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terça-feira, 30 de abril de 2024

Livro do Mês - Klara e o Sol (Kazuo Ishiguro)

Editora: Companhia das Letras, 2021, 338 páginas.

"Clara como a luz do sol / Clareira luminosa nessa escuridão". Devo confessar a vocês que, mais de uma vez durante a leitura de Klara e o Sol - mais recente obra de Kazuo Ishiguro (e meu primeiro contato com o trabalho do escritor japonês) -, pensei na música do Lulu Santos. E não apenas pela óbvia intersecção entre as palavras, ainda que a Klara de Ishiguro seja um nome próprio - no caso é a protagonista do livro, uma espécie de inteligência artificial robótica de última geração, projetada para fazer companhia a seres humanos -, mas também pelo verdadeiro elogio ao astro e a toda a sua potencialidade luminosa. Aliás, não haveria nada de errado se o livro se chamasse "Ode ao Sol", com algum subtítulo aludindo à dor e à solidão em tempos de tecnologias avançadas. Sim, porque o sol aqui é simplesmente o alimento de Klara. É ele que a nutre, mantendo-a estável, ativa e atenta, especialmente na primeira parte, a da "vitrine".

É nas primeiras páginas que a gente conhece um pouco da personalidade curiosa e observadora de Klara - que, como uma espécie de gadget, fica disposta em uma loja que vende esta e outras bugigangas tecnológicas. Acompanhada de sua amiga Rosa, Klara e passa os dias mudando de posição no estabelecimento, de acordo com os humores de sua gerente, enquanto aguarda por algum potencial comprador. Aqui e ali ela observa a rua, os táxis passando, os transeuntes, os prédios, as demais inteligências artificiais e até os equipamentos que fazem o serviço público - especialmente uma máquina apelidada de Cootings, com amplo potencial poluidor. Num grau de fumaceira que chega a quase impedir a entrada dos raios de sol pela fachada da loja. O sol, tão importante para nutrir Klara e as demais inteligências. Em meio a sua rotina, passa a reconhecer padrões, sentimentos, desejos e anseios tipicamente mundanos, o que a fará também aprender sobre suas próprias necessidades.




Todos esses elementos são amplificados na segunda parte da obra, quando Klara é adquirida por Josie, uma adolescente de 14 anos que, em companhia de sua mãe, Chrissie, mais de uma vez "namora" a inteligência artificial na vitrine da loja. Na propriedade da família, que parece ficar em uma área rural, já que é possível enxergar da janela principal o celeiro do vizinho (o senhor McCain) - uma estrutura que fica em um topo de morro junto à vegetação rasteira -, Klara tentará se enturmar não apenas com Josie e seus amigos, mas também com o vizinho da jovem, Rick, que parece ser seu melhor amigo e, vá lá, talvez até um interesse romântico. Só que o comportamento bastante estranho de Chrissie e também da mãe de Rick, a senhora Helen, fará com que a protagonista perceba que há algo ali que não está bem certo. Mais do que isso, há segredos familiares que talvez exijam de Klara uma mudança de rota que quebrará os paradigmas e até as perspectivas futuras daquela família, que é completada pela empregada doméstica Melania e por Paul, o pai de Josie.

Um dos traumas que virão à tona envolve o trágico falecimento de Sal, a irmã mais nova de Josie - que, de forma estranha, já teria sido vista na propriedade, no passado. E, pelos olhos de Klara será possível perceber como, diante de tantas revelações de impacto nesse cenário conturbado, ela reflete de forma arguta sobre a natureza humana e a respeito daquilo que nos move - com a protagonista sendo uma figura solidária, empática e calorosa com os demais. O que a torna capaz de estabelecer relações sólidas, profundas e que se adaptam às circunstâncias - especialmente quando ela faz uma triste descoberta sobre Josie. Ao cabo, Klara e o Sol - que será adaptado para o cinema por Taika Waititi em filme estrelado por Amy Adams e Jenna Ortega -, é um livro emocionante e de impecável ternura, que se debruça de forma existencialista sobre o tema da amizade. Para quem gosta de Não Me Abandone Jamais (2005), que eu não li (mas vi o filme), certamente será um prato cheio

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Livro do Mês - Velhos Demais Para Morrer (Vinícius Neves Mariano)

Editora Malê, 2020, 280 páginas.

