sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Novidades em Streaming - Touch

De: Baltasar Kormákur. Com Egill Ólafsson, Koki e Masahiro Motoki. Drama / Romance, Islândia / Reino Unido, 2024, 121 minutos.

Devo confessar a vocês que não tenho muita paciência com filmes que tratam seus personagens como figuras absolutamente perfeitas, incorruptíveis e que permanecem de maneira ininterrupta em um pedestal moral. Ninguém age assim o tempo todo e obras desse tipo, além de parecerem excessivamente infantilizadas, ainda se convertem em experiências cansativas e pouco envolventes. Mesmo quando o assunto é um melodrama. É preciso, afinal, alguma pimenta. Um temperinho a mais. O que, de forma irônica, falta justamente a Touch - o candidato da Islândia à categoria Filme em Língua Estrangeira para o Oscar desse ano. Dirigida por Baltasar Kormákur, a produção se passa, em boa parte, no interior de uma cozinha. Mas uma cozinha em que, por mais bonita que seja a receita e por melhor que seja o seu preparo, ela sempre parecerá deficiente em sal. Em sódio.

Ao cabo, Touch é um filme chato. Que faz com que acompanhemos a jornada de um idoso de mais de setenta anos que, por mais incrível que possa parecer, ainda não superou um romance da juventude. Eu não sei bem em que tempo esse povo tá vivendo ou o tipo de solidão que tem percorrido suas almas, mas, o protagonista Kristófer (Egill Ólafsson), como se fosse uma espécie de Florentizo Ariza dos tempos pandêmicos (sai o cólera do livro de Gabriel Garcia Marquez e entra a covid-19), resolve ir atrás de um antigo amor - seu nome é Miko (Yôko Naharashi). Para colocar seu plano em prática ele fecha o restaurante da qual é proprietário, na gelada Islândia, para tentar localizar o amor pós-adolescente, ocorrido no final dos anos 60, em Londres. Sua esposa morreu e esse reencontro poderá aplacar, talvez, um tipo de ausência. Ainda mais em um mundo tão doente, individualista e pouco empático.

 

 

Em linhas gerais Kristófer é o sujeito de fala mansa e sempre ponderado - um idealista (ou comunista) com um passado universitário regado a cabelos compridos, ideologia pacifista e fitas K7 de John e Yoko a tiracolo. Em 1969 o mundo também passava por uma espécie de transformação e, meio cansado da militância universitária (com seus longos e pouco produtivos debates), o protagonista resolve tentar uma vaga de trabalho em um restaurante japonês, no coração de Londres. A pequena desconfiança inicial do dono do estabelecimento, o carismático Takahashi-San (Masahiro Motoki), logo da lugar a uma relação de amizade e de intimidade. Aliás, o conjunto ficará ainda mais próximo quando o estudante universitário Kristófer (Pálmi Kormákur Baltasarsson) se apaixonar pela jovem Miko (Koki). Uma relação sem muita química, meio forçada e até insípida, mas que, aparentemente, se tornará inesquecível pra ambos.

Evidente que o filme tem algumas boas intenções. Primeira delas é de denunciar o absurdo da guerra - que respinga nos antepassados e na própria Miko, já que sua família era de Hiroshima. O tom paz e amor pode ser interessante, ainda que, aqui e ali, soe meio artificial - e quase não consegui esconder a irritação no instante em que Miko compara um Kristófer de óculos, ao John Lennon. Como disse no começo é tudo muito certinho. As idas e vindas no tempo são comoventes. A trilha é grandiosa e parece subir na hora adequada na intenção de arrancar lágrimas à fórceps do espectador. Com tudo piorando no terço final, quando a forçação de barra do encontro dos idosos atinge o auge da manipulação, ao tentar nos fazer crer que ambos aguardaram uma vida inteira por aquele momento. Por isso que gosto tanto do Vidas Passadas (2023), que foi um dos indicados ao Oscar do ano passado. As paixões juvenis, em geral, ficam resguardadas pra juventude. A gente cresce, amadurece, muda. Adquire bagagem, se transforma. Que um amor infantil e perfeitinho possa existir, definitivamente é coisa de filme. Que esse filme seja islandês, um País tão pródigo em boas produções, é quase trágico. Uma pena.

