecem ganhar cores mesmo em meio à melancolia. Letras poéticas que refletem sobre passado e futuro ou a respeito da transição do tempo - mas sem nunca soarem meramente nostálgicas. Melodias que crescem para além da voz e do violão minimalista que marcariam o autointitulado registro de estreia, lançado em 2019, o que permite alcançar outros lugares sonoros. Em linhas gerais, são muitos os elementos que evidenciam o amadurecimento do cantor e compositor, que parece mais iluminado, com brilho próprio. Experimental mas acessível - especialmente pelo uso de sintetizadores solares - esse segundo álbum parece também mais existencialista que o projeto anterior - o que certamente tem a ver com as transformações ocorridas em um período de pandemia, de isolamento, de ausência de laços, de trocas e de afetos. "No geral, acho que abriu (o disco) ao ouvinte uma viagem solitária, de maneira pessoal. Imagino que vá ressoar diferente para cada um", explicou em entrevista ao site Tracklist. Um bom exemplo do conceito do trabalho pode ser percebido em canções como Até Que Enfim, em que a transitoriedade da vida se torna palpável (A vista é bem melhor do que era antes / Mas nos custa entender / Passagem).

 


 

22) Pietá (Nasci no Brasil): Exaltar a música brasileira. O que veio antes, o que existe agora e o que vem depois. O passado e o futuro, a tradição e modernidade, em busca de construir uma uma sonoridade e poesia únicas, que se conectem com as pessoas. Que lhes aproxime da arte, para além da música. Se fosse possível descrever o objetivo do terceiro álbum do sempre ótimo coletivo Pietá, penso que ele se aproximaria disso. Afinal, poucos grupos nacionais fazem tão bem a aproximação entre temas folclóricos, ancestrais e regionalistas, com assuntos mais amplos ligados à política, a sociedade e à cultura. Há um apelo ao popular que, nesse 2024, fez a banda capitaneada por Juliana Linhares furar a bolha, já que a linda Perfume de Araçá (Quando ponho os olhos em você / Vem essa alegria me tomar), foi trilha sonora da novela No Rancho Fundo da Globo. Mas há ao mesmo tempo um componente erudito, que tem a ver também com a formação acadêmica do trio, completado por Fred Demarca e Rafael Lorga. "O álbum é uma afirmação das belezas que brotam das dúvidas, das sombras e das mazelas de um País. Ao que ainda é possível de ser vivido e transformado", resumiu a banda, no material de divulgação. Se você tem dúvidas, tente não se emocionar com Temquitê ou O Tempo É Uma Pessoa.


 

21) Tuyo (Paisagem): A contemplação do comum como tema central. Em alguma medida, assim pode ser resumida a experiência com o terceiro registro de estúdio dos curitibanos da Tuyo - um álbum que tem a simplicidade como matéria-prima, mas sem jamais incorrer na mera banalidade. Mesclando novamente a soul music com o hiperpop, o R&B e o house, o trio formado pelas irmãs Lio e Lay Soares (vozes) e pelo músico Jean Machado, nos transporta para cenários idílicos, em que a passagem do tempo funciona como uma alegoria para o método artístico do grupo. "Fincamos o pé em coisas pelas quais a gente tem paixão e outras coisas que a gente nega, como as tendências à megalomania, a hiper configuração de palcos, a saturação do que é grandioso e monumental", explicou Lio em entrevista à Rolling Stone, justificando o processo mais lento, em tempos tão velozes. Aliás, a alternância entre a calma e a pressa, o silêncio e o grito percorrem o registro, que convida o ouvinte para adentrar um território conhecido, mas sob uma nova perspectiva. O resultado são canções magnéticas, como Devagar, Escuro Total e Dentro Dessa Noite, que equilibram na medida certa os ritmos brasileiros, com certo experimentalismo eletrônico - o que é reforçado pelos sintetizadores enevoados e primaveris.




20) Papisa (Amor Delírio): "Pode acreditar / Nem tudo é deserto / Depois da noite escura / Outro dia vai nascer / E quando acontecer / O sol brilhará". A janela abriu e o sol entrou. E tudo está mais aquecido, vivo. E não é que Fenda (2019), a estreia em disco da cantora paulista Rita Oliva, a Papisa, fosse excessivamente melancólico ou sombrio. Talvez ele fosse mais íntimo, com uma sonoridade mais densa, que unia misticismo e introspecção - aliás, a própria capa já entregava esse componente mais ritualístico (nas vestes, nas cores, nos adereços e maquiagens). Só que tudo isso foi há cinco anos, antes da covid-19 e de uma inesperada interrupção de tudo aquilo que estava programado. "Fiquei em um momento de luto pela pandemia – pelo mundo inteiro, pela música que tinha parado. Depois disso, percebi que eu queria realmente a música como um recurso para trazer encantamento para a vida, trazer sol, e foi essa a minha busca", explicou a artista em entrevista ao Scream & Yell. E esse aspecto mais ensolarado pode ser percebido não apenas nas melodias, que mesclam psicodelia moderna com o dream pop noventista, mas também nas letras, mais otimistas - o que pode ser constatado em canções como Vai Passar (do trecho que abre essa pequena resenha).

 

 


19) Pluma (Não Leve a Mal): O disco de estreia dos paulistanos da Pluma permite dizer que o pop nacional respira. Mas nunca o pop óbvio, previsível, que em duas ou três semanas já estará esquecido, frente a enxurrada de lançamentos. Não. Por que por mais acessível que o som do quarteto capitaneado pela vocalista Marina Reis possa parecer - serão muitos os refrãos na cabeça após duas ou três audições -, o registro também é marcado por certo experimentalismo que leva a sonoridade do minimalismo à expansão, promovendo uma mescla de indie rock, dream pop, neo soul e R&B. De Rita Lee à Tame Impala, as referências do coletivo parecem ser várias, unindo passado, presente e futuro com personalidade e uma aura própria. "Muitas vezes começamos com a parte instrumental, com ritmos quebrados, harmonias doidas, e eu sentia uma vontade de trazer algo que segurasse a música, que as pessoas tivessem mais facilidade em acompanhar", salientou Marina em entrevista à Revista Noize, a respeito do processo criativo do grupo e dessa busca pelo equilíbrio entre o popular e o virtuoso. O resultado são canções sólidas e primaveris, como Corrida!, Plano Z e Não Leve a Mal - esta última uma das mais perfeitas letras sobre a insegurança em uma nova paixão (Não leve a mal se não te olhei / Se desviei).

 


 

18) Rafael Castro (Vaidosos Demais): Vamos combinar que a espera por um novo disco do paulista Rafael Castro valeu a pena. São nove anos desde Um Chope e Um Sundae (2015) que, a despeito de ser um trabalho divertido  - aliás, marca registrada do artista -, parece produto de uma época que não existe mais. Um período mais ingênuo talvez. Em que assuntos políticos, sociais e religiosos mal e mal apareciam - e é difícil ignorar esses temas hoje em dia. Aqui, o músico retorna em boa forma, apostando em letras ácidas, provocativas e em uma mescla de estilos que vai no limite entre o brega o o indie. A abertura, com a engraçadíssima Bar e Lanches, já dá o tom, ao dar aquela avacalhada na cultura hipster branquela de classe média, com seus hábitos gourmetizados e afetações de todo o tipo, mas que pagam vale de bacanas frequentando locais "raiz" (Um pico bom pra ser descoladex / E postar que é bom demais se misturar). O álbum pode até perder um pouco de força na segunda metade, justamente quando o músico resolve falar mais sério. Mas nada que apague o brilho de canções como O Algoritmo Te Escolheu (sobre a busca incessante dos influenciadores pelos holofotes), ou na autoexplicativa A Esquerda Errou Nesse Sentido (sobre os equívocos do progressismo cirandeiro).

 

 

17) Exclusive Os Cabides (Coisas Estranhas): Junte uma pitada do rock divertido da Superguidis, adicione uma dose da psicodelia moderna de grupos como o MGMT e acrescente ainda uma porção da sonoridade noventista de coletivos como Pavement ou Pixies e talvez consigamos resumir o tipo de som feito pelos catarinenses do Exclusive Os Cabides. Devo admitir que, em pleno outubro de 2024, tenho um pouco de ranço de banda metida a engraçadinha - mas o caso é que o completo descompromisso do segundo álbum do grupo, foi me cativando a cada nova audição. Sabe aquele sentimento de "já ouvi isso antes, mas parece totalmente novo" que, muitas vezes, ocorre diante de um novo álbum? Foi exatamente o que rolou aqui. Já escutei isso aqui dezenas de vezes. Mas bora lá escutar de novo. Meio que viralizado no Tik Tok por conta do single Lagartixa Tropical, o grupo é daqueles que mistura cenários improváveis, objetos inanimados, amores tortos e animais estranhos (e marinhos) em um conjunto que, curiosamente, forma uma unidade - um bloco que faz sentido. Pra quem quiser começar, recomendo ir direto em Luminária de Lava. Será um caminho divertido, ensolarado e sinuoso, que alternará melancolia e bom humor de forma certeira.

