quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Lado B Classe A - Taylor Swift (1989)

Talvez seja um dos maiores clichês da crítica especializada musical - nós não nos incluímos nela, só pra constar -, falar em maturidade do artista, conforme seus discos vão sendo lançados. Sim, é uma coisa meio óbvia pensar que éramos uma pessoa aos 20 anos e que, muito provavelmente seremos outra aos 30. E mais ainda outra aos 40. O tempo passará e com ele virão as experiências que nos formarão. Que servirão de aprendizado. E que darão sentido à nossa existência. Se para nós, reles mortais, esse lugar-comum é algo um tanto inevitável, é possível afirmar que para cantores/compositores isso também seja uma possibilidade. E, no caso da norte-americana Taylor Swift, uma análise de sua discografia - ela acaba de lançar seu sétimo álbum de estúdio, chamado Lover - também nos permitirá essa conclusão. Há 13 anos, quando lançou seu primeiro disco - na ocasião uma jovenzinha de 17 anos -, Taylor era uma. Agora, perto dos 30, certamente é outra.

Bom, nós não queremos com esse post falar de Lover - você lerá resenhas bem escritas nos mais variados sites de cultura e entretenimento (a gente indica o baita texto do nosso CHAPA CEL, do Célula Pop) - e, sim, do ponto de ruptura para Taylor, o que ocorre com o álbum 1989 de 2014. Daquele momento em que ela deixa de ser a menininha sofrenilda que pega seu violão na mão para compor um amontoado de músicas sobre como a vida lhe é dura, sobre como é difícil ser rejeitada, ser esquisita. Ser traída. Do homônimo álbum de 2006 até o bom Red (2012), a cantora transformava o seu trabalho em uma forma de exorcizar os dramas dos relacionamentos juvenis fracassados - o que, de forma simbólica, também aparecia em uma certa insipidez da melodia, quase sempre era um country/folk doloroso, de refrão autoindulgente onde a paisagem sonora que mais se destacava era a de um violão definitivamente bem tocado, mas eventualmente pálido. O sofrimento pálido da garota branquela de classe média também pálida.


Bom, sobre a chegada de 1989, é a própria Taylor quem admite, na época em que o álbum foi lançado, esse novo deslocamento de sua sonoridade - "esse é meu primeiro álbum oficialmente pop", publicou no material de divulgação, à época. E você, atento leitor do Picanha, poderá eventualmente perguntar o que há de maduro em, finalmente, ser pop? Se pensarmos do ponto de vista de gênero musical, talvez pudéssemos dizer, com alguma sinceridade, que NADA. Mas nesse caso, a mudança representava uma quebra de paradigma que viria a ser implementada por um coletivo de produtores como Shelback e Ryan Tedder. E foram justamente eles que viriam a incorporar ao cancioneiro de Taylor os sintetizadores mais efervescentes, os acordes de baixo palpitante, os vocais de apoio bem pontuados, uma percussão menos óbvia. Saía assim de cena o violãozinho insípido da garotinha tímida, para surgir em cena uma nova figura agora transformada, arejada e disposta a, de forma orgânica, produzir um "novo" tipo de som. Mais forte. Menos minimalista.

Mas o processo de "ruptura" talvez não seria totalmente possível se as letras, sempre sobre relacionamentos, também não passassem por uma repaginada. Se em canções como o single You Belong With Me, presente no disco Fearless, ela era a garota simples de coração bom, que usava tênis e camiseta, mas que estava sempre atrás da "líder de torcida", em Blank Space, single presente em 1989, ela toma as rédeas de quem está pronta pra mostrar "coisas incríveis ao seu parceiro", talvez sendo ela a figura paranoica que lhe faria uma espécie de contraponto anos atrás (o que também é atestado pelo ótimo videoclipe da música). Essa Taylor forte, que passou por vários relacionamentos fracassados, que cresceu, que amadureceu, reaparece em outros momentos do álbum, seja na noventista/festiva Welcome To New York (Todo mundo aqui era outra pessoa antes / E você pode querer quem você quiser) e All You Had To Was Stay (Pessoas como você sempre querem de volta / O amor que jogaram fora), que mais parece uma música do M83, fase Hurry Up We're Dreaming (2011).



Divertido, festivo, heterogêneo, o álbum nunca deixa a peteca cair. Ao não fazer mais o mesmo disco de sempre, Taylor não abandona completamente suas origens - é possível perceber elementos de sua discografia anterior aqui e ali, seja num refrão grudento, seja num comentário debochado sobre o absurdo dos relacionamentos amorosos juvenis e suas nuances. Mas, determinadamente, ela evolui, incorpora outros elementos, acrescenta camadas e, assim, uma maior densidade. Músicas como Out Of The Woods e Wildest Dreams, por exemplo, aproximam a artista muito mais de contemporâneas como Jessie Ware, do que necessariamente de Katy Perry. É música pop, mas nunca óbvia - e que pavimentaria o caminho para seus dois trabalhos seguintes, Reputation e o já citado Lover. Bem recebido pela crítica, o registro tem média geral de 76 no Metacritic - que compila notas da crítica especializada, com nota máxima de 100. O que também justifica a sua audição.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Novidades em DVD/Now - Casal Improvável (Long Shot)

De: Jonathan Levine. Com Charlize Theron, Seth Rogen, Andy Serkis, O'Shea Jackson Junior e Bob Odenkirk. Comédia romântica, EUA, 2019, 125 minutos.

Não há premissa mais básica para que uma comédia romântica funcione do que a existência de uma boa química entre o casal protagonista. É preciso que torçamos por eles, que desejemos efetivamente que eles superem as adversidades e consigam ficar juntos. Mas infelizmente não é o que acontece no irregular Casal Improvável (Long Shot), a mais nova bobajada estrelada por Seth Rogen. Quem acompanha a carreira do ator sabe que, em seus filmes, ele quase sempre faz o mesmo papel: o do adulto nerd infantilizado que, perto dos 40 anos, continua sendo... o mesmo adulto nerd infantilizado. Aqui, ele é o jornalista Fred Flarsky, sujeito que trabalha em um site de ideais progressistas, que é comprado por um conglomerado de mídia comandado pelo conservador Parker Wembley (Andy Serkis em ótimo papel).

Insatisfeito com os rumos tomados pela empresa em que trabalha, Fred pede demissão e, numa noitada para "celebrar" essa nova fase - ele vai a uma festa com seu amigo Lance (O'Shea Jackson Junior) - ele acaba reencontrando a sua babá da adolescência. Detalhe: a babá em questão é a atual Secretária de Estado norte-americana Charlote Field (Charlize Theron), que deverá concorrer à presidência nas próximas eleições. Um encontro desajeitado entre ambos na festa, motiva Charlote a contratar Fred para a sua equipe de comunicação. Com a qualidade apresentada por seus trabalhos na imprensa, ele é incumbido de escrever os discursos da líder, que faz campanha por todo o mundo, com a intenção de colocar em prática uma agenda ambientalista. Não demora para que ambos engatem um romance - mesmo não tendo absolutamente NADA a ver.


Pra mim o absurdo de um casal formado por Seth Rogen e Charlize Theron nem está tanto na discrepância entre a beleza de ambos. O caso é que Fred é uma figura totalmente sem graça. Simplória. Sem profundidade. O seu comportamento de jornalista ligado aos temas sociais soa forçado - e mesmo em uma sequência efetivamente engraçada, como a dos neonazistas, ele parece apenas um estagiário boboca, atrás de uma boa matéria. A gente não acredita nele. Não acredita no que ELE supostamente acredita. Assim como é bobo ele não possuir uma roupa que preste, não sabendo o que usar em um evento mais formal. E o que Charlote enxerga nele não fica exatamente claro. Algum tipo de nostalgia juvenil que remete aos primeiros relacionamentos? Uma saudade do que não se teve? Ela é uma poderosa mulher, que tem lá suas ambições: por que ficaria com um sujeito que anda de boné e jaqueta surrada pra lá e pra cá, cujo assunto principal é Game Of Thrones? E que é totalmente brega na abordagem? Autenticidade? Huum, não me convence. É possível quebrar o status quo de outras formas.

Do ponto de vista do debate político, o filme até se esforça: há boas piadas e comentários sociais sobre feminismo e igualdade de gênero e sobre o absurdo da misoginia em um ambiente povoado por homens brancos e héteros. Há também algumas boas alfinetadas no Governo Trump - a cena em que Lance revela à Fred ser um republicano é disparada uma das melhores. E, não por acaso, o personagem de Bob Odenkirk (que vive o atual presidente), parece uma pessoa desprezível, interessada apenas em aparecer na TV e satisfazer seu ego. Aliás, uma outra boa sequência é quando o sujeito esbraveja por algum motivo no Salão Oval apenas para revelar, segundos depois, que se preparava para um teste para um papel. Mas mesmo esses momentos razoáveis não salvam a película daquilo que ela prometia. O discurso no fim das contas soa oco, quando a gente assiste as mesmas piadas escatológicas de sempre, sobre diarreias e masturbação e que Rogen e sua trupe parecem sempre achar engraçado. Mesmo não sendo. Bom, eu também sou filho de Deus e, de vez em quando, só quero uma comédia romântica pra desopilar: infelizmente essa não me fez rir. E o casal ainda era nada a ver.