Nota: 2,0


terça-feira, 19 de novembro de 2024

Cinema - Ainda Estou Aqui

De: Walter Salles. Com Fernanda Torres, Selton Mello, Valentina Herszage, Maeve Jinkins e Fernanda Montenegro. Drama, Brasil / França, 2024, 137 minutos.

Vamos combinar que, por si só, Ainda Estou Aqui já seria mais um filmaço a nos lembrar os horrores da Ditadura Militar e a importância de conhecer a história para, nesse caso, não repeti-la. Mas o timing é realmente impressionante. Em sua segunda semana em cartaz e batendo recordes de bilheteria, a obra de Walter Salles (de Central do Brasil, 1998), estrelada por Fernanda Torres ocorre em uma linha paralela em que o golpismo fica ainda mais escancarado. Na mesma semana em que um plano para assassinar Lula, Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes é revelado pela Polícia Federal - isso logo após um extremista de direita se autoexplodir em frente ao STF tamanho o delírio e a alienação desse campo -, a população brasileira tem a oportunidade de, com uma obra de arte, se recordar dos horrores de um regime que não hesitava em torturar, violentar e matar supostos adversários políticos. A quem atribuíam a pecha de subversivos.

Nesse caso não dá nem pra dizer que é a vida imitando a arte porque na realidade é a vida imitando a vida mesmo. Quando a gente vê que o próprio Bolsonaro autorizou tentativa de golpe até o final de 2022, com o documento que descrevia a operação sendo redigido e impresso no próprio Palácio do Planalto, percebemos que estivemos por um fio de ver a nossa Pátria novamente mergulhada nos horrores de um regime tirânico. Foi por um detalhe que essa coisa cinzenta, funesta e sombria de tanques do exército, militares perambulando pelas ruas com armas em punho e um medo onipresente não se tornaram o novo normal. Nesse sentido, não é difícil sentir um calafrio ao acompanhar a história de Eunice Paiva (Torres), mãe de cinco filhos - entre eles o escritor Marcelo Rubens Paiva, que escreve a obra em que a trama é baseada - e que precisa tentar tocar a vida após o seu carismático e amoroso marido, o ex-deputado e engenheiro Rubens Paiva (Selton Mello), simplesmente desaparecer, após ser levado de sua casa por integrantes do regime.

 

 

Nesse sentido, Ainda Estou Aqui se assemelha a um filme de terror. Mas não um filme de terror sobrenatural ou de fantasmas que aparecem pra atormentar os moradores. Os fantasmas até existem, mas esses usam farda, bota, falam grosso e não aceitam uma democracia em que exista o dissonante. O diferente. "Vamos fuzilar a petralhada do Acre", afirmou o ex-presidente certa feita. Em outra, bradou que o "erro da ditadura foi torturar e não matar". No caso de Rubens Paiva, ele certamente foi torturado. E morto. Pelas mãos do Estado. No filme de Salles o público sente certo alívio em não precisar se deparar com cenas de violência excessivamente gráfica que poderiam emergir das agressões. Não é que elas não ocorram e não deixa de ser torturante ouvir os gritos e o choro de quem, por trás dos corredores, clama por algum tipo de clemência - e certamente são extremamente doloridos os instantes em que a própria Eunice é levada pelos militares, sem nem saber o que eles farão com ela. E muito menos ter conhecimento do paradeiro do seu marido.

Após ser torturada e solta, Eunice volta para os seus filhos. E precisa tentar recolher os cacos de uma experiência traumática, que parece longe de ter um fim. E talvez um dos maiores impactos gerados pela obra de Paiva (e de Salles) seja justamente o de dedicar a sua atenção a quem fica. Mães, esposas, filhos daqueles que desapareceram. Uma violência moral e psicológica sem medida - contra intelectuais, professores, estudantes, artistas. Pessoas que, por escreverem cartas, ou trabalharem com cultura eram incluídos entre os rebeldes, os revolucionários, os insurgentes. Não por acaso, sequências como aquela em que os jovens - fumando, rindo, se divertindo - são parados em uma blitz, geram tanto medo. Nunca se sabe do que uma polícia violenta é capaz de fazer. Seu código de conduta desviante torna tudo imprevisível. O que contribui para um clima de tensão permanente mesmo diante dos belos cenários do Rio de Janeiro, com suas praias bonitas que parecem ainda mais magnéticas por conta das cores em tons pasteis, pela trilha sonora cheia de grandes canções setentistas e pelo figurino acertadíssimo.