 


 

16) Duda Beat (Tara e Tal): Um pouco mais de safadeza e menos de sofrência. Talvez seja a maturidade e a confiança de chegar ao terceiro álbum, mas Duda Beat parece disposta a investir em um lado mais vivo, mais dançante, mais sensual, como um contraponto a certa melancolia brega, que marcaria o início da carreira. Em alguma medida, o título do projeto já evidencia esse processo de transformação, de uma cantora que mergulha em sentimentos mais intensos, mais potentes. "A 'tara' é o desejo de me libertar, de me jogar, e o 'tal' é o que vem depois, seja isso bom ou ruim", explicou em entrevista à Veja São Paulo, sobre aquele que parece ser também o seu disco mais eletrônico, dançante. Todas essas percepções são reforçadas frente a canções como as divertidas e ousadas Preparada e Saudade de Você, que conseguem ser românticas e hedonistas em igual medida, esta última culminando naquele que talvez seja o grande refrão da temporada (Saudade de você aqui agora / De noite vou te ver / Quero rebolar em cima de você / Bem melhor, bem melhor, bem melhor). São canções de melodias ricas, complexas, que jogam o ouvinte para o inferninho da pista de dança hipnótica e da noite fervilhante, mas sem ignorar aquele fundinho de melancolia que pode aparecer quando a madrugada avança.

 

 


 

15) Sofia Freire (Ponta da Língua): Batidas eletrônicas minimalistas, percussão cadenciada, teclados sobrepostos, uma voz enevoada e limpa - tudo no terceiro registro da pernambucana Sofia Freire exala modernidade e personalidade. Ativa em uma série de projetos paralelos - seja como instrumentista da banda de Gilberto Gil ou como integrante da banda Eddie -, a artista avança para outros territórios com seu pop levemente torto, nunca óbvio, que marcaria os registros anteriores. Nas entrevistas de divulgação, a cantora foi bastante honesta ao falar do bloqueio criativo que marcaria o período pandêmico. "Parecia que o que eu queria falar estava na ponta da língua, mas não saía", afirmou, a respeito do conceito por trás do registro. O resultado é um conjunto de canções de versos poéticos, repletos de jogos de palavras e de figuras de linguagem, que falam de forma bastante íntima sobre amadurecimento, relações humanas e inquietações sociais - como no caso da sinuosa Arrebento (Como uma criança / Em sincera indisciplina / Ri e chora estourando / Os balões cheio de ar), que tem uma vibe meio Céu fase Tropix (2016). "Me sinto realmente uma pessoa muito diferente do que há sete anos atrás, liberta de muitas coisas, e o PDL é um retrato disso", resumiu em entrevista ao site O Grito!

 

 

14) Carne Doce (Cererê): "Mais uma vez está na hora de partir / Pra ver se a distância pode nos unir". Poucas bandas exploram tão bem a dualidade da experiência humana como o Carne Doce. Em alguma medida é possível afirmar que delicadeza e selvageria caminham lado a lado com o pudor e a perversão, o bucólico e urbano, o amoroso e o sexy - o que é evidenciado não apenas nos versos cheios de antagonismos, mas também nas melodias que se alternam entre instantes urgentes e contemplativos. "É uma inclinação dela, dos autores que ela lê, de como ela vê a vida, e que ela acabou aprimorando com o exercício da composição” resumiu em entrevista ao Diário da Manhã, o guitarrista Macloys Aquino sobre sua parceria de grupo - e também de vida - Salma Jô. Nesse sentido as letras eventualmente reflexivas da compositora muitas vezes recebem como complemento uma sonoridade perfumada, primaveril, com guitarras melódicas e um apelo à natureza de sua região de origem, no caso o Centro Oeste. Com dez anos de carreira e um cancelamento nas costas - uma acusação de abuso sexual do baterista -, o coletivo chega ao quinto trabalho, Cererê, com suas principais atributos intactos, como comprovam as ótimas Noite dos Tristes, Suspiro, Na Bad e Festa.

 


 

13) Cátia de França (No Rastro de Catarina): "Em nossa casa podia faltar manteiga, mas nunca faltaria um livro". A frase dita por Cátia de França em mais de uma entrevista, serve pra dar conta da importância não apenas da educação, mas também da cultura em sua vida. Sua mãe, Adélia de França - a primeira professora negra da Paraíba -, sempre manteve a humilde residência da família "alimentada" por nomes como João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa e José Lins do Rego. E toda essa bagagem literária - que se une a uma formação musical completa -, permite à artista, atualmente com 77 anos, a construção de verdadeiros poemas em forma de canção, como aqueles que podem ser vistos nesse majestoso álbum, o oitavo da carreira da compositora. Unindo passado e presente e resgatando memórias que permanecem atuais, o projeto mescla pop, rock, reggae, bolero, samba e outros ritmos, traduzindo em alguma medida as incertezas dos nossos tempos. Nesse sentido, verdadeiros hinos como a feminista Espelho de Oloxá, escrito em 2017, seguem mais necessários do que nunca ("No meio da praça, que existe aqui dentro / Me vejo em protesto, nem tô me cabendo / Demandas do mundo, me importo, pertenço / Creio piamente na mudança dos ventos"). Pra ouvir sem pressa.


 

12) Nabru (Desenredo): "Saberemos viver uma vida melhor que esta / Quando mesmo chorando é tão bom estarmos juntos?". Não é por acaso que o poema Desenredo, da filósofa e romancista mineira Adélia Prado parece ser central na hora de conceituar o álbum de estreia da rapper Nabru. Nas curvas sofisticadas e cheias de ambiguidades da obra da poetisa, está o caminho para a artista desemaranhar: histórias, vivências, a coletividade, a vida na periferia, os relacionamentos e as conquistas. E a paixão pela literatura, claro, que fica evidenciada não apenas nos versos engenhosos, mas na quantidade infinita de referências literárias, muitas delas servindo de inspiração para o registro. Um bom exemplo nesse sentido pode ser encontrado em Letramento, uma pequena faixa lo-fi de flow cadenciado, enevoado e urbano, em que a experiência comunitária se une à importância da alfabetização, já que Nabru é estudante de letras na USP (A minha vida é um romance estilo Jorge Amado / Por isso faz todo o sentido Tereza Batista). "A minha mãe ama ler! [...] Então, leio desde sempre, às vezes não tinha comida na minha casa, mas sempre tinha livro", explicou em entrevista ao Monkeybuzz. O resultado são canções potentes, reflexivas e também bem humoradas, como 4Shared, Cidade Encantada e Jeguerê.


 

11) Adorável Clichê (Sonhos que Nunca Morrem): Seis anos entre um lançamento de disco e outro para uma banda pode ser um hiato bastante longo - ainda mais em tempos tão urgentes, apressados e cheios de acontecimentos relevantes como os que vivemos. Ainda assim, esse foi o período levado pela Adorável Clichê para maturar o seu segundo registro de inéditas - trabalho que parece mais polido, com os vocais mais destacados, do que na enevoada estreia O Que Existe Dentro de Mim. Na essência, pouca coisa mudou no shoegaze psicodélico de guitarras primaveris - uma das marcas registradas do quarteto. O que para os fãs certamente é um atrativo. Com apenas nove músicas e 34 minutos de duração, esse é daqueles discos que por vezes parecem nostálgicos, familiares - especialmente pelas melodias açucaradas, que servem de base para as letras enigmáticas, que se organizam como pequenos fragmentos poéticos. Um bom exemplo está na ambígua Devagar, que parece uma canção sobre amores apressados, mas talvez seja apenas a respeito da importância da conscientização no trânsito (E eu confio tanto em você / Mas eu não quero te perder / Então vá devagar). Atmosférico em alguns momentos, barulhento em outros, esse é daqueles pra ouvir repetidamente.

 


 

10) Tássia Reis (Topo da Minha Cabeça): Talvez o ouvinte mais desavisado tenha sido pego de surpresa com o novo direcionamento da cantora e compositora Tássia Reis, em seu quarto registro de inéditas. Afinal de contas, quem se acostumou com a mistura de trap, soul e R&B de fluidez sofisticada, que sempre foram a marca da artista, vai encontrar aqui uma variedade ainda maior de estilos, que podem ir do jazz ao samba, passando pela bossa nova e pelo funk - às vezes até na mesma música. Em alguma medida, Tássia trafega muito bem em cada gênero, o que tem a ver com a sua formação musical, já que ela começou a frequentar as quadras das escolas de samba ainda na adolescência, quando dançava, desenhava fantasias e escrevia poemas que, mais adiante, se converteriam em canções. Sem jamais deixar para trás a sua tradição ancestral - o que é expresso também em seu visual, nos seus figurinos e no estilo como um todo (ela é designer de moda de formação) - a musicista é um dos expoentes da música contemporânea negra. O que se reflete nas músicas, que abordam assuntos diversos sobre espiritualidade (Nós Vestimos Branco), realidade da periferia (Asfalto Selvagem) e autoaceitação (na faixa título). Claro que nem tudo é militância, como comprova a sensualíssima Tão Crazy. Uma joia.