Nota: 4,0

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Tesouros Cinéfilos - Animais Noturnos (Nocturnal Animals)

De: Tom Ford. Com Amy Adams, Jake Gyllenhaal, Michael Shannon, Laura Linney e Aaron Taylor-Johnson. Drama / Suspense, EUA, 2016, 115 minutos.

Atire a primeira pedra quem nunca tomou decisões erradas na vida, das quais se arrepende amargamente. Sim, todos nós já passamos por isso e, de alguma forma, uma das tantas subtramas contidas no enigmático Animais Noturnos (Nocturnal Animals), do diretor Tom Ford, trata desse tema. Mais especificamente da tentativa de continuar a vida a partir de escolhas que poderiam ter sido melhor pensadas. Vai saber. Mas o filme também é sobre exorcizar demônios, especialmente a partir da criação artística. E, estes aspectos, somados a outros, tornam esta não apenas uma excelente obra de suspense, mas também uma importante reflexão a respeito de nossas atitudes. Na trama, Susan (Amy Adams) e Edward (Jake Gyllenhaal) são divorciados. Ela, uma artista plástica com alguma reputação - sua nova (e provocativa) instalação acaba de ser lançada. Ele, um escritor que tenta de todas as formas lançar algum livro que emplaque no mercado editorial.

Em comum o fato de ambos estarem tentando seguir em frente, a partir de um término aparentemente traumático - os fatos que resultam da separação descobriremos mais tarde. No começo do filme, Susan recebe de Edward uma espécie de manuscrito com a sua nova obra. Intitulada Animais Noturnos e dedicada a ex, contará a história de um casal que sai de férias, acompanhado da filha. O que era pra ser uma noite tranquila, se torna uma experiência de terror: eles encontram uma espécie de gangue na estrada, que inicia uma série de jogos sádicos com a família, após o veículo destes ficar com um pneu furado. Os longos minutos de sofrimento e de violência, terminam com esposa e filha sequestradas, com o protagonista do livro, em desespero, tentando localizá-las de todas as formas. Para isso contará com a ajuda de um misterioso detetive - vivido pelo sempre competente Michael Shannon.


O que acompanhamos no filme, na verdade, é a leitura que Susan está fazendo do livro - e Ford, um estilista que se tornou diretor de cinema, é inteligente ao replicar a visão de mundo da protagonista, para aquilo que vemos encenado em tela. Por exemplo, o pai da família dentro do livro, um sujeito de nome Tony Hastings, tem a fisionomia do ex, ao passo que a esposa se parece com ela (mesmo sendo vivida por Isla Fisher). Os eventos trágicos serão descortinados aos poucos, condição em que será possível perceber um sem fim de contrastes: Edward parece finalmente ter encontrado a sua maestria artística com o seu talentoso livro. Já Susan, apesar de rica, parece frustrada. A espiral de decadência burguesa se completa com um relacionamento frio - seu marido Walker (Armie Hammer), sequer participa da vernissage de lançamento de seu trabalho (uma sequência inesquecível vista no começo da película). E logo parte em viagem. Onde encontra uma amante.

Parece meio confuso, mas não é. Susan, assim como sua família (a única participação de Laura Linney como a mãe da artista plástica é ótima), sempre foi ambiciosa. Isto fica presente nas entrelinhas, nas conversas com amigos e pessoas ligadas ao meio em que vive. E o casamento com um postulante a escritor pobretão - por mais que se tratasse de um sujeito romântico, sensível e dedicado -, nunca representou o tipo de status que ela desejaria. Só que o caso é que a leitura e, especialmente, a conclusão do livro que lhe foi remetido, não lhe farão perceber que não apenas ela mudou. Ou se arrependeu. Ele também está mudado. E o momento em que ele afirma que escreve para "manter as coisas vivas, coisas que morrerão um dia" pode até parecer um contrassenso: mas representa, na verdade, alguém que está seguindo em frente. E que utiliza uma novela fictícia como representação desse sentimento. Isso se pensarmos que efetivamente foi ESSE o sentido que Edward quis dar a sua publicação.



Com desenho de produção e fotografia espetaculares - gosto dos contrastes entre as cores dos objetos, como na cena em que um sofá vermelho aparece em meio ao deserto amarelado e suarento -, o filme ainda utiliza os flashbacks de forma inteligente para que conheçamos um pouco mais da história do casal, do declínio da relação e de quais os caminhos que os fizeram chegar até o estágio atual. Reflexão valiosa sobre comportamento, sobre tentativa de mudança e sobre a produção de sentido na arte, a obra mantém a expectativa até a última sequência, jamais abandonando o clima de noir misterioso, sofisticado, que pode ser percebido na elegância dos figurinos e ambientes requintados, que surgem como um contraponto da violência animalesca produzida pelas figuras "noturnas", suas roupas sujas e seus modos agressivos. Filmaço.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Grandes Cenas do Cinema - Os Brutos Também Amam (Shane)

Cena: uma perseguição desesperada a SHAAAAANEE!!

Para muitos, uma cena absurdamente comovente. Para outros, uma das mais irritantes. Mas para todos os que assistiram Os Brutos Também Amam (Shane), a sequência do menino Joey (Brandon de Wilde) correndo desesperadamente atrás de Shane (Alan Ladd), quase ao final do filme, gritando pelo seu nome, é uma das mais inesquecíveis da história do cinema. E se torna mais impactante ainda pelo fato de que o menino desejava apenas pedir desculpas. O Shane de Ladd era um sujeito misterioso, um pistoleiro "aposentado" que chega ao rancho de Joe Starrett (Van Hefflin) meio que por acaso e fica para ajudá-lo nas lidas da pequena propriedade. Sujeito de modos calmos e olhar tranquilo, o homem logo chama a atenção do filho do anfitrião, o já citado Joey que, não é exagero dizer, se "apaixona" por Shane - ou talvez pela ideia de segurança, de suporte físico e emocional que ele passa a representar para a família, que é completada por Marian (Jean Arthur).

Como era de praxe nos faroestes, o filme é bastante conservador, ressaltando a importância da família, de Deus e do direito à propriedade, como valores caros à sociedade (especialmente naquela época, com os Estados Unidos tentando superar os eventos ocorrido na Guerra Civil). Mas, de alguma forma, surpreendem algumas quebras de paradigmas dentro do estilo - com direito até mesmo, pasmem, a um tom pacifista no discurso, o que pode ser percebido pela baixa quantidade de tiros disparados durante a película ou até mesmo pelas longas divagações a respeito do absurdo de se empunhar uma arma (esse contraponto personificado, em muitos casos, por Marian, que se horroriza em certa sequência em que Shane ensina o pequeno Joey a manipular o revólver).


Já Ryker é um vilão um pouco diferente, já que representa os grandes latifundiários - sendo Starrett e os demais moradores da comunidade o seu contraponto (pequenos produtores com pequenas faixas de terra). Será nessa luta por ocupação de espaço - e por criação e gado e de renda - que se estabelecerá o arco dramático. Ryker é o opositor que se vangloria de já ter expulsado daquela região - o Estado do Arkansas -, os índios e os aventureiros, ao passo que a família protagonista (que mantém Shane abrigado), só deseja produzir para sobreviver, para o autoconsumo. Um tipo de debate que estabelece, já naquele ano, o agronegócio como o antagonista da ideia da pequena propriedade, com as famílias rurais cultivando alimentos e ocupando a terra para a sobrevivência. O que em um filme de faroeste, mesmo em um de aparência antiquada, cafona como é o caso de Os Brutos Também Amam, é algo a ser celebrado.

Com Shane vivendo diariamente junto à família, é estabelecida uma curiosa dinâmica. Há uma tensão (sexual ou não) entre a figura vivida por Ladd e Marian (repare como Joe os observa com certa reserva na cena em que se comemora o 4 de julho), ao passo que todos os seus integrantes sabem de sua importância ali para a sua continuidade, a sua sobrevivência. Com muito menos cenas de luta e de tiroteios, e muito mais reflexões sobre moral, ética e costumes, a obra pode soar meio enfadonha para aqueles que preferem os roteiros mais "movimentados". Mas no contexto do filme dirigido por George Stevens (Assim Caminha a Humanidade, Um Lugar ao Sol), aquilo tem sentido: Sane está tentando deixar para trás o seu passado obscuro e encontra no acolhimento da família uma espécie de alternativa à isso. Mas quando ele volta a matar, friamente, o algoz daqueles que ali vivem, ele percebe que a sua essência não vai mudar. E que, consequentemente, de nada adiantará o jovem Joey lhe chamar desesperadamente. Ele já foi. Antes mesmo de ir.

Infelizmente revirei o Youtube para encontrar a cena do menino correndo do protagonista pelas pradarias aos gritos por Shane, mas não encontrei. De qualquer maneira a sequência final, após a "batalha" decisiva, funciona quase como uma extensão daquela aqui mencionada. E vale a pena ser recordada.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Foi Um Disco Que Passou em Minha Vida - Os Paralamas do Sucesso (O Passo do Lui)

Por que você não olha pra mim? Ô ô
Me diz o que é que eu tenho de mal ô ô
Por que você não olha pra mim?
Por trás dessa lente tem um cara legal.