"Em um mundo que luta contra o envelhecimento, falar sobre o passado é um ato de coragem".

Vamos combinar que a premissa de Velhos Demais Para Morrer, segundo romance do mineiro Vinícius Neves Mariano, não poderia ser mais interessante. Na trama estamos em algum lugar do futuro, em um período em que o número de idosos alcançou 50% da população total, o que instaurou uma crise econômica e social sem precedentes. E é nesse cenário de iminente catástrofe, que o governo estabelece uma política radical, que envolve um pacote de medidas de transição para a maturidade. Conhecido pela sigla TranMat e lançado naquele que ficou conhecido como Ano Anacrônico, o programa tinha como slogan "Maturidade para construir um novo futuro". Sim, o nome pode parecer até simpático em um primeiro momento. Mas nas entrelinhas está uma lógica quase perversa: em um mundo em que a medicina avançou e os idosos vivem mais é preciso estancar essa discrepância. Mas como suprimir idosos sem mais nem menos, sem que esse procedimento seja traumático para quem vai (e também para quem fica)?

Em tempos em que tantos tipos de preconceitos são discutidos, o etarismo também entra nesse combo. E na distopia exagerada mas nunca irreal de Mariano está nesse universo em que envelhecer é uma ofensa. "É mendigar arfando um resto de fôlego para alimentar os pulmões". E para que a transição para o ocaso da existência seja uma oportunidade para um gesto de altruísmo e de coragem, o governo oferece como caminho uma espécie de partida voluntária. Assim, quando chegam aos 65 anos, os idosos podem participar de uma cerimônia supostamente digna em uma das casas de Félix Mortem. Reunidos, familiares e amigos acompanham o último discurso daquele seu familiar que, sedado em três etapas, oferece seu corpo obsoleto para o alívio das finanças do Estado. O que garantirá estabilidade - e uma polpuda herança, chamada de Bônus Pelo Compromisso com a Nação - para que os mais jovens deem continuidade aquilo que os velhos, com suas carnes estafadas, não conseguem. Sim, os anciãos simplesmente se oferecem pra morrer. Em favor da população economicamente ativa.

 

 

E é claro que em um cenário tão apocalíptico não será fácil para a população simplesmente aceitar, na maior, essas duras medidas. Afinal, quem abriria mão da presença de seus parentes, de seus amigos, maridos e esposas, avós e etc para que a nação não definhe? Pior, quem se ofereceria? É nesse contexto que surge Piedade, uma professora grávida que já ultrapassou a idade limite e está em fuga, indo parar em uma espécie de comunidade de refugiados, conhecida apenas como Território Escuro - geralmente um espaço distante dos grandes centros urbanos que, agora, em muitos casos, não passam de cidades fantasmas. Em outra linha narrativa temos o pequeno Perdigueiro, um adolescente de treze anos que é obrigado pelo seu pai, com quem tem péssima relação, a caçar velhos para um grupo de milicianos. Em uma terceira linha acompanhamos Daren, um Faria Limer de 35 anos que trabalha para uma poderosíssima empresa de cosméticos - aliás, um ramo que cresce desenfreadamente em tempos em que a aparência pode, literalmente, salvar vidas.

Em cada um desses segmentos está a luta pela sobrevivência em um cenário onde todos sabem quando vão morrer. E em um mundo que estabelece um ponto final para a vida qual o sentido de tudo? De forma filosófica, o autor costura a sua prosa alternando as histórias de seus protagonistas que, por mais separados que estejam, parecem unidos na mesma jornada. Uma jornada de escapada da alienação e que possa acenar para mudanças sobre como as coisas se estruturam em relação ao envelhecimento. E por mais que os temas sejam pesados, reflexivos, é importante salientar que a obra, lançada pela editora Malê e finalista do Prêmio Jabuti, é um excelente entretenimento. E, como ficção científica, estabelece a possibilidade de reflexão sobre questões humanas sensíveis, sendo uma delas a forma como algumas sociedades da atualidade encaram o ato de envelhecer como um mal-estar. E a gente já faz isso, vamos combinar. O que torna esse livro ainda mais impactante.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Livro do Mês - Suíte Tóquio (Giovana Madalosso)