9) Gracinha (Corpo Celeste): "Sempre fui fascinada pelo espaço sideral e o disco em sua completude permeia esse tema, fazendo uma analogia em relação a um corpo celeste que flutua no espaço sozinho, mas que ao mesmo tempo faz parte de um todo". A explicação dada por Isabela Graça - em entrevista ao site O Inimigo -, a respeito do conceito por trás de seu disco de estreia, faz todo o sentido no momento em que apertamos o play. Com sintetizadores atmosféricos e efeitos eletrônicos etéreos, a curta Vênus (Estrela D'alva), que abre o trabalho, nos conduz por um cenário espacial e onírico em que a letra parece fundir temas íntimos com assuntos mais amplos, de questões ancestrais, de raça e de gênero (Sonhos desaparecidos no meio de nós / Cantando que não vão calar minha voz / Soberana flor, regada por sóis). Esse é só o ponto de partida de um trabalho rico não apenas no arcabouço melódico, mas também em seus versos, que podem ser divertidos, como em Fantasma, com sua letra sobre as dores de sofrer um ghosting (Porque era só ectoplasma / Não era nada palpável / Não passava de um fantasma), sensuais (na safadíssima e metafórica V.O.) ou românticos (Farol, em que ela fala sobre a paixão à primeira vista por uma mulher e o desejo de escrever uma canção pra ela).

 


 

8) Zé Manoel (Coral): Lembranças de infância, memórias da juventude, sonhos que parecem se materializar. Na refinada tapeçaria que compõe o quinto trabalho do pernambucano Zé Manoel, parece haver uma nostalgia de algo sempre pronto a transbordar. Um devaneio que transpõe os limites pra se tornar algo palpável. Quem acompanha a carreira do compositor e pianista deve ter lido nas entrevistas de divulgação a explicação sobre a faixa título, canção que teria sido "soprada" em sonho por Dorival Caymmi ao músico. "Tanto a palavra, quanto a melodia vieram por Caymmi, que cantava ‘Coraaal…’. Fiquei pensando no que ele queria me dizer, e entendi que, se Dorival estava me dando essa canção, não era para eu fazer o que ele faria, era para fazer do meu jeito", comentou em entrevista ao Monkeybuzz. Do seu jeito, Zé Manoel entrega um registro que mescla idiomas e ritmos, fluindo com leveza solar e celebrando, acima de tudo, a negritude - reforçada por participações especialíssimas, como as de Luedji Luna, Liniker e Alessandra Leão. Standards americanos dos anos 70 (Golden), música africana (Malaika), ritmos regionalistas (Menina Preta de Cocar), pop de vanguarda (Canção de Amor Para Johnny Alf), tudo se mistura formando um conjunto único.

 


 

7) Luiza Brina (Prece): A oração menos no sentido estrito da religião e mais como uma súplica ligada à música, às artes e suas conexões. O que envolve também a sua capacidade de cura. Assim pode ser resumido, em alguma medida, o conceito por trás do do sofisticado, grandioso e poético quarto trabalho de estúdio da mineira Luiza Brina. Numa entrevista ao podcast Vamos Falar Sobre Música, a artista explicou que começou a escrever as suas orações - parte delas norteia o disco -, após uma severa crise de pânico ainda em 2010. Repleto de participações especiais - de Silvana Estrada a Iara Rennó -, o projeto parece reforçar a importância da coletividade no processo de construção das manifestações culturais. O que se observa não apenas na profusão de vozes, mas na riqueza das orquestrações. Ainda assim, por mais amplo e cheio de curvas surpreendentes que seja o registro, de forma alguma isso significa excesso de hermetismo. Com uma leveza quase onírica, a cantora converte cada canção em um fragmento de tapeçaria fina, capaz de se conectar com temas diversos ligados à MPB de fora do eixo - e que unem o o folclore, o encontro com a natureza e o aceno às religiões de matriz africana. Claro, os temas mundanos não ficam de fora, como comprova a imperdível Oração 18.


 

6) Edgar (Universidade Favela): Um disco muito mais pessoal e sobre si - e talvez mais distensionado na abordagem política ou de problemas sociais. Assim pode ser encarada a experiência com o quarto registro de estúdio do rapper Edgar. Porque o fato é que, por mais ativista que a pessoa seja, em muitos casos ela também quer relaxar, viver a vida, curtir, transar - especialmente após o Brasil se livrar de uma pandemia brutal e de uma extrema direita que parecia só se fortalecer. Nesse sentido, talvez não seja por acaso a abertura do álbum já ser com a movimentada Descansa Militante, em que os versos descontraídos e sensuais funcionam quase como uma carta de intenções a respeito do trabalho (Eita, caralho / Olha só, mas quem diria / Comecei na militância / E acabei na putaria). O expediente se repete em outros momentos em que a urgência da vida periférica, com suas ameaças e caminhos incertos, se cruza com a diversão, a festa e os prazeres, como no caso da imprevisível Perigos Noturnos, em que uma madrugada vertiginosa é descrita como uma explosão de dança, sexo, dores e preconceitos. Misturando estilos distintos como trap, dancehall, grime, funk e reggaeton, Edgar consegue ser universal e particular em igual medida, ao retratar a quebrada como um espaço de profusão cultural, que encontra outras artes, línguas e experiências.


 

5) Bruna Alimonda (Estado Febril): Não sei como é pra vocês a experiência de ouvir música mas, no meu caso, na maioria das vezes a audição de um novo álbum vem acompanhada de alguma outra atividade - uma louça lavada, uma caminhada de fim de tarde, um texto elaborado no trabalho. Essa operação, em muitos casos, eu repito - e não são raras às vezes que o descompromisso se converte em paixão instantânea. E é esse o caso do registro de estreia de Bruna Alimonda. Um disco que propõe uma saborosa mescla de MPB, indie pop e latinidade, com letras divertidas que utilizam metáforas gastronômicas para falar das dores do amor, como no caso das ótimas Cebola (Eu to cortando cebola pra não chorar só por você) ou na autoexplicativa Janta e Põe a Mesa (A tua presença janta e põe a mesa / É como a xepa na segunda feira / Tempero bom que faz arder de amar). E aí é lá pelo meio do trabalho que surge a imperdível Para de Me Curtir e Me Ama, que é aquele tipo de música que faz com que a gente pare tudo o que está fazendo para prestar atenção. Da letra safadinha ao refrão grudento, passando pela sonoridade primaveril e sofisticada, tudo parece tão perfeito aqui, que esse é o tipo de canção que, quase sozinha, eleva o disco para um outro patamar.

 


4) Liniker (CAJU): "Quando eu alçar o voo mais bonito da minha vida / Quem me chamará de amor, de gostosa, de querida? / Que vai me esperar em casa, polir a joia rara / Ser o pseudofruto, a pele do caju". Muito provavelmente não há um ser humano vivo que não tenha, em algum momento de 2024, se pego cantando os versos da envolvente faixa-título do segundo disco em carreira solo da Liniker. E esse foi realmente o registro que deu um upgrade na carreira da artista, fazendo-a furar a bolha para encontrar outros públicos - com direito a aclamação também da crítica. Do leve experimentalismo do trabalho anterior, o igualmente belo Indigo Borboleta Anil (2021), o que fica neste novo projeto é a fusão de estilos - jazz, sou, disco, R&B, eletrônica, pagode, brega - como uma de suas marcas. Reflexões sobre amor, inseguranças, a complexidade dos relacionamentos e até a transitoriedade da vida surgem, aqui e ali, salpicadas em músicas que esbanjam intensidade e vulnerabilidade em igual medida - casos das ótimas VELUDO MARROM, ME AJUDE A SALVAR OS DOMINGOS e FEBRE. "Às vezes, minha essência e meu trabalho me colocam neste lugar intocável. A deusa, a musa. E não, só quero sair e tomar uma cerveja com as minhas amigas", resumiu, em entrevista ao UOL.

 


3) Paula Cavalciuk (Pangeia): Ainda somos capazes de nos maravilhar com a nova MPB? Com tantos artistas que, por vezes, parecem se repetir, requentando fórmulas já meio batidas? Admito que volta e meia essas questões passam pela minha cabeça. Mas aí acontecem coisas lindas como esse Pangeia, o segundo registro de inéditas de Paula Cavalciuk e a gente percebe que, sim, há muito espaço para esse tipo de som - e, a realidade é que, quanto mais melhor. Nascida na pequena Tapiraí, em São Paulo, a compositora toma por base a viola caipira, seu instrumento desde sempre, para compor uma sonoridade que vai no limite entre o bucólico e o onírico, o artístico e o comercial. Um bom exemplo disso pode ser percebido no lindo single Dança do Vento, em que a sua voz doce flana com leveza, o que converte os versos simples cobertos por uma aura regionalista, em uma experiência quase transcendental (Vento que tirou a flor pra dançar / Me chamou também / Vento que empurrou cortina na janela / Me puxou tão bem). Tradicional e contemporâneo em igual medida, esse é daqueles registros pra colocar no repeat e ir desvendando aos poucos. Há muita beleza envolvida. O que pode ser comprovado por outros instantes irresistíveis, casos da provocativa Deus da Internet e a roqueira faixa título.