 

Aliás, não bastasse ser uma grande história - ainda que de classe média e de uma família que, dado o seu privilégio, tem condições de contá-la (diferentemente de muitos, que certamente foram apagados em todos os sentidos) -, cheia de grandes interpretações (exigimos Fernanda Torres no Oscar já!), a produção como um todo é um primor técnico. As idas e vindas no tempo milimetricamente calculadas, o desenho de produção perfeito - com os carros, os objetos cênicos, a decoração tudo de acordo - e um sentimento de nostalgia torto por uma vida que poderia ter sido e não foi (fortalecido pela fotografia granulada e levemente dessaturada) formam um conjunto bonito onde, muito provavelmente não deveria haver beleza. Tanto é que, em meio a tantos horrores, há uma pontinha de otimismo ao cabo - especialmente nessa olhadela para o futuro, que vêm com uma foto sorridente e com a obtenção de um documento importante. Talvez ao tentar envenenar Lula e enforcar Alexandre de Moraes os truculentos golpistas tenham dado um baita tirambaço no pé. E talvez não haja chance maior para que jamais esqueçamos que anistia é o CACETE.

Nota: 9,5

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Tesouros Cinéfilos - Sing Sing

De: Greg Kwedar. Com Colman Domingo, Clarence 'Divine Eye' Maclin e Paul Raci. Comédia / Drama, EUA, 2024, 102 minutos.

Mais um filme sobre o poder transformador da arte - inclusive como política de ressocialização de presos. Assim é Sing Sing, drama dirigido pelo ainda desconhecido Greg Kwedar, que conta a história inspirada em eventos reais sobre um grupo de encarcerados de uma prisão de segurança máxima de Nova York, que participa de um programa de Reabilitação Através das Artes (RTA). E devo confessar que dei o play com certa desconfiança, até mesmo por soar meio batido esse subgênero de pessoas buscando algum tipo de redenção em um contexto que, em alguma medida, parece não lhes pertencer. Sim, em séries recentes como Barry, a gente já experienciou assistir a um assassino em série que entra em um grupo de teatro como parte de seu próximo "trabalho" - e começa a repensar suas decisões na vida ao ingressar no universo dos palcos. Só que diferentemente da comédia da HBO, aqui o componente realista é o que nos pega. E nos conduz em uma jornada tão edificante quanto surpreendente.

Porque uma coisa que só fui descobrir fazendo uma pequena pesquisa pra essa resenha é que muitos atores coadjuvantes que vemos em cena integraram, de fato, o programa. Que, aliás foi um sucesso, já que estudos mostram que a taxa de reincidência criminal (e de retorno para a prisão) em até três anos após a libertação é inferior a 3% para os integrantes do projeto (contra 60% de média nacional). O que dá conta, também, do poder das oportunidades - que, claramente, conseguimos perceber que não é a mesma para grande parte das pessoas, especialmente aquelas que emergem das camadas sociais mais vulneráveis. O que dá uma dimensão da importância de projetos sociais de música, de cultura, de cinema, de esportes e de educação em comunidades mais pobres. O filme mostra um sem fim de talentos artísticos desperdiçados por motivos de "vida real". Com a entrada para o crime sendo, muitas vezes, o caminho natural para quem terá menos acesso a tudo.

 

 

De forma deliberada, o filme não centra sua narrativa nos crimes cometidos ou nos esforços de advogados em conseguir acordos ou reduzir penas. Ou mesmo na violência do Estado ou no racismo estrutural como componente - talvez na intenção de não forçar a barra na busca pela empatia (e todos certamente têm suas histórias). O protagonista, Divine G é vivido com entusiasmo apaixonado por Colman Domingo - e não será nenhuma surpresa ele ser lembrado na temporada de premiações (inclusive no Oscar). É ele que conduz a narrativa por dentro dos corredores da prisão - como um participante ativo do programa (ele é um dos fundadores e um dos principais atores). Após o fim de uma temporada de apresentação shakespereana, os presos realizam um brainstorm - e um dos outros encarcerados, o temperamental Clarence 'Divine Eye' Maclin (como ele mesmo), sugere uma comédia. Até mesmo para amenizar as dores da vida real. Dá discussão sai uma ideia estrambótica: fazer uma peça cômica chamada Breaking the Mummy's Code, que mistura Banzé do Oeste, Gladiador, De Volta Para o Futuro e A Hora do Pesadelo, com boas pitadas de Hamlet.