Editora Todavia, 2020, 210 páginas.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM ALGUNS SPOILERS]

Uma das partes mais impactantes e, paradoxalmente divertidas, de Suíte Tóquio, livro da paranaense Giovana Madalosso, ocorre já no terço final. Nela, Fernanda, uma das protagonistas, está começando a entrar em desespero por causa do desaparecimento de sua filha Cora. Já foi até a polícia, já percorreu a cidade, tudo meio em vão. A solução encontrada por Cacá, o marido gratiluz de Fernanda? Dispor um baralho de tarô na mesa de centro da bela casa em que residem, pra ver o que dizem as cartas. "O meu oráculo", como ele afirma. Não bastasse o absurdo da sequência em si, Cacá ainda faz questão de retirar a carta com um movimento devagar, supostamente calculado - aquela coisa de terapeuta holístico de ocasião, um tipo de negócio que a classe média adora (e que talvez os ajude, em alguma medida, com seus males). Quando vê um carro na carta, Cacá fica exultante. "O carro indica iniciativa, conquista", comenta o homem para, mais adiante, concluir: "ela certamente não foi a pé, e sim de táxi".

E eu admito a vocês que essa é a só a ponta do iceberg no que diz respeito ao desleixo de Fernanda e Cacá, em relação a criação de Cora. Pais ausentes e narcisistas, parecem muito mais preocupados com suas próprias existências - que incluem hedonismos escapistas e prazeres furtivos, que dão conta do completo vazio existencial que percorre suas almas. Fernanda é uma diretora de conteúdo de um programa de TV e é sondada para um cargo mais alto no canal em que trabalha. Anda pra lá e pra cá em viagens pelo Brasil, prestando contas para a produtora estrangeira a respeito de um documentário que está filmando. Numa dessas andanças, conhece (e se apaixona) por Yara, uma diretora de fotografia daquele tipo descolada, que não parece muito interessada em se prender a alguém. Ainda mais se esse alguém for uma mulher casada, insatisfeita com o seu casamento meia bomba e que, de quebra, ainda tem uma filha. Sobre Cacá, ele é apenas o marido "falso bobo", que a gente nem entende bem que papel que tem nesse mundo.

Tanto é que, quando o livro começa, nem chegamos a nos surpreender com os eventos em si: a obra inicia com Maju, a empregada do casal "sequestrando" Cora. Sim, do susto inicial, afinal de contas o roubo de crianças é um crime grave e uma chaga que assola o País e assombra pais dia e noite, a uma certa compreensão das intenções por trás do seu ato, não demora muito. E aqui, a meu ver, está o mérito inicial de Giovana: ao burlar os limites maniqueístas da equação óbvia entre mocinhos e bandidos, a escritora adiciona complexidade aos seus personagens (e a sua trama). Maju é a mulher de vida humilde que sempre foi uma espécie de segunda mãe para Cora. Aliás, talvez em alguns casos até primeira mãe (como a gente já cansou de ver por aí). Supostamente da "família" foi contratada por Fernanda para um regime quase servil, que envolvia dias seguidos de trabalho e eventuais folgas quinzenais - e nestas tinha direito, tal qual uma prisioneira de fato, a uma visita íntima em seu quartinho (a tal Suíte Tóquio do título).

Com uma prosa fluída, a autora conduz a trama em duas linhas narrativas. Em uma delas, Maju e Cora iniciam a sua jornada de ônibus, numa espécie de road movie improvisado. Que resultará acidentado mais adiante, quando perdem suas malas e a condução, indo parar em um motel decadente, tendo ainda de se virar a pé e em caronas pouco convidativas de caminhoneiros de beira de estrada. Nesta parte, também será possível perceber como Maju teve uma vida sofrida, também do ponto de vista do amor (o que parece estar diretamente relacionado a sua absurda rotina como doméstica, que lhe impedia de ter uma vida pra chamar de sua). Já na outra linha, acompanhamos a pasmaceira do casal central, com suas crises pessoais mesquinhas, suas idas e vindas e a inacreditável demora até constatar o que havia ocorrido com sua própria filha - um descaso que, vá lá, talvez beirasse o criminoso. O que também nos faz pensar sobre os delitos ocorridos no romance. Ao cabo, aqui temos a obra pé na estrada típica, com a vida dos personagens sendo movida por uma eterna busca de qualquer fiapo que seja - de ternura, de amor, de afeto, de sexo ou de redenção. Um projeto imperdível, vertiginoso e excentricamente cômico.