2) Céu (Novela): "Um disco humano, cheio de vulnerabilidades, gravado sem computador". Marca registrada dos trabalhos recentes da cantora Céu - como Tropix (2016) e Apká (2019) -, a ambientação mais digital ou tecnológica parece ter sido deixada de lado em favor de uma experiência mais orgânica com seu sexto trabalho. Claro que isso não significa que a artista abandonou a sua MPB envolvente e sofisticada, que mescla efeitos eletrônicos minimalistas, batidas econômicas e vocais enevoados. Está tudo lá, com a elegância e a brasilidade de sempre - mas talvez com algum tipo de naturalismo a mais. E que pode ter a ver com a própria nostalgia temática do disco, com seu romantismo meio anos 80. "Eu sou / A protagonista da minha novela", brinca na faixa Into My Novela, um rock contemporâneo que talvez não fizesse feio na trilha sonora de algum projeto de Silvio de Abreu. Outra música que tem uma energia novelesca estilo Jovem Guarda é a deliciosa Crushinho. Romântica, moderna, contraditória, divertida, ela fala das complexidades do relacionamento para culminar no refrão mais adocicado (e safado) da temporada: "Vem aqui ouvir / Tu é meu crushinho / Eu só quero dar, dar muito carinho". Mais um ótimo registro que consolida Céu como uma das mais interessantes artistas de nosso País.


 

1) Amaro Freitas (Y'Y): Não são necessários nem quinze segundos Mapinguari (Encantado da Mata), canção que abre o quarto registro de estúdio do pianista Amaro Freitas, para que sejamos transportados para um universo bucólico, místico, em que florestas, córregos e outros elementos da fauna e da flora se convertam em unidades concretas, palpáveis, dotadas de uma nitidez límpida. A música tem pouco mais de um minuto e meio de duração, mas funciona como uma perfeita carta de apresentação daquilo que encontraremos no transcorrer dos 43 minutos de duração do álbum. Conexão com a natureza, ancestralidade, religiosidade - no piano sofisticado e cheio de possibilidades do artista parece sempre haver espaço para a colisão de ideias abstratas e corporificadas, primitivas e contemporâneas e que resultam de uma viagem feita pelo compositor à Amazônia, em 2020. Lá, ele ouviu o som do encontro dos rios Negro e Solimões, o canto dos pássaros diante das nuvens carregadas de chuvas, as gotas espocando nas vitórias-régias. "Ouvir a Amazònia foi como conhecer um outro Brasil", resumiu em entrevista à Revista Piauí. O resultado é um disco sólido, meditativo e transcendental, que faz com que ninguém saia igual da experiência de escutá-lo.


Bom, não foi fácil finalizar essa lista e talvez na semana que vem ela já fosse outra. A nossa música respira, como um organismo vivo - e isso é um grande mérito. Dos artistas, de quem os consome, e dos veículos que lhes dão espaço. E que venha 2025.

domingo, 8 de dezembro de 2024

30 Grandes Filmes Lançados no Cinema ou no Streaming em 2024

Eternamente a tarefa mais inglória dessa humilde página. No caso, (tentar) condensar em uma lista alguns dos grandes lançamentos em cinema ou streaming do ano. É evidente que não conseguimos assistir a tudo o que gostaríamos. Muita coisa passa longe do radar - e, honestamente, boa parte dos principais blockbusters correm em uma linha paralela que não nos alcança. Não, não se trata de ser presunçoso, a gente jura. Mas, vamos combinar que já existem dezenas de sites, blogues e afins totalmente conectados à cultura pop. Ou a essa porção mais nerd, que aguarda ansiosamente o novo filme de bonequinho, ou aquela continuação caça níquel, muitas vezes desnecessária. Aqui, a gente tenta abrir espaço justamente praquelas obras que, nem sempre, recebem a devida atenção. Aquelas joias meio escondidas nas plataformas alternativas ou nos cinemas que ficam no prédio anexo à Casa de Cultura.

 



Nesse sentido, o final do ano pode ser uma boa oportunidade para essa espécie de "resgate". Para dar o play naquilo que passou meio batido - até mesmo porque tem muita coisa boa para além do óbvio cinema hollywoodiano. A nossa produção, por exemplo, foi mais uma vez digna de Oscar nesse 2024 - e, desde já, estamos na torcida por Ainda Estou Aqui (que, evidentemente, está na nossa lista. Aliás, o cinema latino vive uma boa fase, como comprovam o chileno Os Colonos e o mexicano Tótem, duas joias que precisam ser mais reconhecidas. Pra ontem. Sim, a lista é grande e cheia de opções meio diferentes do convencional. Sendo justamente isso o que faz com que nos enchamos de orgulho dela. Nosso recorte, ao cabo, busca a pluralidade. O componente democrático da produção. E se esse ou aquele filme não aparecer por aqui, pode ser que nós não o tenhamos conferido ainda. Porque essa não é um levantamento dos melhores. E sim dos grandes. Dos que nos brilharam os olhos. E que poderão seguir relevantes nos próximos anos. Boa leitura!

 

 


30) O Homem dos Sonhos (Dream Scenario): Vamos combinar: desde que Nicolas Cage abraçou oficialmente o meme talvez tenhamos, aqui, o seu melhor projeto. Por que se em Pig: A Vingança (2021) ou O Peso do Talento (2022) era mais a galhofa pela galhofa, ou a mera desculpa pra colocar o astro em algum projeto de gosto duvidoso (ou apenas engraçado de maneira estranha), aqui temos também uma história para contar. Ok, é evidente que não estamos diante de um tratado sobre cultura do cancelamento, fama vazia, instantaneidade do pop de nicho, linchamento virtual e outros temas. Ainda assim não deixa de ser interessante notar como esses assuntos aparecem, aqui e ali, nessa narrativa excêntrica protagonizada por Cage e dirigida pelo ótimo Kristoffer Borgli. Na trama, ele é um simplório professor universitário de biologia, com um carisma negativo, que sonha em escrever um livro sobre suas importantes descobertas a respeito da vida das formigas - ou outro tema que ninguém dá a mínima.Só que a sua vida vira de ponta cabeça quando, meio que do nada, as pessoas a sua volta passam a sonhar com ele - aliás, mesmo nos devaneios ele mantém certa apatia. Curiosa, bem intencionada e engraçadíssima essa é uma das melhores comédias do ano. Leia a resenha completa. Onde ver? Apple TV+.



 

29) Motel Destino: Um noir tropical que mistura mato com neon, sensualidade com rigor, violência com fragilidade. Assim podemos resumir, em alguma medida, a experiência com o mais recente trabalho do diretor Karim Aïnouz. Exibido no Festival de Cannes desse ano, o longa acompanha o jovem Heraldo (Iago Xavier), um rapaz que sonha com uma vida melhor em São Paulo - longe, portanto, da costa nordestina -, mas que se vê envolto em uma tentativa de golpe que dá errado e que resulta na morte de seu irmão. Perseguido pela bandidagem local, Heraldo encontra refúgio justamente no motel que dá nome ao filme e que é administrado pelo casal Dayana (Nataly Rocha) e Elias (Fábio Assunção). Após a chegada conturbada, o rapaz se torna uma espécie de faz tudo do local, sejam pequenos reparos na estrutura, arrumação de quartos e organização - tudo em meio a gritos sexuais onipresentes. Dia após dia, jovem vai ficando, passando a participar da vida do casal anfitrião: seus momentos de lazer, sua rotina, tudo envolve os três, que estão permanentemente com roupas mínimas (o calor é palpável) - e não demorará para que desejos até certo ponto controlados, explodam. Cru, erótico, febril, claustrofóbico e sensual, esse é mais um exemplar que atesta a excelente fase do nosso cinema. Leia a resenha completa. Onde ver? Apple TV+ e Claro TV.



 

28) Caçula (Didi): Vamos combinar que essa subcategoria dos filmes sobre amadurecimento (os coming of age) - que geralmente nos apresentam a adolescentes atrapalhados, que não sabem muito bem como agir nesse mundo que os cobra decisões adultas de quem ainda é meio criança -, é um tanto semelhante a das comédias românticas. A gente já sabe o que vai acontecer com os protagonistas. Vão sofrer, chorar, querer desaparecer do planeta instantaneamente quando tudo começar a dar errado. Mas ao final vão aprender que a vida é assim mesmo, que a gente tem altos e baixos, que passamos umas vergonhas danadas, e que, por incrível que pareça, tudo vai continuar normalmente. Em alguns casos, esse tipo de obra é capaz de retratar esses jovens com uma franqueza acachapante - e é justamente esse o caso do longa de estreia do diretor Sean Wang. Na trama de tintas autobiográficas um menino de 13 anos um tanto introspectivo, passa boa parte das horas em frente ao computador, sonhando com o dia em que dará o primeiro beijo na gatinha da escola. Num primeiro momento pode ter aquele ar de "já vi isso antes". Mas essa experiência afetuosa e cheia de referências culturais inteligentes retrata as incertezas, os medos e as inseguranças da juventude de uma forma absurdamente convincente. Leia a resenha completa. Onde ver? Apple TV+ e Claro TV (aluguel).