Em muitas medidas é extremamente divertido ver um grupo de pessoas não acostumadas à atuação, em um esforço para colocar uma peça de teatro nos palcos - com os presos sendo conduzidos pelo levemente excêntrico diretor Brent Buell (Paul Raci, que vimos recentemente em O Som do Silêncio (2019). Entre idas e vindas, dilemas, rivalidades e incertezas (inclusive sobre o teatro em si, seu propósito e suposto falseamento da realidade), esse é aquele tipo de projeto que brilha nos instantes mínimos - como a pequena conquista de conseguir realizar uma cena, ou mesmo a obtenção de um aporte financeiro obtido junto a executivos, que possibilitará a continuidade do programa. E, claro, existe a vida real e o desejo de liberdade que perpassa todos que estão ali - e é justamente ao encarar a complexidade do sistema jurídico, que Domingo ilumina ainda mais sua atuação, sendo praticamente impossível não se comover. Aliás, é um paradoxo interessante que, em certa altura, alguém bastante importante pergunte a ele se ele "está atuando". Todos ali estão. E muito bem.


segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Novidades em Streaming - Motel Destino

De: Karim Aïnouz. Com Iago Xavier, Nataly Rocha, Fábio Assunção e Fabíola Líper. Suspense / Drama, Brasil, 2024, 115 minutos.

Um noir tropical que mistura mato com neon, sensualidade com rigor, violência com fragilidade. Assim podemos resumir, em alguma medida, a experiência com Motel Destino, mais recente trabalho do diretor Karim Aïnouz (A Vida Invisível, 2019), que acaba de ser disponibilizado para aluguel nas plataformas de streaming. Exibido no Festival de Cannes desse ano, o longa acompanha o jovem Heraldo (Iago Xavier), um rapaz de 21 anos que sonha com uma vida melhor em São Paulo - longe, portanto, da costa nordestina -, mas que se vê envolto em uma tentativa de golpe que dá errado e que resulta na morte de seu irmão. Perseguido pelo bando da chefona Bambina (a ótima Fabíola Líper), após perder uma grana para uma prostituta, Heraldo encontra refúgio justamente no motel que dá nome ao filme e que é administrado pelo casal Dayana (Nataly Rocha) e Elias (Fábio Assunção).

A chegada é conturbada. Em fuga e sem ter muito pra onde ir, o protagonista aceita um trabalho temporário no local, como uma espécie de faz tudo - que faz pequenos reparos na estrutura, arruma os quartos, organiza os ambientes. O clima é meio caótico, em meio a gritos sexuais onipresentes e orgasmos constantes nunca abafados pelo sistema de isolamento acústico (que, na realidade, inexiste). Dia após dia, jovem vai ficando no local, passando a participar da vida do casal anfitrião: seus momentos de lazer, sua rotina, tudo envolve os três, que estão permanentemente com roupas mínimas (o calor é palpável) - e não demorará para que desejos até certo ponto controlados, explodam. E, bom, não é preciso ser nenhum expert para saber que, dado o temperamento imprevisível de Elias, as coisas podem sair do prumo rapidamente.


 

E, em linhas gerais, se esse é um thriller erótico que não chega a apresentar alguma grande novidade em sua narrativa - que flui com uma densidade meio enevoada, reforçada pelas cores vivas dos quartos temáticos do motel (com seus tons intrusivos e bastante saturados) -, por outro lado, esse é um projeto que nos propõe um mergulho em um universo pouco visto, como o dos bastidores de espaços procurados pelas pessoas exclusivamente para o sexo. Por trás de portas e janelas a libido constante gera uma sensação de calor que, alegoricamente, sufoca, causa estranhamento - um tipo de claustrofobia tensa, ansiosa, que vai no limite entre o tesão, o torpor e a violência. Não é por acaso que sequências com os animais domésticos (por assim dizer) mantidos por Elias, com sua sua selvageria prática e escancarada, funcionam como uma metáfora para os seres que ali habitam, com seu exagero ignóbil e sensualidade febril.