Pra quem cresceu usando óculos, como foi o caso deste que vos escreve, poucas músicas foram mais simbolicamente relevantes quanto aquela que abre o disco O Passo do Lui, d'Os Paralamas do Sucesso. Quando escutava ela no rádio em meados dos anos 80, ainda não sabia direito o que ela significava, em sua magnitude. Mas era uma canção que afagava aquele menino de apenas seis anos que, inesperadamente, se tornava o mais novo "quatro olhos". Óculos, até hoje, é uma das músicas nacionais preferidas da vida. Sou capaz de colocá-la na mesma "prateleira" de Construção do Chico Buarque ou de Tropicália do Caetano Veloso. Há um clima primaveril da juventude efervescente nela, amparado pelo divertido contraponto entre ser esnobado pelas gurias do Leblon e fazer "charme de intelectual" para conquistá-las. A canção começa com um suingue ensolarado, uma guitarrinha e uma percussão sacana, que explodem no refrão. E que fazem qualquer guri que "não nasceu assim" sorrir de orelha a orelha, por se sentir representado por um dos caras mais legais do rock brasileiro.

O Passo do Lui foi lançado em 1984. E, evidentemente, ele não era apenas Óculos. O Brasil estava próximo da abertura política, com os compositores se sentindo mais à vontade para escrever músicas sobre os dilemas da juventude, suas frustrações amorosas, a busca da felicidade e valorização das coisas simples. Já havia sido assim um ano antes, quando Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone surgiram para o mundo com o modesto Cinema Mudo. O disco não chamou tanto a atenção, ainda que Vital e Sua Moto - o primeiro sucesso da carreira - trouxesse algum tipo de divagação bastante semelhante àquela vista em Óculos: a do jovem buscando a felicidade, que poderia ser simbolizada pelo "sonho de metal" (ou pelas meninas que olhassem para o eu lírico que andava por aí de óculos). Herbert Vianna se transformaria assim numa espécie de voz daquela juventude classe média, relativamente politizada, com suas letras cheias de referências ao cinema, a literatura e ao simbolismo da liberdade alcançada numa moto, num óculos, em um romance bem sucedido.


Nesse sentido, talvez não tenha sido por acaso que o registro fez tanto sucesso. Seus hits - Meu Erro, Romance Ideal, Ska, Mensagem de Amor - tocavam a exaustão nas rádios. Os Paralamas do Sucesso foram tocar no Rock In Rio no ano seguinte, o que contribuiu para que o álbum se espalhasse com mais força. A mistura saborosa de ska, dubstep, reggae e música pop, os refrões ganchudos, urgentes, tudo contribuiu para que o trabalho se tornasse um dos mais inesquecíveis da história. Só fui conseguir comprar o álbum bem mais tarde. Mas aquelas músicas já estavam todas impressas na minha mente: fosse na rodinha de voz e de violão do colégio, com a moçadinha cantando a letra de Meu Erro de cabo a rabo - travestida de uma autoridade sobre relacionamentos que ainda estava bem longe de existir (se é que HOJE existe) -, fosse no isolamento do quarto, cantarolando para si próprio os versos de Óculos, na tentativa comovente de acreditar que, sim, não há nada de mal em usar aquilo.

O Passo do Lui certamente pavimentou o caminho para que Os Paralamas se tornassem a maior banda nacional que existe - bom, é a minha preferida desde sempre. Discos como Selvagem (1986), Os Grãos (1991) e Nove Luas (1996), despejaram DEZENAS de hits, como, Alagados, Tendo a Lua, Caleidoscópio, Melô do Marinheiro, O Beco, Trac Trac, La Bella Luna, Loirinha Bombril, entre tantas outras, que foram acolhidas com devoção pelos fãs. Mesmo o acidente com um ultraleve em 2001, que tirou a vida da esposa de Herbert, Lucy, tornando-o paraplégico, não o impediu de trabalhar. Ao contrário, a impressão que se tem é a de que a sinergia entre banda e público só aumentou de lá para cá. O Passo do Lui completa 35 anos agora em setembro. Eu estou com 38. E nunca canso de ouvi-lo. Ele me ajudou na minha formação. E até na minha compreensão do mundo: hoje eu o enxergo muito melhor. Com meus óculos.



terça-feira, 20 de agosto de 2019

Lançamento de Videoclipe - Luiza Lian (Mil Mulheres)

Lançado no ano passado, o álbum Azul Moderno da paulistana Luiza Lian foi o sexto melhor na nossa lista de 25 grandes registros nacionais de 2018, aqui no Picanha. E a obra, que mistura religiosidade e experimentalismo pop de forma delicada, etérea e sensorial segue rendendo bons materiais de divulgação, como é o caso do videoclipe para a canção Mil Mulheres, disponibilizado na última semana. Dirigido pela dupla DIABA (Camila Maluhy e Otávio Tavares) o filme retrata, de acordo com o material de divulgação, "uma relação afetiva que oscila entre os sentimentos de amor e de distância, onde os protagonistas fundem seus corpos e se separam na geografia da cama". É uma das melhores canções do disco e que ganha um clipe a altura. Bora clicar e conferir.

Picanha.doc - Privacidade Hackeada (The Great Hack)

De: Jehane Noujalm e Karim Amer. Documentário, EUA, 2019, 114 minutos.

Já deve ter acontecido muitas vezes com você, leitor do Picanha: você entra em um site qualquer, atrás de algum produto. Digamos, um tênis novo. Zapeia, olha os modelos, navega por algum tempo. Abandona a ideia. Resolve entrar um pouco nas suas redes sociais. Lá está um banner com os mesmos tipos de tênis que você estava buscando. Com promoções de 20, 30% de desconto. Atrativo. Colorido. A propaganda se repete. Por dias. Surge em posts patrocinados. Reaparece em outros aparelhos que estejam conectados a mesma rede. Incansavelmente aquilo martela na sua mente. E martela. E martela. E martela. De uma forma que talvez você se sinta influenciado. Ou não. Digamos que essa seja uma tentativa "prosaica" de comercialização de produtos, por parte de alguma empresa, a partir de informações que você mesmo forneceu. Mas e se, ao invés de um tênis, um pacote de viagem ou um perfume, alguém tentasse lhe vender "ideias"? E o pior, tendo acesso a dados e informações sobre você, que você NÃO AUTORIZOU conceder?

Bom, essa é a ideia por trás do imperdível documentário Privacidade Hackeada (The Great Hack), que mostra como grandes empresas de tecnologia podem estar por trás de resultados ocorridos nas últimas eleições americanas ou mesmo na campanha leave.com, que levou os britânicos a optarem pelo "sim", no plebiscito sobre o Brexit. Digamos que é algo que a gente já desconfiava - e se você é minimamente ligado, certamente já ouviu falar da gigante Cambridge Analytica que, aliada ao Facebook, obteve dados de mais de 87 milhões de usuários da rede social, com o objetivo de traçar perfis psicológicos, que poderiam (re)definir a personalidade de eleitores americanos - especialmente os indecisos, no caso das eleições que tornaram Trump presidente. Sabe a vizinha da tia Célia, aquela que não sabia bem em quem votar no ano passado, mas ficou horrorizada quando viu o Haddad com uma mamadeira de piroca na mão? Era esse eleitor - os chamados "persuasíveis" - que eles buscaram em uma complexa rede de análise de dados e, consequentemente, de estímulos.


Nesse ponto, você leitor poderia argumentar: "é, mas mesmo com obtenção de dados e de informações sobre a personalidade das pessoas, quem ainda toma a decisão é o eleitor". Sim, é. Mas acontece que, como parte da campanha, houve um massivo processo difamatório de Hillary Clinton, com utilização de muitas fake news que lhe transformavam em uma espécie de vilão comunista, que deveria era estar atrás das grades. Fazer a América grande de novo também era "fuzilar" os adversários políticos. Aniquilá-los. Aliás, qualquer semelhança com o que ocorreu no Brasil não é mera coincidência: a ampla campanha caluniosa que transformaria o Brasil em uma Venezuela caso Haddad ganhasse, com médicos cubanos tirando o jaleco para iniciar uma guerrilha, vendendo kits gays nas escolas, enquanto alunos pelados preparavam coquetéis molotov também pode ter a ver com tudo isso. Aliás, o filme aborda a questão "Brasil" de passagem, nos deixando com a pulga atrás da orelha.

Por trás dos investimentos feitos nas campanhas das eleições americanas eu que acarretaram o Brexit - e outras ações em países como Itália, Nigéria, Quênia, Gana e Argentina - um grupo de milionários com interesses próprios e um investimento de US$ 1 milhão por dia em propagandas de todos os tipos, cores e tamanhos, atacando adversários não apenas no Face, mas em outras redes como Instagram, WhatsApp e Youtube. Aliás, pasme: durante a campanha favorável a Trump foram mais de 5,9 milhões de anúncios - contra apenas 66 mil acenando a Hillary. Como forma de juntar as peças desse quebra-cabeças, os diretores Jehane Noujalm (do premiado The Square) e Karim Amer ouvem jornalistas, especialistas e ex-funcionários da CA, em especial Brittany Kaiser, que tem papel fundamental na condução do processo erguido pelo professor David Caroll, que pretende obter na justiça os seus dados de volta (é o ponto de partida da obra).