terça-feira, 17 de outubro de 2023

Livro do Mês - Caminhando com os Mortos (Micheliny Verunschk)

Editora: Companhia das Letras. Brasil, 2023, 146 páginas.

"Se tinha má fama, a gente não sabe, nem deu tempo de assentar. E agora isso. Essa desgraça! Lourença e Ismênio ficaram cegos com as palavras do pastor. Isso é o que é. Perderam o tino. E não foi só eles, não, muita gente acreditou. Um homem santo, é o que dizem, né doutor? Desculpe, eu sei que o senhor é da Congregação, não tenho a intenção de afrontar. Mas pra mim tanta santidade nunca agradou, não, porque, no começo, eram promessas e mais promessas, testemunhos de vida, pobres que ficaram ricos, desenganados que se curaram, sermões sobre o povo escolhido, o jugo do demônio que foi sendo vencido, mas logo, veja só o senhor, tudo virou pecado, as rodas de dança de São Gonçalo, e muito costume nosso, a cavalhada, as coisas que o padre mesmo, que já vive aqui há muito tempo, nunca ignorou nem tratou com desprezo. Eu não sei dizer se aqui na cidade o pastor tinha palavra mais branda, mas por lá, em Tapuio, em Pacapi, no Poço Guiné e nos sítios por onde andava, era só clamor contra tudo."

Uma história sobre intolerância religiosa - e de como o discurso institucional extremista pode estragar não apenas a vida de uma pessoa, mas de um povoado inteiro. Às vezes por muitas gerações. Mais ou menos assim é possível resumir a experiência com o atualíssimo Caminhando com os Mortos, mais recente obra de Micheliny Verunschk - que foi muito premiada recentemente, com O Som do Rugido da Onça, que conquistou o Jabuti de Melhor Romance Literário. Em um Brasil que tem um congresso capaz de tomar decisões mais com a Bíblia debaixo do braço do que com a Constituição Federal - acenando para o retrocesso em temas que já deveriam ter avançado -, a história de uma jovem queimada vida pela própria família, na intenção de expurgar os demônios, o pecado e a bruxaria não chega exatamente a surpreender. Aliás, em entrevista ao site Quatro Cinco Um, ela afirma ter se inspirado justamente em notícias do tipo.

"Brinco que esse livro é uma história de zumbis, pessoas seguindo alguns preceitos até virarem walking deads", afirmaria na mesma entrevista. E, em alguma medida, é exatamente assim que dona Lourença, mãe de Letinha, a jovem assassinada - alguém cheia de vida, independente, que sairia do povoado de Tapuio, para retornar mais tarde com comportamento diferente daqueles previamente ensinados, de recato, de respeito, de temor à Deus - e seu marido Ismênio passam a se comportar, após a chegada ao local de um pastor evangélico que trabalhará para suprimir a ancestralidade do local, sua cultura e suas tradições indígenas e negras, seus terreiros, suas plantas. Evangelizar é preciso - e ao aderir a tal Congregação dos Justos, os pais de Letinha se converterão em figuras alienadas, que passarão a vigiar o comportamento alheio e suas práticas, enxergando pecado talvez onde nem tenha. Encanrando a própria filha como alguém desavergonhada, excessivamente livre, de hábitos mundanos.