Nesse sentido, em alguma medida, a fuga de Heraldo para um lugar fechado em que ele, novamente, se verá preso, não deixa de ser uma ironia curiosa do roteiro. Envolto na rotina de sexo descompromissado e consertos de ar condicionado e de cerca elétrica, o protagonista vai levando a vida, desviando por corredores, em meio a prazeres fugazes de vermelho vívido - proporcionados pela experiente Dayana -, enquanto planeja algum tipo de fuga que nunca acontece. Os perigos rondam - inclusive com a presença inesperada de figuras ligadas ao bando de Bambina que veem no motel também um refúgio. Só que talvez o que Heraldo não perceba é que a liberdade suposta nesse local idílico e adequado para a putaria é que as portas poderão se fechar, inesperadamente. É tenso mas letárgico, potente mas cauteloso. Assim como costumam ser os bons filmes nacionais.

Nota: 8,5


segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Novidades em Streaming - O Melhor Está por Vir (Il Sol Dell'avenire)

De: Nanni Moretti. Com Nanni Moretti, Margherita Buy, Jasmine Trinca e Mathieu Amalric. Comédia / Drama, França / Itália, 2023, 94 minutos.

Não sei se é apenas impressão, mas estaria o Nanni Moretti se convertendo em um véio amargurado, daqueles que é incapaz de perceber que os tempos mudaram e que as transformações - políticas, sociais, culturais - ocorrem mais ou menos na velocidade da luz? Sim, porque só dessa forma parece ser possível explicar a existência de um filme tão autoindulgente como O Melhor Está Por Vir (Il Sol Dell'avenire) - o mais recente projeto do premiado realizador, que venceu a Palma de Ouro do Festival de Cannes, com o inesquecível O Quarto do Filho (2001). Aqui, Moretti encarna Giovanni, um diretor de cinema que parece já meio distante dos seus dias de glória e que perambula pra lá e pra cá de forma claudicante entre o set de sua nova produção para as telonas - uma obra com pano de fundo histórico sobre conflitos internos envolvendo integrantes do Partido Comunista Italiano em meados dos anos 50 - e a vida doméstica, com uma separação que se avizinha.

Importante que se diga que não há problema algum em uma produção ser caótica, estranha e metalinguística. Só que esse aqui quase pende pro aborrecimento ao tentar abarcar um monte de coisas ao mesmo tempo e de forma esparsa. Ok, sabemos das posições políticas de Moretti e um filme dentro de um filme sobre comunistas do pós-guerra insatisfeitos com a invasão russa à Hungria, que recebem uma trupe circense de Budapeste, e de como essa controvérsia poderia manchar a imagem do partido, é só uma das alegorias para o desgosto geral em relação aos rumos da própria existência do protagonista. Imaginando-se um sujeito de grande virtude, ele simplesmente não aceita que seu casamento está ruindo. Mais do que isso, fica incomodado de este ser o primeiro projeto que não será produzido por sua esposa e parceira de negócios Paola (Margherita Buy), que está envolvida em uma obra genérica de gângsteres, com violência estilizada e comando de um jovem diretor. Com quebras de andamento, elipses e outras trucagens, Giovanni rumina aqui e ali. Sem se fixar em parte alguma.

 

 

Em alguma medida essa mescla de cinema, política moderna e dramas íntimos e familiares não chega a ser uma novidade na filmografia do italiano, como no caso do ainda recente Minha Mãe (2015). Só que tudo que soava inspirador, denso e metafórico naquele, soa vazio, teatral e repetitivo em O Melhor Está Por Vir. Até a estrutura parece semelhante, com os bastidores das filmagens se colocando como veículo para a verbalização de angústias, medos, frustrações e incertezas. Em uma longa e curiosa sequência, por exemplo, Moretti vai até o set de filmagem da obra produzida por Paola para, simplesmente, interromper a ação de um homem apontando uma pistola para a cabeça de outro, sob a alegação de a violência estilizada ser algo sem propósito (e que poderia gerar o efeito inverso na audiência). É um instante que era pra ser engraçado, com direito até a uma "participação" de Martin Scorsese. Mas tudo soa apenas caricato.