É um filme absurdamente bem construído e editado, com direito a efeitos especiais criativos, que nos deixa ligados o tempo inteiro e que nos permite refletir sobre como a tecnologia, uma ferramenta que surge para nos aproximar, nos conectar, pode estar sendo utilizada não apenas para nos afastar, mas para disseminar sentimentos como ódio, preconceito racial e xenofobia. E o pior, sem que eu e a vizinha da sua tia Célia saibamos. O que é muito grave! Ser bombardeado por promoções de tênis nas redes sociais quando você visita um site, interessado em uma compra, já é algo bizarro. Que porra é essa que esse algoritmo faz? Mas e ser bombardeado por ideias que alienam, que espalham notícias falsas, que promovem a intolerância? Não parece uma guerra fácil de "vencer". Os bilionários continuam existindo e, cada vez mais, interessados em um modelo de mundo que atenda os seus anseios. Resta a nós, aqui do outro lado, reivindicar os nossos dados como um direito só nosso. Ou, no mínimo, averiguar quando recebemos uma foto de um candidato a presidente com uma mamadeira de pênis na mão, antes de reenviá-la pelas redes.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Cine Baú - Kes (Kes)

De: Ken Loach. Com David Bradley, Colin Welland, Lynne Perrie e Freddie Fletcher. Drama, Irlanda do Norte / Grã-Bretanha, 1969, 110 minutos.

O cinema de forte cunho político, com ampla discussão de temas sociais - uma das marcas da filmografia do diretor Ken Loach -, talvez não fosse ainda tão presente quando ele lançou, há 50 anos, o comovente Kes (Kes). Ainda assim, as injustiças de um mundo nada acolhedor para aqueles que convivem com a vulnerabilidade, já podem ser percebidas na história do menino Casper (David Bradley), que encontra refúgio na "amizade" com um falcão, que ele resolve adestrar. Casper é pobre a ponto de ter de dividir uma pequena cama de solteiro com o Jud (Freddie Fletcher), seu irmão encrenqueiro. Com uma mãe não muito presente e uma escola punitivista, cheia de colegas violentos, praticantes de bullying, o jovem divide seu tempo entre o trabalho como entregador (sim, ele tem responsabilidades de adulto) e os momentos em que se encontra com a ave, com quem interage, treinando-a, dando comida e procurando alguma abstração da pesada realidade.

É uma obra bastante poética, bonita. Mas também dura, desoladora. Casper é provocado o tempo todo. Por ser pobre, por ser um aluno desligado, por ter uma mãe separada que, vejam só, resolveu ter um novo namorado. E quando encontra na vizinhança, em uma espécie de construção abandonada, o falcão de quem se aproxima curioso, tem de "brigar" para conseguir um livro de instruções que lhe ensine alguma coisa sobre como lidar com esse tipo de pássaro. E, nesse sentido, cada avanço obtido pelo menino é celebrado pelo espectador, que acompanha as bucólicas cenas em que a ave voa, em meio a natureza verdejante, mesmo em dias cinzentos, de frio calejante. A fotografia granulada, "setentista", contribui para que se estabeleça um caráter quase documental na película. Estamos ao lado desse menino que aparece praticamente o tempo todo em cena - entregando, diga-se, uma atuação apaixonante, que mistura inocência e astúcia em igual medida.


Ainda que seja um filme pesado do ponto de vista das injustiças sociais - estamos em uma Inglaterra industrial, com as camadas mais pobres encontrando trabalho em setores ligados à produção de carvão e outros minérios -, há espaço para uma leveza que é alcançada na descoberta juvenil do prazer proporcionado pelas pequenas coisas. Pelo reconhecimento das pequenas conquistas. A cena em que o jovem relata o processo de adestramento do falcão na sala de aula começa como uma pequena provocação até avançar para um tratado apaixonado sobre um hobby valioso. Só que Casper não sabe o que é um hobby - como podemos perceber na sequência em que ele, distraído, vai a uma entrevista de emprego. Ele está interessado apenas no falcão e na sua interação com ele. Um livro e um pássaro. O aprendizado num microcosmo, que acaba sendo muito maior do que na escola que não lhe acolhe ou na família distante.

Aliás na tentativa de mostrar um educador excessivamente exigente, Loach entrega uma cena absurdamente hilária: a de um professor (Brian Glover) que joga futebol com os alunos, mas não sabe perder. A sequência é tão divertida quanto patética, com o homem - na faixa de seus trinta e muitos anos - gritando com as crianças, correndo atrás delas aos berros, repetindo o pênalti que foi defendido pelo goleiro, instruindo de forma alvoroçada. Mas esse razoável alívio cômico - ainda que bem-vindo -, é só uma pequena ponta, quando percebemos que a realidade dura de Casper retorna de forma cruel para a sua vida, no último ato. Na metáfora da ave que nunca voou para longe, selando o seu destino, fica a reflexão para o próprio menino: em um mundo de poucas oportunidades para as famílias pobres, há que se aproveitar qualquer brecha que surja para um voo mais alto.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Cine Baú - Pacto Sinistro (Strangers On a Train)

De: Alfred Hitchcock. Com Robert Walker, Farley Granger, Kasey Rogers e Ruth Roman. Suspense, EUA, 1951, 101 minutos.

É provável que Pacto Sinistro (Strangers On a Train) tenha sido o responsável por fazer as mães do mundo recomendarem a seus filhos não "conversar com estranhos". Afinal de contas, é de um diálogo fortuito dentro de um trem, entre dois desconhecidos, que se desenrola um dos mais sufocantes filmes de Alfred Hitchcock. Baseada em livro da escrito Patricia Highsmith, a trama tem início quando o tenista Guy Haines (Farley Granger) é abordado por um certo Bruno Anthony (Robert Walker, em caracterização inesquecível), em meio a uma viagem de trem. Bruno está familiarizado com a crise que envolve a vida privada de Guy, que pretende se divorciar de Miriam (Kasey Rogers), com quem mantém um relacionamento infeliz. Nos tabloides, ele já foi fotografado com Anne (Ruth Roman), filha de um proeminente senador local. Bom, a vida pessoal de Guy é um desastre, mas a de Bruno não é diferente: é atormentado por um pai opressor e por uma mãe omissa.

Na sequência da conversa, Bruno, em tom afável, sugere o que seria o crime perfeito: uma troca de assassinatos em que ele daria cabo da vida de Miriam, ao passo que Guy mataria o seu pai. Sem nenhuma conexão entre si, ambos jamais seriam suspeitos do delito cometido um pelo outro. Apesar do tom incisivo e galante de Bruno, Guy não dá bola para os seus devaneios. Leva na flauta - aquela flauta que nos faz ignorar os "malucos do trem", que vagam por aí. Só que, inesperadamente, Bruno leva a sério a conversa, mata Miriam após uma perseguição sórdida em um parque de diversões, e passa a perseguir Guy com a intenção de fazer com que ele cumpra a sua parte do acordo. E, como se não bastasse tudo isso, Guy passa a ter de conviver com investigadores de polícia colados nele - afinal de contas, ele é um dos principais suspeitos do assassinato de sua ex-mulher (especialmente após uma discussão em que esta lhe nega o pedido de divórcio, pouco antes de morrer).


Será desse jogo de gato e rato entre esses dois homens - com a polícia perdida no meio - que Hitchcock extrairá a beleza dessa película, que aposta no suspense psicológico. Aliás, como quase sempre ele fazia, estamos diante do homem comum, com suas angústias, fraquezas e aspirações. Tão vilão quanto Bruno, Guy, um sujeito machista e adúltero assiste as consequências de suas atitudes tomarem inesperados caminhos. E o Mestre do Suspense parece se divertir com isso, atormentando o protagonista a cada aparição macabra de Bruno, que pode surpreender Bruno em meio a uma penumbra no meio da rua ou no topo de uma escadaria, em uma cena de arrepiar. A fixação doentia de Bruno - que, claramente, tem problemas psicológicos - é tanta que, em uma das melhores (e mais tenebrosas) sequências uma plateia assiste animadamente um jogo de tênis, enquanto o sujeito olha fixamente para Guy - e o movimento de câmera realizado por Hitchcock nessa cena, é não menos do que magistral.

Levando o conceito de perseguição até as últimas consequências, o diretor ainda nos brinda com uma série de imagens inesquecíveis. Do assassinato "visto" pela lente dos óculos da principal vítima, passando pela "cena do cachorro" dentro da casa de Bruno, até chegar a sequência final com um carrossel desgovernado em movimento enquanto Bruno e Guy brigam, não são poucos os momentos em que nos vemos arrebatados, tensos, apreensivos. Com uma trilha sonora capaz de tornar até mesmo as notas circenses da música ambiente de um parque de diversões em algo sombrio, o filme ainda passa de raspão pela temática dos pais opressores que gestam filhos com severos problemas psicológicos - e se há um pecado na obra, é o fato de este aspecto da personalidade de Bruno, bem como suas motivações criminosas, não ter sido ainda melhor trabalhado. Ele é o vilão principal, e apenas isso. Lançado no mesmo ano de Um Lugar ao Sol, Sinfonia em Paris e Uma Rua Chamada Pecado, Pacto Sinistro foi, como de praxe, completamente esnobado pela Academia, no Oscar do ano seguinte. Nada que apagasse o brilho de mais essa inesquecível produção.