 

 

 

27) Folhas de Outono (Kuolleet Lehdet): Quem acompanha a carreira do diretor Ari Kaurismäki já sabe que há uma certa tradição na sua obra, de unir o universo do trabalho com o das relações pessoais, estabelecendo um vínculo entre esses ambientes, apontando como um afeta o outro. Em seus filmes - sempre experiências meio secas, dotadas de um humor sombrio, torto, que parece até mesmo rir do absurdo do mundo - somos apresentados a figuras que parecem buscar seu lugar no mundo, ao passo que vivem rotinas vazias, ocas, repetitivas. Ainda assim é nesse aspecto mais ordinário da existência - em seus acasos, surpresas, pequenos acontecimentos -, que parece residir a sua força narrativa. Sim, não há grandes eventos aqui. Ainda que a violência meio institucionalizada esteja meio pelas frestas. Com as personagens e suas expressões opacas funcionando como uma espécie de resposta resignada, letárgica, imobilizante. Nesse filme enviado ao último Oscar, o expediente se repete. Na trama, duas almas solitárias se cruzam a partir de um acontecimento absolutamente fortuito - no caso, uma prisão. Com diálogos curtos e muitos silêncios, esse é aquele tipo de experiência que se vale de olhares e de movimentos corporais sutis mas que dizem muito. Leia a resenha completa. Onde ver? Mubi.


 

26) Housekeeping for Begginers (Domakinstvo za Pocetnici): Talvez hoje em dia, à exceção dos reacionários da extrema direita, a grande maioria das pessoas sabe que as configurações de família se alteraram drasticamente nas últimas décadas. Aquela cena típica de pai, mãe e filhilho - como desejam as famílias conservadoras -, parece a cada dia mais distante em um cenário de pais ausentes, divórcios e a busca incessante por uma rede de apoio pra chamar de sua. Sim, a série Modern Family pode ter debochado desses novos arranjos, mas também os naturalizou. Significa que eles serão ideais? Não, nem perto disso. Dificuldades existirão. E maiores ainda elas serão em países com políticas mais retrógradas, ou ideais ultrapassados. Conjugar todos esses elementos é o que o diretor Goran Stolevski faz com maestria nesse ótimo filme enviado ao último Oscar. Nas aparências, essa parece ser apenas uma trama sobre uma mulher que tem de lidar não apenas com a dor da perda, quando sua namorada é diagnosticada com um câncer terminal. Qual o destino dos filhos, por exemplo? Xenofobia, racismo estrutural, crises geopolíticas - todos esses temas percorrem essa narrativa obra frenética, caótica, barulhenta, e que se converte em uma peça de resistência, diante de um mundo tão antiquado. Leia a resenha completa. Onde ver? Amazon Prime.



 

25) O Sabor da Vida (Le Passion de Dodin Bouffant): Vamos combinar que em tempos de IFood, de comida congelada e industrializada, de alimentação apressada (e sem graça) e de paladar infantil que via de regra é baseado em Nutella e leite ninho, assistir a um filme afetuoso e poético como este é uma espécie de alento. Uma frase atribuída ao escrito Mia Couto nos lembra que "cozinhar não é um serviço e sim uma forma de amar os outros". E na obra de Anh Hung Tran essa expressão parece elevada à máxima potência, especialmente ao nos fazer lembrar da importância da comida feita em casa, em toda a sua glória. Sim, aqui e ali pode haver um aspecto meio elitista nesse combo que envolve alta gastronomia luxuriante e cenários deslumbrantes, como aqueles que vemos na produção. Mas, honestamente, é meio difícil resistir. A trama é simplíssima sobre convites para jantar e pequenas questões internas que, aqui e ali, surgem como metáforas internas para o amor, para o afeto. Há uma beleza quase elegíaca, ecumênica na coisa toda. O que é reforçado pelo magnetismo da dupla central, encarnada com paixão por Juliette Binoche e Benoit Magimel, que convertem o casarão da França rural do fim do século 19, onde boa parte da ação se passa,, em espaço vívido, palpável e ritualístico. Leia a resenha completa. Onde ver? Amazon Prime.



 

24) A Sala dos Professores (Das Lehrerzimmer): Um filme sufocante que se utiliza justamente das paredes exíguas e dos ambientes permanentemente fechados de uma escola, para formar o conjunto ideal de uma alegoria sobre violências cotidianas que escalam sem muito espaço para retorno. Assim é o enviado ao Oscar da Alemanha nesse ano, que discute temas diversos como xenofobia, a sanha punitivista atual, a instantaneidade das redes sociais e a cultura do cancelamento. Na trama, após uma série de pequenos furtos ter início em um educandário, dois alunos são chamados para uma investigação. A culpa recai justamente sobre um colega muçulmano - o que acentua o provável preconceito. Exasperada, uma professora resolve empreender uma investigação particular; coloca uma câmera escondida que lhe permitirá identificar o responsável pelos roubos. Só que isso é correto? Há nos tempos atuais uma pré disposição para o ódio, para a intolerância, para a incapacidade de entender o outro. De ouvir e ser ouvido. Em certo ponto todos gritam juntos, ao mesmo tempo, na sala dos professores, numa balbúrdia desconexa que é a metáfora perfeita para as fraturas vividas na atualidade. Há algo no cerne da obra que fala muito sobre a hostilidade do mundo. Sobre tormentas e questões éticas complexas. E esse é um grande mérito. Leia a resenha completa. Onde ver? Max.

 

 


23) Todos Nós Desconhecidos (All of Us Strangers): Esse é um filme muito fácil de se gostar. Primeiro de tudo tem a dupla de protagonistas - no caso o Paul Mescal e o Andrew Scott. Depois tem o romance queer que, em tempos de luta permanente contra preconceitos, sempre será um atrativo a mais. Além disso há uma trilha sonora nostálgica e saborosa repleta de hits dos anos 80 encaixados no momento certo - e eu duvido você não sair emocionado de um instante levemente poético ao som de Build do The Housemartins. E, por último, há ainda a história cheia de idas e vindas e de boas surpresas, com discussões potentes sobre luto, memória, aceitação e problemas familiares. Ao cabo esse é um combo bastante efetivo, que ainda é completado por um certo ar de mistério que acompanha a narrativa - o que nos leva a desconfiar de eventos e refletir sobre acontecimentos episódicos. Na trama, Mescal e Scott vivem Harry e Adam, que são os dois únicos moradores de um enorme complexo de apartamentos e que, depois de um início meio torto, começam um romance. Dores, traumas, incertezas, problemas familiares, tudo é conduzido com elegância, em uma narrativa cheia de instantes tocantes. Tudo reforçado pelas atuações assombrosas da dupla central. Leia a resenha completa. Onde ver? Disney+.

 

 


 

22) Robô Selvagem (The Wild Robot): Vamos combinar que, nos tempos atuais, o cinema de animação não quer e nem precisa reinventar a roda. Salvo algumas raríssimas exceções, em geral produções do gênero se esmeram em entregar o melhor em termos de tecnologia (e de imagem), que servirá de base para narrativas edificantes, que se alternarão entre histórias de amadurecimento, de aceitação, de respeito ás diferenças ou de superação de dificuldades. Mesmo que as obras sejam para os pequenos, as produtoras têm se esforçado em lembrar esse público de que a vida não é só alegria: a gente vai sofrer, chorar, se indignar, se arrepender. Rupturas ocorrerão e é preciso estar preparado para enfrentar os desafios como os mostrados nessa animação, que deverá estar no Oscar 2025. Na trama, um carismático robô fica preso em uma ilha após um acidente aéreo. Em conflito com a fauna local, ele precisará (re)aprender a sobreviver. Ao cabo esse é o tipo de produção que faz com que a gente engula em seco e mareje os olhos em vários momentos. Aprender não é fácil. É preciso repetir. E tentar e tentar. Pode parecer um papinho meio de coach, mas para as crianças pode ser legal perceber que não nascemos sabendo. E que levaremos muitos tombos. Vale também para os adultos. Leia a resenha completa. Onde ver? Apple TV e Amazon Prime (aluguel em ambas).


 


21) Jardim dos Desejos (Master Gardener): Não dá pra negar a habilidade do diretor Paul Schrader em construir personagens complexos, cheios de camadas e demasiadamente humanos. Sim, porque pro espectador é sempre muito cômodo ter os lados bem definidos: aqui está o mocinho, aquele é o bandido. Mas a beleza muitas vezes pode estar na ambiguidade. Na incerteza. Ao cabo, no centro de Jardim dos Desejos reside uma pergunta complexa: um nazista pode se redimir? Ser reintegrado à sociedade? Ser colocado novamente no convívio das pessoas - inclusive de minorias, que ele cresceu abominando? A resposta talvez pareça óbvia - e provavelmente nas mãos de um diretor menos habilidoso, tudo saísse apenas maniqueísta. Na trama, acompanhamos um horticultor de passado sombrio, que ocupa seus dias cuidando do vistoso jardim de uma ricaça. É um espaço bonito, idílico, que será alterado com a chegada de uma jovem negra - uma parente nem tão distante da anfitriã. Sem pressa, Schrader entrega uma experiência meticulosa, que se aproveita da beleza e do comportamento cíclico das plantas, como uma alegoria até meio óbvia da conduta humana, seus procedimentos, idiossincrasias, hábitos, mudanças, reconfigurações. É imperdível. Leia a resenha completa. Onde ver: Telecine.