Tudo bem que Moretti não precisa mais provar nada pra ninguém. É um dos grandes diretores vivos, dono de uma verve sempre provocativa e autoirônica, que, em alguns casos, pende pra subversão. Mas ao dar voltas em torno de si para reclamar sobre como a Netflix vai dominar o mercado com seus produtos genéricos (exibidos em 190 países), sobre como a pureza da arte e o cinema de autor podem estar com os dias contados - o que é evidenciado pela falta de financiamento -, ou de como o fantasma do comunismo inexistente segue rondando o espectro político de uma Itália governada pela extrema direita, o diretor parece aquele idoso ranzinza, que não encontra o próprio óculos e que fica colocando a culpa nos outros (até perceber que o aparato tá diante do próprio nariz). Essa comiseração, ali pelos 60 minutos cansa. Justo no momento que deveria ser o do what a fuck. Nessa hora a gente só quer que o filme acabe. E fica na torcida para que o próximo, o do amanhã, seja melhor.

Nota: 4,0


sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Pitaquinho Musical - Christopher Owens (I Wanna Run Barefoot Through Your Hair)

"Eu sei que é difícil não sentir que você está devastado / Quando tanto amor está faltando desde o início". Vamos combinar que os versos da singela This Is My Guitar quase funcionam como uma carta de apresentação para o recém-lançado I Wanna Run Barefoot Through Your Hair, o quarto disco de Christopher Owens, em carreira solo. Porque vamos combinar que, com tanta tragédia ocorrida na vida do ex-Girls é quase um milagre o acontecimento de um novo registro. Afinal, como se não bastasse o trágico falecimento do seu ex-colega de banda Chet JR White, em 2020, justo quando o Girls ensaiava um retorno, o artista ainda sofreu um grave acidente de motocicleta três anos antes, que o deixou impossibilitado não apenas de caminhar, mas de pagar por seus cuidados médicos. Foi nesse contexto que sua noiva o abandonou. Seu emprego em uma cafeteria foi pro saco. E o aluguel se tornou impraticável, o levando a uma vida nômade como sem teto, morando em seu carro.

 

 

Até a guitarra e o gato foram roubados na estrada, então dá pra compreender perfeitamente esse retorno pós pandêmico em um estilo poético e contemplativo, mas borbulhante e atmosférico - em que as letras surgem reflexivas, funcionando como uma espécie de veículo para expiar as dores, com suas ranhuras e incertezas. Algo bem diferente daquilo que encontramos em Chrissibaby Forever (2015), o agora longínquo registro anterior, com suas canções açucaradas, nostálgicas e emocionais (quase como uma extensão daquilo que víamos em sua antiga banda). Um bom exemplo desse caráter mais meditativo de suas músicas pode ser percebida no single I Think About Heaven em que a guitarrinha primaveril do compositor, contrasta com a letra sobre romances tortos e o relacionamento complexo com a religião (Minhas lágrimas foram o meu dia e a minha noite / Até eu te ver, de que serve a minha visão?). É um disco cheio de personalidade, e que cresce a cada audição. Vale conferir.

Nota: 8,5


Novidades em Streaming - A Substância (The Substance)

De: Coralie Fargeat. Com Demi Moore, Margaret Qualley e Dennis Quaid. Ficção Científica / Horror, EUA / França / Reino Unido, 2024, 141 minutos.

Ficou mais ou menos famoso o caso recente de uma jovem influencer de pouco mais de 30 anos que, na busca de melhorar sua aparência, perdeu parte do lábio e teve o rosto deformado após a aplicação de um produto que não era recomendado em cirurgias de harmonização facial. E basta uma pesquisa rápida no Google, com as palavras-chave adequadas, para sermos inundados com um sem fim de notícias de procedimentos estéticos que deram errado, que saíram do controle e que, se não levaram a pessoa à morte, prejudicaram (e muito) a saúde dos envolvidos. A busca por padrões estéticos inalcançáveis, que se somam ao etarismo como um fardo moderno, especialmente para as mulheres, certamente rende horas de discussões, de teses e de estudos. E que um filme como A Substância (The Substance) contribua para esse debate de forma tão eficiente, chocante e sem concessões, é algo não menos do que notável.