Novidades em Streaming - Sleater-Kinney (Disco)

Se o Sleater-Kinney já discutia com força e propriedade as questões de gênero, o machismo dominante e o papel da mulher na sociedade nos anos 90 - quando gestou álbuns clássicos como Call The Doctor (1996) e Dig Me Out (1997) -, nos tempos atuais, de tantos retrocessos, a banda de Carrie Brownstein e companhia permanece mais do que relevante. Do retorno em 2015 com o indispensável No Cities To Love até o lançamento deste The Center Won't Hold, apenas uma pequena mudança: a saída da baterista Janet Weiss do grupo, por motivos de "diferenças artísticas". Só o que não mudou foi o peso na sonoridade furiosa do trio, sempre visceral e que, amparado por duas guitarras e uma bateria, fazem a paisagem sonora perfeita para as letras divertidas, confessionais e eventualmente sacanas sobre temas cotidianos os mais variados. Da popice quase agridoce de e Can I Go On ao peso ruidoso de RUINS, o trabalho, tão acessível quanto o anterior, é pura energia e deve figurar em todas as listas de melhores do final do ano. Bora clicar e ouvir?



quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Cinema - Vermelho Sol (Rojo)

De: Benjamín Naishtat. Com Dario Grandinetti, Diego Cremonesi e Andreia Frigerio. Suspense / Drama, Argentina / Brasil / Holanda França / Alemanha, 2019, 106 minutos.

Existe uma frase sobre os "fascistas do futuro" que José Saramago NUNCA disse, mas que é atribuída a ele: "os fascistas do futuro não vão ter o estereótipo de Hitler e Mussolini. Não vão ter aquele jeito de militar durão. Vão ser homens falando tudo aquilo que a maioria quer ouvir. Sobre bondade, família, bons costumes, religião e ética". De certa forma, aquilo que assistimos em Vermelho Sol (Rojo) dialoga com essa sentença. Em uma das primeiras cenas do filme, dois homens discutem por um motivo banal em um restaurante lotado: enquanto um deles aguarda a esposa para poder jantar o outro, de pé, reclama de que poderia estar ocupando a mesma mesa para fazer a sua refeição de forma rápida. O primeiro dá uma lição de moral no segundo, atribuindo a este uma suposta vida infeliz, vazia, sem sentido, ao passo que o segundo reage com violência sendo retirado pela polícia enquanto chama a plateia paralisada de "nazista".

É uma sequência tensa, bem filmada, com inteligentes ângulos de câmera que nos permitem assistir os homens se observando, discutindo, se provocando. Há uma tensão no ar, que a gente vai perceber mais tarde que é fruto de algo maior, um tipo mal-estar político, institucional, de uma Argentina calejada por diversos Golpes de Estado sequenciais. A trama se passa em 1975, com o País sob intervenção - no ano seguinte, Maria Estela Perón seria deposta, instaurando uma ditadura permanente, que ficou conhecida na época como "Processo de Reorganização Nacional", com o Governo integrado por uma Junta Militar. Mas o filme do diretor Benjamín Naishtat não escancara as feridas de um estado de exceção na nossa cara. Opta pela sutileza, por uma narrativa que se desenrola sem pressa, abusando de metáforas. Enfim, acredita na inteligência do espectador e em sua capacidade de "ligar os pontos".


O episódio do restaurante resultará em uma inesperada tragédia, com o advogado Cláudio (Dario Grandinetti) tendo de lidar com ela. Representante das famílias de bem argentinas, Cláudio frequenta festas, joga tênis, vai a bons restaurantes, tem boa reputação em seu meio, respeita as autoridades. Mas possui um terrível segredo, que parece pronto para vir à tona a qualquer momento. E é colando uma série de imagens aparentemente desconexas na outra, que o diretor transforma essa agradável experiência cinematográfica em uma obra atmosférica, de sensações. Uma colcha de retalhos, que resume uma Argentina entorpecida por uma política de agressões que se impõe não de forma ostensiva, mas nas entrelinhas. Assim como a presença de "caubóis americanos" que se apresentarão em um espetáculo na cidade, não são apenas mero entretenimento e, sim, uma forma de atestar uma política externa alinhada com os Estados Unidos, que afasta o comunismo inexistente, que livra o País de um mal que não se sabe de onde vem. Mas que é tirânico, opressivo.

E quando esse mal se instala, o homem comum, o "fascista do futuro", se sente autorizado a agir na manutenção de seus interesses, pensando em seu bem-estar acima de tudo - de preferência em nome de Deus. Nesse sentido, cenas como aquela em que a família discute as melhores formas de se matar uma mosca ou aquela que mostra um eclipse do sol que torna tudo vermelho, sangrento, representam as figuras de linguagem que resumem um Estado falido, do cidadão que está contra o cidadão e, consequentemente, do ódio, do preconceito e da intolerância. Quando Cláudio se torna um corrupto em meio a uma transação imobiliária escusa ou assiste cair por terra, em meio ao desespero, todo o seu discurso de homem superior, branco e de uma classe média afável do começo do filme, constatamos o incômodo que se estabelece pela violência retida, normalizada e pronta para explodir. E não é preciso um banho de sangue visual para que tenhamos clareza sobre isso. O vermelho do ódio está em toda a parte, onipresente. No deserto, no restaurante. Basta um gatilho.

 Nota: 9,0

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Curta Um Curta - Guida

Absurdamente delicado, Guida é aquele tipo de curta-metragem que te faz percorrer cada uma de suas curvas com um sorriso de orelha a orelha. O traço é simples - e a história também - mas a quantidade de camadas existentes nessa pequena obra-prima da diretora Rosana Urbes é impressionante. Não é por acaso que, mesmo tendo sido lançado em 2014, o trabalho foi incluído entre os 100 Melhores Curta Metragens da história, em votação feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Na história, a Guida do título é uma senhora de meia idade, com uma rotina relativamente monótona como arquivista do Fórum. Em um belo dia, a sua vida é modificada quando ela encontra um anúncio para a participação em aulas de artes como modelo viva. Com uma mensagem sutil, mas otimista, a obra joga luz sobre o "ser feminino", com uma trilha sonora vibrante e uma paleta que vai ganhando mais cores conforme a história avança. Um deleite!

Tesouros Cinéfilos - Parasita (Gisaengchung)

De: Boon Joon-ho. Com Song Kang-ho, Choi Woo-shik, Jang Hyejin e Lee Sun Gyun. Comédia dramática / Suspense, Coréia do Sul, 2019, 133 minutos.

Está lá no dicionário o sentido do substantivo/adjetivo "parasita": diz-se de organismo que vive de e em outro organismo, dele obtendo alimento e não raro causando-lhe dano. No caso do filme Parasita (Gisaengchung), mais novo trabalho do diretor Bong Joon-ho (Okja, Expresso do Amanhã), há uma espécie de inversão da lógica na aplicação do termo, um tipo de desconstrução que, satisfatoriamente, perceberemos em seu desenrolar. Tudo começa em um bairro do subúrbio da Coréia do Sul, onde a família de Ki-taek (Song Kang-ho) - sua esposa e seus dois filhos - mora em um porão, em condições bastante precárias. Em meio a trabalhos temporários (e feitos com desleixo) para uma rede de pizzarias, o desemprego galopante fará com que não tenham dinheiro para nada, nem para a internet e nem para pagar a dedetização do ambiente sujo e cheio de baratas - sendo tanto o wifi quanto a fumegação, obtidos de forma divertidamente "alternativa".

A situação muda quando o jovem Ki-woo (Choi Woo-shik) é convidado por um amigo para dar aula particular de inglês à uma garota de família rica. O acesso à casa dos Park - os burgueses em questão - representará uma ruptura: deslumbrado com a vida de luxo, Ki-woo bolará um plano para que toda a família se "infiltre" aos poucos na  mansão e passe a trabalhar para eles. A irmã se tornará uma "terapeuta artística" do irmão mais novo da menina - mesmo sem ter nenhum conhecimento sobre pintura. Ki-taek será o motorista da família - após o antigo empregado ser demitido por motivos escusos. Já a esposa de Ki-taek, Choong-sook (Jang Hyejin) virará a governanta, em meio a melhor das tramoias: uma encenação que fará os patrões acreditarem que a antiga criada estava com tuberculose - com direito a uma divertida sequência envolvendo lenços de papel ensanguentados!


Integrados à família, os pobres procurarão manter o seu segredo, enquanto trabalham. Mas até quando isso vai ser possível? É desse impasse que Joon-ho extrai um tipo de suspense quase involuntário - o de que o estratagema possa ser descoberto a qualquer momento. O retorno da antiga governanta em meio a uma noite chuvosa, representará uma vertiginosa espiral em que segredos virão à tona - e mais do que isso não vale a pena contar para não estragar a experiência. O elenco como um todo esbanja carisma e, no fim das contas, do ponto de vista da vida "privada" não há mocinhos e vilões: ao contrário, os patrões se apresentam como figuras amáveis e compreensíveis, ao passo que a família de trambiqueiros se esforça para sobreviver em meio a uma Coréia do Sul de contrastes. Aliás, está aí o grande vilão: um Estado em que as diferenças sociais fazem com que pessoas necessitadas adotem atitudes extremas para poder ter dinheiro, comer, sonhar.