Ao cabo, vocês já viram essa cena: a jovem que sai para o mundo, para estudar, para trabalhar, adquire outros hábitos, retornando à sua comunidade como alguém completamente modificada. O que piorará com o combustível - quase literal - do fundamentalismo religioso, e sua sanha punitivista, de limpeza social e moral, mais ainda contra as mulheres. E, muitas vezes, perpetrada com o apoio de outras mulheres, especialmente quando a lavagem cerebral avança para outros campos, como o da legislação sobre o corpo alheio. "É muito risível: essas pessoas se arvorando em determinar o que os outros são, esses nomes de igrejas que estão no livro: igreja Automotiva ou do Perfume de Jesus são nomes reais de congregações", salienta a autora na entrevista, evidenciando a hipocrisia. Na trama de Michelini outras tragédias se cruzam, outras mulheres sofrem, como no caso da perita narradora, que testemunha a brutalidade se convertendo em uma inesperada algoz que contribui para a perpetuação do suplício. É um livro forte, poderoso, às vezes até difícil em sua prosa atmosférica, bucólica. Mas é imperdível.

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Livro do Mês - O Filho de Mil Homens (Valter Hugo Mãe)

"A Matilde, talvez por criar viúva o seu único filho, enojava-se do mesmo jeito mas agia diferente. Não teria coragem para desfazer um filho, o único filho, que tanto trabalho e sonho lhe dera. Se, pelo menos, o pudesse mandar embora, mesmo que não tivesse mais familiares, nem muito para onde ir. Ficariam sozinhos um do outro. A Matilde queria acreditar que, mandando embora, o filho poderia resolver o problema, como se longe dali não florisse, não gesticulasse, não subisse um tom nas sílabas mais bonitas das palavras quando falava a rir, talvez longe dali não fosse maricas. Talvez porque ela também tivesse culpa. Era culpada duas vezes, uma de ter o feito assim, outra de não encontrar solução e competir-lhe tanto encontrar solução. Respondia à vizinha que o Antonino era só um miúdo, e nem gostaria de rapazes porque ainda sequer tinha idade pra gostar de raparigas."

Quando a gente lê o trecho acima do livro O Filho de Mil Homens, do português Valter Hugo Mãe, a gente vai se dando conta que a obra é apenas nas aparências, e de acordo com a sua orelha, uma narrativa sobre um sujeito à beira de completar 40 anos, que deseja ardorosamente ter um filho. Sim, o pescador Crisóstomo quer aplacar a solidão vivenciada em sua casa isolada na beira da praia - indo encontrar no adolescente Camilo, um órfão de uma anã, a oportunidade de preencher a sua metade vazia. Mas quando outros personagens - marginalizados, minoritários, vulneráveis - vão se juntando àquela família meio improvisada, de almas tão excêntricas quanto generosas, percebemos que este é um livro sobre os excluídos sociais, os invisíveis, e a sua eterna busca por um lugar no mundo. Ao cabo essa é uma obra sensível e lírica pela capacidade de fazer emergir a esperança, a partir do amor.

Antonino, o "homem maricas", é renegado pela própria mãe. Crescendo num ambiente de preconceito e de intolerância, especialmente por ser um sujeito que não tem vergonha de expressar seus sentimentos, é tratado pelos demais como uma espécie de aberração. Um esquisito que quebra a ordem lógica dos homens de bem e a sua eterna busca pela heteronormatividade como padrão. Na ideia de se sentir menos odiado pelo entorno, improvisa um casamento com uma mulher enjeitada de nome Isaura - uma jovem magricela, esquálida. Incapaz de cumprir com suas obrigações matrimoniais na noite de núpcias, Antonino simplesmente foge. Isaura fica arrasada - com a sensação de dor sendo ampliada pela iminente morte de sua severa mãe, Maria. Meio sem rumo, Isaura vai parar no mesmo vilarejo litorâneo que abriga a casa de Crisóstomo, se juntando a este e a Camilo.

Só que, entristecido, o próprio Antonino se unirá ao trio, encontrando amparo naquele coletivo inusitado, na família escolhida. Camilo acha Antonino estranho mas vai aprendendo a conviver com ele, a respeitá-lo. Afinal, ninguém nasce querendo odiar. São coisas que se aprendem. Em casa. Nas frestas que fazem emergir discriminações travestidas de moralismo barato. E como se já não bastassem todos esse desencontros - que viram encontros -, há ainda a curiosa história de Rosinha, caseira de dona Matilde, que, de forma paralela se casa com o fazendeiro Gemúndio, que lhe promete mundos e fundos. Só que a coisa desanda quando, num jantar de celebração à união, Rosinha morre após comer um pedaço de carne de uma galinha gigante, supostamente mágica. O que faz com que sua filha Emília, assim como Matilde, também se junte ao grupo de Crisóstomo. Como resumiria o ensaísta argentino Alberto Manguel, cada personagem aqui "é símbolo de libertação e triunfo pessoal, que demonstra as infinitas possibilidades da alma e da imaginação humanas". Foi minha terceira obra de Mãe, lida. Tão boa quanto as anteriores.