 

20) A Filha do Palhaço: "Um homem vai ao médico, diz que está deprimido. Afirma que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador onde o que se anuncia é vago e incerto. O médico diz: 'O tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade, assista ao espetáculo. Isso deve animá-lo.'O homem se desfaz em lágrimas e, após um tempo, diz: 'Mas, doutor... Eu sou o Pagliacci." Vamos combinar que o trecho acima, extraído de Watchmen, virou meio que um lugar comum na internet. Especialmente na era do meme, a figura do palhaço triste - alguém que, supostamente, deveria fazer uma plateia rir, mas que não consegue lidar com sua própria dor -, se torna uma caricatura quase óbvia. Fácil. Sendo reproduzida de forma meio literal nesse ótimo filme do diretor Pedro Diógenes. Na trama, riso e o choro se intercalam na história de um comediante de palco que encarna uma personagem de nome Silvanelly - uma drag queen meio desbocada, que faz aquele tipo de piada de tiozão - e que é surpreendido com a chegada inesperada de sua filha. Essa será a deixa para uma narrativa sobre decisões equivocadas, reconciliação, paternidade e homofobia. Uma experiência simples, delicada e fervilhante e que comove justamente nos instantes mais íntimos. Leia a resenha completa. Onde ver? Apple TV (aluguel).

 

 

 

19) Rivais (Challengers): Sem erro dá pra se dizer que Rivais é um filme moderno em absolutamente todos os seus elementos. Pra começar tem um triângulo amoroso em que "todos os lados se tocam" - como definiu o diretor Luca Guadagnino. Depois tem um trio central totalmente sexy, formado pelos astros Zendaya, Mike Faist e Josh O'Connor que, de quebra, trafegam nos bastidores de um dos esportes mais excitantes do planeta - o tênis. Há ainda a trilha sonora hipnótica que parece nascida para aparecer em algum corte do Tik Tok - cortesia da dupla Trent Reznor e Atticus Ross -, que se soma ao estilo de filmagem caleidoscópico, com raquetadas e bolas e plateias e seus olhares se intercalando de forma inacreditavelmente fluída. E tem ainda o fato de que é uma puta história de amor bem construída, com personagens multidiomensionais e algum tipo de aceno às paixões ambiciosas, pautadas pelo sucesso financeiro e que parecem bem típicas da pós-modernidade. Na trama cheia de idas e vindas o próprio tênis é uma alegoria para um sem fim de situações que podem ser decididas no último ponto. Sensual, mente aberta e direta, essa é uma produção que não faz muita firula e nem adiciona complexidade excessiva em seus argumentos. E que, de forma paradoxal, é irresistível. Leia a resenha completa. Onde ver? Amazon Prime e Apple TV (aluguel).


 


18) Tótem (Tótem): Em uma pequena sequência desse afetuoso projeto dirigido por Lila Aviles, a protagonista Sol (Naíma Sentíes), uma menininha de sete anos, constroi uma daquelas casinhas tipicamente infantis com as almofadas do sofá da sala da casa de campo do seu avô. É um instante mínimo, mas que evidencia que a pequena talvez esteja buscando algum tipo de refúgio particular, em meio a um mundo exterior em turbulência. Sol é interrompida pela empregada da família, que pede para que ela saia dali - "você ainda vai se machucar", diz ela. Como se ela já não estivesse suficientemente machucada. Sol está na casa do avô para comemorar o aniversário de seu pai, Tona (Mateo Garcia) - uma festa está sendo preparada. Só que há uma nota triste: há a chance de que esta seja a última festa para Tona, que sofre de um câncer terminal. Naturalista e amorosa, essa é uma experiência que apresenta o ser humano como um sujeito que centra sua identidade na coletividade, nas celebrações em grupo, nos cultos e cerimônias religiosas ou sociais. Nascemos para os rituais e com eles também nos vamos. Do começo ao fim, da vida à morte, da saúde à doença, estamos sempre congregados como forma de sacramentar amizades, famílias, coletividades. É impossível não se comover. Leia a resenha completa. Onde ver? Netflix.

 

 

 

17) Pedágio: Um filme que é um verdadeiro suco do Brasil urbano, conservador, evangélico, operário e repleto de contradições. Assim pode ser resumida a experiência com o filme dirigido por Carolina Markowicz. Na trama, Maeve Jinkins é Suellen, mulher periférica que trabalha como cobradora em um posto de pedágio da região de Cubatão - que, com seu ar de metrópole apocalíptica e decadente, parece o cenário perfeito para uma narrativa atualíssima sobre preconceitos, dilemas familiares e angústias contemporâneas. Só que Suellen está exasperada com o comportamento afeminado de seu filho Tiquinho, um adolescente que ocupa parte de seus dias gravando e publicando vídeos na internet, onde encarna divas sessentistas com direito a figurinos purpurinados e cenários coloridíssimos. Só que o caso é que Suellen é uma mulher de hábitos mais tradicionais e, com uma colega de trabalho, ela acredita ter encontrado a solução: incluir o jovem em um curso que promete a cura gay. Atualíssima, exagerada e excêntrica, essa é uma obra que condensa parte do mal estar da modernidade - reforçado pela ascensão da extrema direita, do bolsonarismo e da mistura de milícias urbanas, religiosos mal intencionados e sujeitos de vida simplória em busca de alguma redenção. Leia a resenha completa. Onde ver? Globoplay.



 

16) Segredos de Um Escândalo (May December): Dirigido por Todd Haynes, esse é aquele tipo de filme que gera desconforto justamente por vermos a quebra das nossas convicções - e por subverter a lógica sobre aquilo que pensamos. Na trama de apelo metalinguístico, acompanhamos a atriz de baixo orçamento Elizabeth Berry (Natalie Portman) se aproximar de Gracie Atherton-Yoo (Julianne Moore) para uma pesquisa de campo para seu próximo papel. Gracie possui um passado controverso, pra dizer o mínimo, que envolve um crime sexual: em 1992, quando tinha 36 anos, foi flagrada fazendo sexo com um menino de apenas 13 anos, que era colega de escola de seu filho. Sim, um bárbaro delito. Ainda que nem tudo pareça tão simples. E, vá lá, talvez seja justamente ao adicionar complexidade ao que assistimos, que Haynes consegue fazer com que reflitamos um tantinho a mais sobre tais eventos, especialmente após o início das seguidas visitas que Elizabeth faz a Gracie, na bela casa de campo que ela compartilha com a família - entre eles o próprio jovem abusado no passado que, atualmente, é o seu marido. Sim, essa é uma experiência sinuosa que nos leva ao limite da condenação antecipada e a da indignação justa. Um exercício prazeroso, desconfortável e fascinante. Leia a resenha completa. Onde ver? Amazon Prime.

 

 


15) Levante: "Nessa idade ele já tem pálpebras". Em uma das cenas mais indigestas dessa ótima produção nacional, um médico - que mais parece um pastor da Igreja Evangélica - tenta demover uma jovem da ideia de fazer um aborto. Os argumentos são variados, sempre tratando um feto em formação, por mais inicial que seja uma gravidez, como um ser que irreversivelmente PRECISA nascer. Independente da vontade da mulher - algo que, aliás, em um Brasil reacionário e de fundamentalismo religioso, não chega a surpreender. Até porque uma das especialidades desses radicais que utilizam o nome de Deus para se arrogar de superioridade moral é vigiar a sexualidade alheia. Ao cabo disso, na pungente estreia de Lillah Halla, a jovem Sofia é uma promissora jogadora de vôlei. Com apenas 17 anos poderá obter uma bolsa para a prática do esporte no Chile. Só que ela descobre que está grávida. E, óbvio, ela não quer ser mãe. Não agora. Equilibrando momentos sombrios, com instantes de uma leveza meio onírica, Lillah levanta a sua bandeira sem receio de evidenciar que a decisão a respeito do corpo da mulher deveria ser só da mulher (e não de um bando de idosos engravatados que legislam com a Bíblia e não com a Constituição). Comovente. Leia a resenha completa. Onde ver? Telecine.

 


 

14) Testamento (Testament): Se tem uma coisa que caracteriza alguns setores da esquerda mais festiva - aquela que esquece os problemas reais da sociedade, para focar em debates inócuos - é a capacidade de se arrogar uma superioridade moral inabalável. A gente vê muito esse comportamento entre nossos pares progressistas - e, em muitos casos, somos nós mesmos a agir assim. Nunca erramos e os problemas do mundo estão sempre nos outros - os atrasados, com sua militância de sofá e pouca atitude. Talvez seja o excesso de coisas a se pensar. Especialmente para os brancos ricos e bem nascidos, que frequentam boas faculdades, enquanto procedem com análises antropológicas sobre questões que nem lhes dizem muito respeito. No recente filme de Denys Arcand, a rotina de uma casa de repouso para idosos de Quebec, no Canadá, é abalada com o surgimento de um grupo de jovens manifestantes, que realizam um protesto em frente ao local, por causa da existência de uma antiga pintura que seria ofensiva às Primeiras Nações. "Essas são imagens de um genocídio anunciado!", brada uma das ativistas. Em tempos de cancelamento retroativo, essa comédia cínica e debochada coloca o dedo na ferida ao inserir o famoso tribunal das minúsculas causas no centro do debate. Vale cada segundo. Leia a resenha completa. Onde ver? Reserva Imovision.