Os parasitas em questão podem até parecer as camadas humildes - sempre dispostas a ganhar alguma coisa às custas dos mais ricos. Mas seria isso mesmo? Os parasitas não poderiam ser os burgueses, que vivem do bom e do melhor, explorando a força de trabalho de pessoas humildes que sofrem, lutam para colocar comida na mesa? Ou ainda um Estado que em nada contribui para que o absurdo da má distribuição de renda possa ser revertido? Com grandes sequências, como aquela em que uma chuva torrencial evidenciará essas incongruências, Joon-ho transforma Parasita em uma espécie de tratado sobre a luta de classes e sobre as diferenças existentes entre cada um dos extratos de nossa sociedade. Bebendo na fonte de diretores como os Irmãos Coen, o realizador imprime a sua personalidade, apostando em um tipo de humor que nos faz rir do absurdo, sem deixar de nos comover. No contraste da luz aconchegante e amadeirada da mansão, com o concreto duro e pálido do porão está, no fim das contas, a vida real. E a vida real, a gente sabe: pode ser também absurda.


segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Picanha em Série - Years and Years

De: Russel T. Davies. Com Emma Thompson Rory Kinnear, Jessica Hynes, Anne Reid e Russel Tovey. Drama / Ficção Científica, Grã Bretanha e Irlanda do Norte, 2019, 350 minutos.

É simplesmente impossível assistir a Years and Years e não pensar naquilo que estamos vivendo na atualidade, no Brasil, enquanto experiência democrática, política, social. De que maneira estamos rompendo com os limites que separam as esferas pública e privada para nos transformar em figuras individualistas, niilistas e intolerantes. Se para haver mal-estar na civilização é preciso haver civilização - como afirma o professor de psicanálise da USP, Rinaldo Voltolini -, a impressão que temos é a de que estamos nos esforçando ao máximo para romper com qualquer código moral, ético. Estamos doentes. Depressivos. Ansiosos. Sem forças para lutar contra um mal onipresente, que se infiltra em nossas vidas, que nos ataca. Que nos torna pessoas mesquinhas, infelizes. Trabalhamos em empregos cada vez mais precários. Não nos aposentamos. Estamos sem saúde, sem educação, sem perspectivas. Acreditando em algum tipo de salvação mágica que, sabe-se lá de onde pode vir, enquanto destruímos a nossa sanidade e a nossa capacidade de convivência.

Na primeira cena da série - coprodução entre BBC e HBO -, assistimos a uma política assombrada com a polarização, com o ódio ao diferente. Com a falta de diálogo. Verborrágica, se apresenta como alguém autêntica, que não tem papas na língua, que fala a voz do povo e que parece disposta a, de forma iconoclasta, romper o status quo. Quebrando a lógica de existência das instituições, cativa pelo espírito anárquico, pela política feita no "empurrão", na marra, as turras. Ninguém parece dar muita bola para ela, que discursa em meio a outras figuras políticas, no horário nobre inglês. Ela está e estará lá. Onipresente. Determinando o futuro daqueles que lhe assistem, em meio a letargia dos dias, em meio as preocupações mesquinhas - sejam elas as festas que estão por vir ou alguma nova tecnologia que permite facilitar as comunicações. A política em questão é uma certa Vivienne Rook (encarnada com paixão desmedida por Emma Thompson).


A família Lyons ainda não sabe, mas figuras políticas como Vivienne - e tantas outras ao redor do mundo - determinarão praticamente TUDO que ocorrerá em suas vidas pelos próximos 15 anos, a partir de 2019. Enquanto a série parece uma espécie de This Is Us, com uma avó e quatro netos, mais cônjuges (e bisnetos) sobrevivendo, tendo pequenos momentos de alegria familiar, se frustrando, ficando ansiosas ou brigando, o mundo se arrastará para um cenário de caos, de guerras, de falta de diálogo e de avanço tecnológico. De desemprego galopante, de crise imobiliária, de quebra de bancos e de precarização da vida. Se por um lado, alimentos sintéticos representarão alternativas para que recursos naturais não se esgotem, países conviverão com crises diplomáticas, com conservadorismo, com xenofobia, com Brexit. Enquanto Trump se reelege e Angela Merkel morre (sim, a série projeta isso para logo ali adiante), os anos vão passando. E passando e passando. Com o mundo ficando pior. Mais difícil. Mais separado. Mais injusto.

De forma magistral, a jornalista Eliane Brum escreveu recentemente um artigo chamado Doente de Brasil, em que atribuía o mal-estar de nossos dias a uma força que avança e nos enclausura, nos deixando psicologicamente letárgicos e politicamente paralisados. Em meio aos absurdos proferidos (e cometidos) pelo nosso presidente, às mentiras inacreditáveis, uma descrença generalizada na força das instituições e uma censura das atitudes que já vem na "fonte", antes de acontecer. Que nos abate. Nos enfraquece. E, assim aceitamos as reformas Trabalhista, da Previdência, o desemprego, o aumento de preços e todo o descalabro, na esperança por dias melhores que nunca chegam. Anos e anos em que nós mesmos tratamos de destruir aquele mínimo de democracia que talvez tenhamos gestado no passado. Years and Years de forma muitíssimo resumida é sobre isso. É sobre como nós mesmos nos massacramos com as nossas atitudes, sem nem perceber. Seja votando em uma Vivenne Rook, seja aceitando aquilo que nos é imposto permanecendo calado, com medo.


Vale destacar ainda que poucas série oferecerão tantos arcos dramáticos interessantes, com tão poucos episódios - são apenas seis. Enquanto algumas obras da Netflix são a mais pura encheção de linguiça, a atração de Russel T. Davies preenche cada uma de suas curvas com sequências intensas que nos fazem refletir, se emocionar e se embasbacar. A inserção da tecnologia - que a aproxima de uma Black Mirror beeem melhorada - nos faz perceber o quanto estamos próximos e distantes ao mesmo tempo. Há o choque geracional, mas há o cultural - como é o caso daquele que não permite a um imigrante atravessar uma fronteira. E, enquanto na esfera privada cada um de seus indivíduos se esforça em perceber quem são os culpados - irmão, pai, filho, avó -, ninguém percebe que se está diante de um mal maior. Um mal que desestabiliza a civilização. Que lhe leva ao limite, lhe suga e que lhe faz ter atitudes extremas que, no fim das contas, podem até simbolizar um respiro. É a melhor série de 2019. Simplesmente isso.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Novidades em Streaming - Bon Iver (Disco)

Arranjos delicados que se mesclam a ambientações eletrônicas e a um vocal que parece "grudado" às melodias invernais, ainda que aconchegantes. Desde sempre o trabalho de Justin Vernon como Bon Iver foi assim, ainda que a aproximação com os sintetizadores tenha se ampliado na experiência um tanto mais hermética de seu disco anterior - o ótimo 22, A Million, o nosso sexto colocado entre os melhores daquele ano. Em i,i, mais recente registro, o padrão se mantém, com cada composição sendo apresentada como um fragmento levemente caótico, que retira um pouco da melancolia doce dos primeiros trabalhos, para apostar em um folk mais desordenado. Ainda assim, em uma primeira impressão, o que nos parece é que Vernon "limpou" as arestas daquilo que foi testado no trabalho anterior, abrindo espaço para composições um pouco mais leves, com direito até mesmo a refrão - como comprova a graciosa Hey, Ma. Bora clicar e ouvir?



quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Disco da Semana - Karina Buhr (Desmanche)

Não sei como acontece para vocês, mas para este jornalista que vos tecla muitas das manifestações artísticas e culturais da atualidade funcionam como uma espécie de refúgio onde podemos encontrar disposição para a luta e para resistir a tudo que está aí. São muitos os absurdos e a vontade de gritar por vezes parece abafada, como se fôssemos invadidos por uma espécie de letargia propagada pelo entorno, pela falta de força, pela descrença generalizada nas instituições ou naqueles que nos governam. Bom, e aí restam a música, os livros, os filmes, as séries. Aquilo que, por vezes, parece colocar um pouco a nossa cabeça no lugar para que percebamos que não estamos sozinhos nesse mundo de trevas. E que pode haver algum fiapo de esperança em meio ao niilismo, a angústia e a desolação. Bom, o trabalho da artista Karina Buhr, desde sempre nos auxilia nesse processo - e com o recém-lançado Desmanche, não é diferente.

Essa percepção da artista como uma voz que ecoa o grito dos oprimidos em um contexto de ódio e intolerância não é algo observado apenas nas letras, mas também nas melodias eventualmente selvagens, caóticas, cruas. Como se na balbúrdia sonora pudesse estar representada a angústia de quem não se cala. Como se em cada guitarra mais nervosa, ou numa percussão mais animalesca, tribal, Karina surgisse como uma espécie de porta-voz que te resgata, que te reergue. Sim, a gente sabe que ouve música para se divertir, para descontrair. Mas a cantora parece saber que em tempos como os que vivemos - que legitimam, inacreditavelmente, o machismo e a homofobia pelo voto -, não dá pra ficar só no "tchurururu, como é lindo o seu amor". Ainda em 2017, quando do lançamento do furioso Selvática, seu trabalho anterior, Karina disse a revista Noize que "tudo o que faz na vida é no sentido de viver em paz e isso inclui o feminismo".