Sim, as pessoas saíram das salas de cinema aterrorizadas com o body horror dirigido pela francesa Coralie Fargeat, que agora está disponível na Mubi (e segue em cartaz nos cinemas). Sim, a obra leva à busca pela perfeição estética e pela juventude como sinônimo de beleza ao limite do aceitável, ao nos apresentar à Elisabeth Sparkle (Demi Moore) - uma antiga estrela de Hollywood (com direito à nome na Calçada da Fama e tudo) que, hoje, próxima dos 60 anos, sobrevive com um programa matinal de ginástica para a terceira idade (daqueles bastante populares nos Estados Unidos). Só que Elisabeth tem percebido um movimento nos bastidores envolvendo acionistas e diretores - sempre aquele grupo de idosos decrépitos que, sem parecer ter espelho em casa, vivem de criticar a aparência alheia com um sem fim de comentários sexistas -, que pretendem substituí-la por alguém mais jovem. Que dê mais audiência. Que gere mais interesse do que uma senhora com sua "malhação jurássica".

 

 

Ao invés de se resignar e tentar lutar por seu espaço como uma Margo Channing - a personagem de Bette Davis no clássico A Malvada (1950) -, Elisabeth faz o que, infelizmente, muitas mulheres do ano de 2024 fariam: adquire um kit para um tratamento experimental com um produto injetável, que lhe possibilitará ter acesso a uma versão "melhor de si mesma". Mais jovem. Mais vivaz. Tudo começa quando, desalentada, Elisabeth sofre um acidente justamente após ver um outdoor com o seu rosto sendo removido. É no hospital que ela conhece um excêntrico enfermeiro de pele plastificada (Robin Greer), que lhe entrega um pendrive com instruções. O que envolve a ida a um local meio Quero Ser John Malkovich (2000) das ideias, com cores contrastantes, espaços apertados e algo tipo uma gaveta séptica onde ela retirará o aparato, que conta com um produto de cor amarela esverdeada radioativa (só faltou a caveirinha), que deve ser aplicado com uma seringa gigantesca para a obtenção do efeito desejado.

Sem pestanejar e, diante das reprimendas do seu chefe no canal de TV, o executivo Harvey (Dennis Quaid, no modo misógino de alta performance), Elisabeth executa as instruções, "libertando" de si própria a sua versão jovial e magnética, que leva o nome de Sue (Margaret Qualley). O manual do produto é claro: é preciso manter o equilíbrio entre os corpos, o que envolve idas e vindas entre um e outro, com um sistema de estabilização que desafia as leis da física (mas que para uma ficção científica que se mescla ao horror estilo David Cronenberg turbinado, funciona direitinho). E é óbvio que não é preciso ser nenhum expert para saber que Elisabeth/Sue ficará obcecada por sua versão idealizada de juventude. O que fará a coisa toda desandar. Gerando uma insatisfação que só aumenta - assim como aumentará o gore - e eu confesso a vocês que suporto muitas coisas no cinema, mas aqui me vi virando a cabeça em alguns momentos, de tão angustiado (e isso é um elogio).


 

Fargeat pode até exagerar na dose ao tentar reforçar seu ponto ou a sua bandeira - e a mensagem sobre a necessidade de autoaceitação em tempos de redes sociais, de filtros, de aparências perfeitas e de procedimentos estéticos dispensáveis e totalmente invasivos é mais do que óbvia. Mas essa é daquelas obras bacanas para a discussão pós sessão, justamente por inserir uma série de elementos que vão para além das questões ligadas aos padrões de beleza inalcançáveis. Há um subtexto, por exemplo, sobre a dificuldade de obtenção de certos papeis no cinema e na TV por mulheres mais velhas (e olha quanto tempo a gente não via a própria Demi Moore, que foi uma das musas dos anos 90, em um papel de destaque, sendo que, ela segue talentosíssima e linda como nunca). Outro aspecto envolve as mudanças brutais em nossos corpos, que, quase nos transmutam em outras pessoas, irreconhecíveis por vezes. Fantástico, repulsivo, delirante, estiloso, cruel e visceral, esse é daqueles filmes que ficam colados com a gente após a subida dos créditos. Assim como colam os rostos, os sons, os gostos, os cheiros e os fluídos do que assistimos. Filmaço, que merece toda a sorte do mundo no próximo Oscar.

Nota: 9,5