 

 


 

13) O Mal Não Existe (Aku Wa Sonzai Shina): Em uma das cenas centrais do mais recente trabalho do ótimo Ryusuke Hamaguchi, os moradores de uma pequena aldeia montanhosa dos arredores de Tóquio, participam de uma assembleia com dois executivos de uma grande empresa, que prometem fazer um investimento turístico no local. Vestindo trajes sociais e utilizando um tom empolado, os profissionais explicam aos nativos os detalhes do projeto, que envolve a construção de uma espécie de camping de luxo. As desculpas para a execução da obra costumam ser as mesmas de sempre: geração de empregos e de renda, melhorias na infraestrutura ou qualquer outro aspecto relacionado ao capitalismo tardio e a sua sanha por lucros a qualquer custo. Quando a apresentação de power point é encerrada, os habitantes do povoado promovem uma chuva de perguntas sobre questões relevantes, como, local onde será instalada a fossa, de como se evitarão as queimadas na estação dos ventos ou de quais serão os sistemas de contenção no solo para evitar o assoreamento. Em tempos em que as discussões a respeito da importância de se preservar o meio ambiente e de agir de forma mais sustentável estão em alta, a obra de Hamaguchi coloca o dedo na ferida ao fazer com que olhemos para o presente como um espelho para o futuro. Leia a resenha completa. Onde ver? Mubi.

 

 


 

12) Ficção Americana (American Fiction): Ambientes domésticos inóspitos, infâncias difíceis, problemas relacionados ao uso de drogas, prostituição, violência policial - vamos combinar que o combo que reflete a experiência afroamericana na literatura dificilmente foge desses clichês. É uma coisa quase automática. Aliás, quanto mais próxima desse tipo de estereótipo, mais a obra parece adequada para que o branco médio disposto a consumi-la, se sinta absolvido de algum tipo de culpa. Especialmente no campo acadêmico progressista parecem apenas uma forma de fetichizar os traumas negros, que ficam reduzidos a lugares comuns. Para a indústria e para as editoras, talvez essa seja uma forma de apelar para a suposta diversidade. Autores negros, lutando por representatividade, em um ambiente de branquitude reinante. Uma espécie de "pornografia da pobreza" travestida de ficção. Isso é salutar? Na trama desse ótimo e controverso filme, o escritor Thelonious Ellison (Jeffrey Wright) faz de tudo pra lançar uma nova obra, chamada Os Persas, encontrando uma série de barreiras por não ser um legítimo "livro de negros" (ou seja lá o que isso signifique). Engraçado, reflexivo e ousado, esse é um projeto que ousa ao discutir esvaziamento de pauta e os clichês da roda que movimenta o capitalismo. Leia a resenha completa. Onde ver? Amazon Prime.



 

11) O Bastardo (Bastarden): Um sujeito solitário de nome Ludvig Kahlen, que passou parte de sua vida defendendo o exército alemão, e que agora tenta construir uma vida em uma área improdutiva e inóspita. O ano é 1755 e esta é uma história de origem da Dinamarca, com regras políticas mal engendradas e códigos morais inexistentes. Em linhas gerais, o diretor Nikolaj Arcel conduz a narrativa entre o afeto (pela terra, pela agricultura) e a violência, sem muita pressa, e apostando na força visual das pequenas dinâmicas, e em uma espécie de preparação permanente para os grandes eventos. Os diálogos são econômicos. As imagens aéreas são abrangentes, destacando a vastidão do cenário (que funciona como um catalisador para um senso meio palpável de isolamento e que, em alguma medida, nos faz admirar esses homens do passado, em seu esforço civilizatório em meio ao nada). Kahlen, ao cabo, deseja apenas produzir alimentos. E ter um título de nobre. Só que no meio do caminho surge um certo Frederik De Schinkel, um jovem e arrogante proprietário de terras da vizinhança, que busca o monopólio dos negócios. Sim, pode parecer cansativo. Mas esta é uma obra comovente e assombrosa sobre resiliência em tempos difíceis. Leia a resenha completa. Onde ver? Apple TV e Amazon Prime (aluguel em ambos).

 


 

10) O Último Pub (The Old Oak): Vamos combinar que, nos tempos brutos que vivemos, não tem sido muito fácil manter a esperança por dias melhores. Ascensão da extrema direita, xenofobia, intolerância religiosa, crise climática, pandemia, tecnologia desenfreada - enfim, nada parece contribuir para um cenário de pacificação, em meio a tanta turbulência. E talvez seja justamente o excesso de otimismo - numa narrativa que, por vezes, beira a utopia -, o que tenha incomodado os espectadores acostumados ao estilo áspero do britânico Ken Loach. Afetuosa e inspiradora, a obra é daquelas que, mais uma vez, reforça a importância da coletividade e da empatia ao contar a história de um grupo de refugiados da Síria, que chega a uma pequena cidade conservadora do interior da Inglaterra, tendo de lidar com os preconceitos dos moradores locais - muitos deles ressentidos com o fechamento de fábricas, num passado nem tão distante. Com um sem fim de instantes comoventes, essa é uma produção que nos lembra da importância da solidariedade, da pacificação e da aceitação da dor do outro. Sejam eles trabalhadores de mineradoras, ou imigrantes em fuga. Pode ser meio utópico. Mas se abandonarmos a esperança, o que fica? Leia a resenha completa. Onde ver? Apple TV e Amazon Prime (aluguel em ambos).

 

 


9) Os Colonos (Los Colonos): Um soldado britânico, um cauboi americano e um mestiço chileno entram num bar e, bom, pode parecer começo de uma anedota de mau gosto, mas é uma excelente maneira de recontar um tipo de história que, em muitos casos, foi apagada. E esse é só um dos muitos méritos do enviado do Chile à última edição do Oscar. A obra tem aquela cara de faroestão clássico, como se fosse uma mescla de No Tempo das Diligências com Todos os Belos Cavalos, de Cormac McCarthy. Só que a diferença aqui é que estamos na América do Sul do começo do Século 20 e nesse ambiente inóspito que é meio que terra de ninguém, um certo estancieiro de nome José Menendez envia uma expedição em direção ao Atlântico para não apenas delimitar, mas talvez recuperar terras concedidas pelo Estado. Claro que no caminho há uma grande chance de eles se depararem com tribos indígenas - os Onas habitam a região e se houver qualquer tipo de dificuldade com eles, a regra é clara: matar se for preciso. Revisionista, a trama baseada em fatos reais retira certo romantismo que pode pautar os relatos de colonizadores, para tratar de um passado de violência, de morte, de sangue, de abusos e de mais forte oprimindo o mais fraco. Filmaço. Leia a resenha completa. Onde ver? Mubi.


 


8) Monstro (Kaibutsu): "Eu estou curado da minha doença". Em uma das mais comoventes sequências dessa linda obra do sempre ótimo Hirokazu Koreeda, o pequeno Hoshikawa explica ao seu melhor amigo Minato, que eles não podem mais conviver juntos. Pressionado pelo pai, Hoshikawa explica que vai se mudar, que há uma menina de que ele gosta e que agora ele é "normal". "Você sempre foi normal", retruca Minato, explicitando a complexidade da relação de ambos e também em que medida a participação do professor Hori e da mãe solo de Minato. Saori movimentam a narrativa.. Quando o filme começa, a impressão que temos é a de estar diante de um drama meio convencional. Um incêndio ocorre de madrugada e consome um prédio do centro da cidade. O professor talvez estivesse no prostíbulo e passa a ser julgado, especialmente após ser acusado de agressão. Talvez mais do que isso. Minato passa a se comportar de forma muito estranha - sendo o auge da esquisitice quando ele desaparece e surge "perdido" em um túnel junto à ferrovia, no meio da noite, fora da cidade. É tudo meio tenso e bem construído, em uma trama cheia de simbolismos e que discute temas, como, superproteção paterna, abusos infantis e a incomunicabilidade humana como um todo. Leia a resenha completa.  Onde ver? Reserva Imovision e Globoplay.