Daquela vez a artista apareceu sem camisa na capa do álbum e, bom, vocês podem imaginar a comoção que foi - com direito ao Facebook censurando a imagem que ilustrava o trabalho. "É ridículo ninguém poder ver peito de mulher sem ser num contexto de objetificação machista", comentou ela na mesma entrevista para a Noize. E se de lá para cá, com a eleição de Bolsonaro e com a desculpa da "polarização política" a opressão às mulheres só aumentou, nada mais natural do que a artista voltar com um disco que atualiza os temas que lhe são caros. E, assim, Desmanche, surge como um álbum de versos políticos, urgentes e de rápida compreensão. Basta ouvirmos a artista repetir como num mantra que o "Exército tá matador" na inaugural Sangue Frio, que já compreenderemos o seu propósito.

Alternando momentos mais "poéticos", caso de Amora, com outros de maior intensidade, como Temperos Destruidores, a compositora constrói um painel que resume a atualidade - com o sujeito trafegando no limite, amando, lutando, persistindo, trabalhando. Na grudenta Lama, uma batida regionalista, que lembra o manguebeat de Chico Science, o eu lírico suplica: De ação em ação vive a besta em cada um / Sem raiva padece nenhum. O expediente se repete em Filme de Terror que, em meio a citações a Alfred Hitchcock e a melancolia generalizada lembra: "Ânimo, valentia, coragem". Eventualmente herméticas, as letras se apresentam como pequenos fragmentos recheados por figuras de linguagem, metáforas, paródias. O óbvio não sendo o óbvio em meio ao caos estabelecido. Mas em meio à tanta secura, ainda há espaço para a esperança, como comprova a adocicada Peixes Tranquilos, quase ao final do registro. Uma obra forte, empoderada. E necessária.

Nota: 8,5

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Tesouros Cinéfilos - 3 Faces (Se Rokh)

De: Jafar Panahi. Com Jafar Panahi, Behnaz Jafari e Marziyeh Rezaei. Drama, Irã, 2018, 100 minutos.

Tá aí uma profissão que não deve ser nada fácil: ser diretor de cinema no Irã. E Jafar Panahi que o diga. Proibido de filmar desde 2010 em seu País de origem por, supostamente, utilizar a sua obra para criticar o Governo, o diretor tem feito verdadeiros malabarismos para seguir trabalhando. Em prisão domiciliar, o realizador também está impedido de deixar o Irã pelos próximos 20 anos. E o que ele fez diante da censura? Filmes. Como? Da maneira que deu, misturando metalinguagem e documentário, dramatizando não apenas a sua situação - que representa a de muitos artistas que são vigiados de perto pelos aiatolás -, mas também a da atrasada sociedade iraniana, machista, patriarcal, excessivamente conservadora e provinciana. E esse 3 Faces (Se Rokh) pode ser considerado a sua obra-prima, desde que a sua clausura, e a produção clandestina (e ainda mais provocativa), começou.

Nele, Panahi junta todos os elementos que têm feito o seu cinema recente: a economia, a mensagem que sai pelas frestas ou pelo não dito. As poucas palavras, mas que dizem muito. A imagem que surge avassaladora, poderosa, com grande investimento em planos-sequência, amplamente naturalistas. É o melhor "não cinema" que a gente pode assistir. Se Isso Não É Um Filme (2011) era o retrato do dia a dia de um diretor em cárcere privado (mas cheio de ideias) e Táxi Teerã (2013) era uma saborosa (e curiosa) experiência cinematográfica em que o diretor encarnava um taxista que recebia passageiros para uma discussão geral sobre as dificuldades socioculturais do País, 3 Faces é um misto de suspense com drama que dá conta do talento de um realizador que faz mais com menos. E que nem por isso deixar de enfiar o dedo na ferida, quebrando regras estabelecidas e usando a sua própria existência para a crítica ao status quo, à religiosidade beligerante e aos costumes ultrapassados.



A trama começa com uma filmagem amadora de uma jovem apaixonada por cinema, que pede socorro à famosa atriz Behnaz Jafari (interpretando a ela mesma) para fugir de sua família, que não aceita o estilo de vida que ela deseja levar - ser artista e não cumprir com o papel destinado às mulheres de seu vilarejo (casar, ter família, filhos, etc), no norte do Irã, seria motivo de desonra. O vídeo termina com um aparente suicídio: há uma corda, um tronco e um rochedo que sugere um lugar mais alto, ermo, além de uma filmagem confusa. Comovida com o material recebido, Jafari pede ajuda ao amigo Panahi (também ele mesmo) para descobrir o que de fato aconteceu. Assim, migram para o Norte do Irã, em busca de informações que possam levá-los ao vilarejo de onde partiu o material, tentando descobrir ainda se ele é real ou fruto de algum tipo de montagem ou manipulação.

No caminho, encontrarão diversos moradores das regiões remotas, o que escancarará uma série de contrastes. E de contradições também. Se por um lado, o irmão da jovem desaparecida não consegue suportar a ideia de ver a irmã enveredando para o lado das artes - provavelmente coisa de "vagabundo" que não tem Deus no coração -, por outro chega a comover o tratamento dado à Jafari, quando os locais percebem se tratar da atriz que está nas novelas em que consomem. Há respeito e admiração, mas há também mesquinharia, na ideia de que Jafari e Panahi poderiam resolver os problemas estruturais daquele local, ou que tivessem de ter um motivo maior para estar lá, que não apenas o de (tentar) salvar uma vida. É a admiração, seguida da chantagem, como na impagável sequência em que um morador local envia uma carta com um material bastante "peculiar" para que Jafari entregue a um outro ator - este, um sujeito que interpreta figuras duronas em filmes de ação.



Ainda que a película não demore em esclarecer o ocorrido, é preciso que se diga que ela é muito mais um eco de resistência do papel da mulher em uma sociedade amplamente machista. Se Jafari representa a realização alcançada, a jovem desaparecida é a luta contra um sistema que oprime, que agride, que não prevê a liberdade de pensamento, de ações. No filme dentro do filme, há também uma homenagem ao cinema: seja na "obra" da jovem suicida (que deixa o final em aberto), seja na ligação da mão de Panahi, que não quer que ele faça filmes para não ter problemas com o Governo (ele diz que ele não está fazendo), seja no esforço do próprio diretor em fazer uma obra de arte com poucos recursos - e ver Jafari lhe provocando sobre a existência de um "próximo filme" é um deleite. Com boas metáforas - a do boi no meio da estrada é uma das melhores -, a obra venceu o prêmio de Melhor Roteiro no último Festival de Cannes. Panahi não estava lá - está proibido de sair do País, como já dissemos. Mas a sua voz segue ecoando pelo mundo. Para a alegria dos cinéfilos.

Na Espera - The New Pornographers (Disco)

Uma das bandas mais legais do planeta, o The New Pornographers, anunciou na última sexta-feira (02/08), a chegada de seu oitavo registro de estúdio. Intitulado In The Morse Code Of Brake Lights, o álbum será lançado no dia 27 de setembro, dando continuidade a série de ótimos discos que misturam power pop e música alternativa - caso de Twin Cinema, que já figurou aqui no nosso Lado B Classe A. O single Falling Down the Stairs Of Your Smile é um recorte em que se percebem poucas mudanças em relação ao material entregue anteriormente, estando lá o refrão grudento, a melodia ensolarada e o clima festivo típico do coletivo canadense.


Em entrevistas e nos materiais de divulgação, AC Newman, que também produz o álbum, explica que esse é um disco sobre amor, mas não na acepção clássica da palavra. "É mais um disco sobre como você lida com as ideias de amor ou de felicidade em um mundo como este de agora, cheio de eventos atuais estressantes", resumiu, indicando ainda que o registro busca refletir sobre felicidade em um relacionamento, "em um mundo tão feio". A própria gravadora do coletivo, a Collected Work, lançará o trabalho em parceria com a Concord e nós, aqui no Picanha, já estamos Na Espera!

In the Morse Code of Brake Lights:

01 You’ll Need a Backseat Driver
02 The Surprise Knock
03 Falling Down the Stairs of Your Smile
04 Colossus of Rhodes
05 Higher Beams
06 Dreamlike and on the Rush
07 You Won’t Need Those Where You’re Going
08 Need Some Giants
09 Opening Ceremony
10 One Kind of Solomon
11 Leather on the Seat





segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Novidades em DVD - Rocketman (Rocketman)

De: Dexter Fletcher. Com Taron Egerton, Jamie Bell, Bryce Dallas Howard e Richard Madden. Drama / Musical, EUA / Grã-Bretanha / Irlanda do Norte, 2019, 120 minutos.

Se você colocar no sistema de busca do Youtube as palavras "Elton John oven manual song" você vai encontrar um dos vídeos mais divertidos da história da internet. Nele, o ator Richard E. Grant intima o astro da música pop a criar, do nada, no meio de uma entrevista, uma nova música tendo como matéria-prima o manual de instruções de seu novo forno elétrico. Sim, o MANUAL DE INSTRUÇÕES de um FORNO ELÉTRICO. Bom, o resultado é algo simplesmente inacreditável - e eu sinceramente adoraria que este vídeo já existisse com legendas em português. A capacidade de improviso de Elton nessa situação, serve pra dar conta de seu talento. Um talento que gerou um sem fim de grandes discos de rock and roll e uma quantidade inacreditável de hits capazes de tornar os seus shows de cerca de três horas de duração quase insuficientes, no que diz respeito a ideia de contemplar tanta música boa.

O Elton que se vê nesse vídeo é um artista animado, leve, divertido. Aliás, como vem sendo há quase 30 anos, período em que o astro está "limpo" - ou livre da dependência de álcool e de drogas mais pesadas, como a cocaína. Em Rocketman, como não poderia deixar de ser em uma cinebiografia de uma estrela tão retumbante quanto Elton John (Taron Egerton), estamos diante da clássica história de ascensão e queda. E de ascensão novamente. E de persistência. E de enfrentamento de preconceitos, claro. Em uma época (os anos 60) em que se declarar gay era quase um "crime inafiançável", o astro surge para o mundo da música com suas canções sensíveis mas potentes, reflexivas mas radiofônicas. Os figurinos ousados, festivos, chamativos, surgiriam mais tarde como forma de referendar o seu estilo. Para desgosto de sua família - pai e mãe ausentes, pouco amorosos, distantes -, e até de alguns de seus pares, que pareciam não acreditar no potencial de cada uma das criações ao piano do astro.


Mas o mundo não é feito só de familiares abjetos e de produtores desconfiados. Pra cada um desses, surgia um Bernie Taupin (Jamie Bell) disposto a contribuir. A dar sentido a cada uma das melodias mágicas de Elton. E a obra se ocupa de nos mostrar como essa parceria conturbada, mas cheia de amor, rendeu tantos bons frutos. E a nos mostrar as idas e vindas no tempo, as inseguranças do começo da carreira, a necessidade de ser aceito em seu meio, as frustrações com o mercado e com as pessoas. E assim é o filme do diretor Dexter Fletcher: uma história de um jovem de infância dificil, um talento nato, tendo de superar dificuldades, chegando ao limite, dando com a cara na porta. E nos entregando tantas canções maravilhosas, que duas horas de película não são suficientes para contemplar as suas criações.

O filme, por exemplo, nem chega musicalmente nos anos 90, ainda que I Want Love seja uma das primeiras músicas mostradas. O foco maior é na produção dos anos 70 e 80, com canções como Crocodile Rock, Goodbye Yellow Brick Road, Honky Cat, Your Song, Tiny Dancer e, claro, Rocket Man, sendo apresentadas de forma desordenada, mas com força, com coreografias descoladas, apaixonadas, vivas. Saturday Night Alright For Fighting, por exemplo, ganha número com Elton ainda no começo de carreira, como que conquistando o impulso necessário para levá-lo a um outro patamar. E, sinceramente, eu estou aqui escrevendo essa resenha cheia de palavras e de "análise detalhada", mas o filme é pura catarse. Elevação - assim como fazia Elton, se elevando ao piano como uma espécie de emanação mágica, mística, espiritual que pula e salta e frente a uma platéia despudorada, mas que também aconchega, afaga, acolhe.


Aliás, não é fácil escrever qualquer material sobre o teu artista preferido. Impossível não ser invadido pela paixão inflamada, ainda mais diante de uma obra com tantos predicados. Com Taron Egerton se empenhando em uma entrega comovente, assim como o restante do elenco. Com uma recriação de época fidedigna e com um tratamento sem endeusamento do biografado: se a primeira hora de filme é pura magia, música e dança, a segunda metade é a do baque, da porrada, da descida ladeira abaixo. Afinal, Elton John, um artista tão talentoso, também é gente como a gente: com dores, fraquezas, incertezas e anseios. E talvez por humanizar tanto uma figura que já seja tão humana, que esse filme acerta em cheio o coração de fãs e dos não fãs. É impossível não tamborilar os dedos. Não sorrir. E não se emocionar. Elton é puro carinho em cada apresentação que faz. Com os fãs. Com quem gosta dele. Ele faz uma música sobre um manual de instruções de um forno, se precisar. Porque ele já desceu até o fundo do poço e voltou. E é isso o que importa.

Nota: 9,5

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Cinema - Rafiki (Rafiki)

De: Wanuri Kahiu. Com Samantha Mugatsia, Sheyla Munyiva e Muthoni Gathecha. Drama, Quênia / África do Sul / Alemanha / França / Líbano / Noruega e Holanda, 2019, 82 minutos.

Só o fato de um filme do Quênia ter a ousadia de tratar da temática homossexual já seria o suficiente para que Rafiki (Rafiki) merecesse todo o crédito do mundo. Foi notícia alguns meses atrás o fato de que o Tribunal de Justiça do País africano decidiu por seguir considerando crime a união entre pessoas do mesmo sexo, podendo os "infratores" serem punidos com até 14 anos de prisão. Sim, enquanto em alguns países o mundo parece andar pra trás (alguém aí falou em Brasil?), em outros lugares parece meio difícil de se andar pra frente. Aliás, a situação em outros países africanos, caso do Sudão, por exemplo, é ainda mais absurda, com os réus podendo ser condenados até a morte. Bom, já disse isso no começo da resenha e repito: em um País em que as pessoas são presas por serem gays, um filme foi feito pra discutir o assunto. Não para provocar, mas para naturalizar o amor, para tentar demover as lideranças do absurdo de se condenar o público LGBTQI por simplesmente ser quem é.

Bom, não adiantou muito. Rafiki foi proibido no Quênia. Ao invés de orgulho por uma película bem executada, cheia de paixão, de cores e de música, ainda que com uma ou outra deficiência técnica, o desprezo. O desprezo, como certamente ocorre aqui no Brasil, por aqueles que abominam as artes e o que elas representam enquanto oportunidade para que se quebre o status quo, se questione aquilo que se está estabelecido e se incomode. O filme não tem nada de diferente em relação a qualquer outros que tenha a temática LGBTQI. Nada. Ao contrário, é até bastante econômico e sensível ao mostrar a impossível relação entre Kena (Samantha Mugatsia) e Ziki (Sheyla Munyiva). Não há nudez, não há beijos quentes e sexo intenso. Há apenas o que se insinua, que se está guardado para os olhares, para os sorrisos, para um silêncio capaz de preencher muito mais do que um amontoado de palavras.


Em si a história até parte de um clássico clichê: Kena e Ziki são filhas de dois homens que são adversários políticos na cidade em que moram. O pai de Ziki parece ser bastante conservador, religioso, temente à Deus. Já o pai de Kena parece ser levemente mais progressista, está separado e esperando um filho com a sua segunda esposa. De qualquer maneira, a aproximação entre as jovens representará um baque para todos, descortinando uma série de cenas de violência, de agressões e de dores não apenas físicas, mas da alma. Impossível tentar imaginar como é amar alguém e não poder manifestar isso na rua, na frente de todo mundo. Não poder pegar na mão, dar um beijo carinhoso, afagar os cabelos, abraçar com firmeza e ternura, sem estar sendo julgado e imediatamente condenado. Aliás, a sociedade que julga e condena é representada no filme pela personagem Mama Atim (Muthoni Gathecha), a fofoqueira do bairro.

Como não poderia deixar de ser é uma obra dura, ainda que extremamente poética, valendo-se ainda de contrastes para reforçar aquilo que pretende. Como exemplo, é interessante notar como a cidade surge como um amontoado de prédios cinzento e sem vida, ao passo que Kena e Ziki, com suas roupas e acessórios multicoloridos, surgem como uma representação da África viva, apaixonada, vibrante. O mesmo vale para rica trilha sonora composta por ritmos como o trap e o hip hop, que surgem como a antítese da Igreja dura, quadrada, parada e de seu pastor disposto à inquirir jovens que estão florescendo, descobrindo o amor, vivendo. Nas imperfeições técnicas de uma cãmera mal ajustada ou de uma edição de som que coloca voz nas personagens mesmo que elas não mexam a boca, o charme de um filme que desafia, que pulsa, que ama. É a resistência, mas com a guarda baixa, carinhosa, gentil, diante dos punhos, das armas, da violência em um mundo que, a cada dia, parece mais atrasado, mais parado no tempo e mais distante de um ideal de justiça social e de respeito às diferenças.

Nota: 8,0


Na Espera - O Farol (Filme)

Causou burburinho nessa semana, o lançamento do trailer aguardado segundo filme do diretor Robert Eggers - do elogiado A Bruxa (2016). Intitulada O Farol (The Lighthouse), a obra reúne Willem Dafoe e Robert Pattinson em uma trama de paranoia, claustrofobia e loucura. Pelo material de divulgação, é possível saber que o tal farol do título está situado em uma ilha isolada na Nova Inglaterra, no final do século XIX. No local trabalha Thomas (Dafoe), que contrata o jovem Ephraim (Pattinson) para substituir o ajudante anterior e colaborar nas tarefas diárias.


Só que o faro é mantido fechado ao novato, que se torna a cada dia mais curioso sobre o que poderia haver dentro desse espaço. Será no jogo de provocações e de palavras entre esses homens que parecerá residir uma das forças da película - ao menos é o que se pode depreender do trailer, que é bastante sombrio e lindamente fotografado em preto e branco. Serão os inevitáveis fenômenos estranhos que eles presenciarão apenas frutos da imaginação? A obra estreia por aqui no dia 31 de outubro de 2019 e, como de praxe, já estamos Na Espera.