 

 


7) 20.000 Espécies de Abelhas (20.000 Especies de Abejas): Se tem uma coisa que me fascina em certos dramas familiares é a capacidade de adicionar complexidade às suas personagens - nunca reduzindo-as a meros estereótipos ou a figuras apenas unidimensionais. Ninguém é perfeito o tempo todo. Somos seres humanos que falhamos, que tentamos acertar e que podemos ter escolhas moralmente questionáveis. E a estreia da diretora Estibaliz Urresola Solaguren, entrega esse tipo de experiência a contento o que adiciona uma boa dose de naturalismo à produção. Aliás, vamos combinar que essa sensação é reforçada também pela interpretação comovente da jovem atriz mirim Sofia Otero, com seu olhar curioso, destemido, cauteloso e insatisfeito. Em linhas gerais a gente tende a invisibilizar as crianças queer, como se elas não existissem - e num cenário de aumento do reacionarismo e do pânico moral, um filme que aborda o tema, ainda que com a maior delicadeza possível, pode ser inevitavelmente mal recebido. Ainda assim há que se admirar a ousadia da realizadora, que quebra esse paradigma ao nos apresentar as tensões e os dilemas de uma menina transgênero de oito anos, que trava uma verdadeira batalha interior na busca por uma nova identidade. Uma joia. Leia a resenha completa. Onde ver? Reserva Imovision.

 

 


6) La Chimera:"Você estava sonhando?". Quem acompanha o trabalho da diretora Alice Rohrwacher sabe de sua habilidade na hora de juntar dramas cotidianos com um tipo de fantasia de pegada quase felliniana. Aqui, a despeito da sinopse genérica (um grupo de arqueólogos confronta o mercado negro de artefatos históricos), temos um filme divertido, provocador, cheio de pessoas complexas e com comportamentos ambíguos - no caso um grupo de ladrões que violam túmulos em um busca de objetos de valor que possam ser contrabandeados no mercado negro. E tudo com uma pegada meio política de contestação, de iconoclastia e de quebra do status quo e que passa longe da banalidade da síntese. O protagonista da obra é Arthur, um inglês que volta à Itália, após ter passado uma temporada na prisão. A acalorada recepção de seus parceiros de pilhagens - a ambientação rural parece ser meio oitentista, o que é reforçado pela fotografia em tons pasteis, e pelos figurinos antiquados e festivos -, esconde uma verdade: a de que ele sente falta de Beniamina, sua ex-namorada que ninguém sabe direito o paradeiro. Conduzindo o espectador em uma série de alegorias, a diretora nos aproxima desse bando de foras da lei de carisma quase infinito, o que converte a experiência em um conto de fadas nostálgico, mágico, bucólico e comovente. Leia a resenha completa. Onde ver? Indisponível.



 

5) Dias Perfeitos (Perfect Days): Um filme sobre rotina. Mas também sobre a alegria de simplesmente estar vivo. Assim pode ser resumida a experiência com esse tocante filme do versátil Wim Wenders, enviado ao Oscar desse ano pelo Japão. Na trama, acompanhamos o dia a dia do carismático Hirayama (Koji Yakusho), um senhorzinho de sessenta e tantos anos que se ocupa limpando banheiros públicos em Tóquio. Convivendo com a invisibilidade meio típica de seu serviço o idoso experimenta, aqui e ali, contatos esporádicos com outras pessoas, com as quais compartilha pequenos instantes que movimentam o seu cotidiano. Conferindo algum verniz para um estado de coisas que poderia apenas parecer banal. O caso é que, por mais solitário que Hirayama seja, ele parece sempre disposto a reverenciar a chegada de um novo dia. Escovar os dentes, molhar as plantas, preparar o café e a roupa que será utilizada, abrir a porta e respirar o ar da rua, espiar o sol que busca algum espaço em meio à natureza frondosa, ouvir música - aliás, música boa - no caminho para o trabalho, em antigas fitas cassete. Ajudar uma criança. Um carinho meio inesperado de alguém. Uma volta de bicicleta em um dia chuvoso. A poesia pode estar nas coisas simples da vida? Talvez sim. Leia a resenha completa. Onde ver? Mubi.


 


4) Não Espere Muito do Fim do Mundo (Nu Aștepta Prea Mult de la Sfârșitul Lumii): Vamos combinar que só o título do novo filme de Radu Jude já é um atrativo à parte. Ainda mais pra quem já está familiarizado com a obra de Jude que, com seu irresistível cinismo e uma propensão ao deboche, costuma usar sua arte para uma severa crítica à contemporaneidade - seja na incapacidade institucional, nos equívocos do capitalismo tardio, na incomunicabilidade humana em um período em que nunca estivemos tão conectados, ou mesmo da hipocrisia da sociedade e, especialmente, de seu conservadorismo atroz. Ao cabo é um conjunto que se soma a outras questões atuais e que vão desde as guerras e a pandemia, passando pelo avanço da extrema direita, da xenofobia e outros preconceitos. Na trama, acompanhamos a rotina conturbada da jovem Angela, uma empregada de uma produtora de vídeo que está encarregada de fazer uma série de entrevistas sobre segurança do trabalho para uma multinacional. Essa é só a deixa para intercalar uma série de sequências assombrosas sobre jornadas excruciantes de trabalho, individualismo da sociedade, misoginia constante e outras fraturas - metafóricas ou não. O mundo caminha inexoravelmente. Mas pra onde? Leia a resenha completa. Onde ver? Mubi.




 

3) A Substância (The Substance): A busca por padrões estéticos inalcançáveis, certamente rende horas de discussões, de teses e de estudos. E que um filme como A Substância contribua para esse debate de forma tão eficiente, chocante e sem concessões, é algo não menos do que notável. Sim, as pessoas saíram das salas de cinema impactadas com o body horror dirigido pela francesa Coralie Fargeat - obra que leva à busca pela perfeição e pela juventude como sinônimo de beleza ao limite do aceitável. Na trama, Demi Moore é Elisabeth Sparkle, uma antiga estrela de Hollywood (com direito à nome na Calçada da Fama e tudo) que, hoje, próxima dos 60 anos, sobrevive com um programa matinal de ginástica para a terceira idade (daqueles bastante populares nos Estados Unidos). Só que Elisabeth tem percebido um movimento nos bastidores, com acionistas e diretores pretendendo substituí-la por alguém mais jovem. A solução? A aquisição de um kit para um tratamento experimental com um produto injetável, que lhe possibilitará ter acesso a uma versão "melhor de si mesma". Fargeat pode até exagerar na dose ao tentar reforçar seu ponto ou a sua bandeira. Mas a mensagem sobre autoaceitação e etarismo martela, após a subida dos créditos. Leia a resenha completa. Onde ver? Mubi.

 


 

2) Ainda Estou Aqui: Vamos combinar que, por si só, Ainda Estou Aqui já seria mais um filmaço a nos lembrar os horrores da ditadura militar - com sua disposição à tortura, violência e morte - e a importância de conhecer a história para, nesse caso, não repeti-la. Mas o timing foi realmente impressionante, já que a obra foi lançada na mesma semana em que um plano para assassinar Lula, Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes foi revelado pela Polícia Federal. Nesse caso não dá nem pra dizer que é a vida imitando a arte porque na realidade é a vida imitando a vida mesmo. Quando a gente vê que o próprio Bolsonaro autorizou tentativa de golpe até o final de 2022, com o documento que descrevia a operação sendo redigido e impresso no próprio Palácio do Planalto, percebemos que estivemos por um fio de ver a nossa Pátria novamente mergulhada nos horrores de um regime tirânico. Não sendo difícil sentir um calafrio ao acompanhar a história real de Eunice Paiva (Fernanda Torres), que precisa tentar tocar a vida após o seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello), desaparecer, após ser levado de sua casa por integrantes do regime. Ao cabo, essa obra de terror - o terror da bota, da farda -, reforça a ideia de que anistia é o cacete! Leia a resenha completa. Onde ver? Cinema.



 

1) Pobres Criaturas (Poor Things): "Agora você só sabe ler, Bella? Assim parece que você está perdendo algo de sua ingenuidade, da sua forma de falar!" A cena em que Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo) se desespera ao perceber que sua amada Bella Baxter (Emma Stone) não é mais aquela figura infantilizada e inocente da qual ele tinha total domínio, talvez seja uma das melhores do filme de Yorgos Lanthimos. E, em alguma medida, é nesse instante que, como espectadores, percebemos também a importância do conhecimento como um caminho para a autonomia, para as tomadas de decisão, para a saída das amarras. Os homens reacionários que ainda habitam esse mundo normalmente tem dificuldade em lidar com mulheres de personalidade, empoderadas ou que não estão ali apenas para servi-los. Sim, os tempos estão mudando e talvez não seja exagero examinar essa obra como uma alegoria feminista sobre sororidade, igualdade entre gêneros e luta por direitos. Talvez esteja vendo demais? Talvez. Ainda assim, que uma obra tão excêntrica tenha chegado ao Oscar é só uma prova de que cinema é, sim, entretenimento, mas também uma forma de sair da zona de conforto. Ousado, provocativo, estranho, sedutor, esse filme entrega absolutamente TUDO. Pra desespero do tiozão conservador. Leia a resenha completa. Onde ver? Dinsey+.


Como já dissemos no texto, essa é disparadamente a lista mais difícil de se fazer. Primeiro por não termos conseguido assistir tudo o que gostaríamos. E depois por ter de deixar muita coisa legal de fora. Mas, o resumo da ópera é: foi mais um belo ano para o cinema. E vale a pena se atualizar nas produções elencadas, antes de receber o 2025!