segunda-feira, 31 de julho de 2023

Livro do Mês - Solitária (Eliana Alves Cruz)

Quartinho da empregada. Esse tipo de espaço que alude a um Brasil pós-abolicionismo e que funcionou por muito tempo como um cômodo reservado aos trabalhadores domésticos - em muitos casos posicionado em um ambiente apartado da "casa grande" ou dos locais de circulação da família - é um dos principais cenários do ótimo Solitária, obra mais recente da escritora Eliana Alves Cruz. Ainda assim, por mais que o título sugira, este é um livro que narra, à sua maneira, uma história de libertação. De luta para se livrar dos grilhões em um País que ainda parece experimentar um orgulho mesquinho relacionado à classe social. A senzala atual, afinal, é simbolizada por aquele cômodo pequeno, precário, naturalmente distante, isolado. É nesse cubículo mal iluminado, sem janelas, que vivem Eunice e sua filha, Mabel.

Essa "solitária" improvisada dá na cozinha, junto à lavanderia do apartamento gigante de dona Lúcia, a patroa que, ao lado do marido Tiago, tenta conferir certo ar de normalidade àquela rotina de segregação. Em um microcosmo em que Eunice atua numa espécie de invisibilidade constante - lavando, passando, cuidando da filha da patroa em uma rotina excruciante e permanente -, o que se tem nesse condomínio é a metáfora arquitetônica perfeita de um Brasil de retrocessos. No entorno de Eunice, uma série de outros serviçais fazem o conjunto funcionar à contento das elites - do carismático e abnegado porteiro Jurandir, passando pela auxiliar de enfermagem dona Hilda, até chegar ao eletricista Marcolino, todos ali coabitam em um universo de distinções em que tecem suas redes de sociabilidade, com os empregados preservando a solidariedade e o apoio coletivo como forma de não sucumbir a esse controle.



Só que esse tecido tão bem estruturado - ao menos nas aparências - começará a ruir quando um crime horrendo ocorre: a morte de uma criança que, de forma inexplicável, cai de um dos andares mais altos. Um lapso cotidiano, que poderia passar batido? Talvez, se não fosse o fato de que o caso ocorre justamente no apartamento de dona Eunice. Entrelaçando histórias, Eliana separa o livro em dois longos capítulos, que são narrados de acordo com as percepções e memórias de Eunice e de Mabel, com cada uma das histórias, ainda que parecidas, sendo percebidas de maneira distinta. "Mãe, a senhora precisa se libertar dessas pessoas", implora a filha que, já na fase adulta, adquirirá uma consciência que extrapolará os limites do condomínio de luxo. Como estudante cotista que pôde chegar a um curso de Medicina, Mabel será o balizador para a quebra dessa estrutura tão enraizada do racismo sistemático.

Com uma prosa ágil, intensa, fluída e assertiva, a autora nos convida a uma série de reflexões sobre esses contrastes ainda vivos em um País que mal recolhe os cacos de um governo de extrema direita. Olhando com resignação para o passado, Eunice é a força em combustão que ensinará Mabel e não se dobrar para esse sistema. O que fará com que a jovem compreenda a lição e olhe com audácia para o futuro o que, num movimento inverso, também poderá mobilizar a própria mãe. Com perspicácia, Eliana entrelaça as histórias para revolver o imaginário do trabalho doméstico no Brasil, ainda tão apegado ao seu passado escravocrata, fazendo nos lembrar o tempo todo de que há pressa: o amanhã é para ontem. Questões urgentes como a pandemia, o debate sobre ações alternativas e a luta por direitos reprodutivos acentuam o sabor contemporâneo da trama. Como diz a orelha da publicação, Solitária dá provas do quão incontornável se tornou reelaborar não apenas a história, mas as sobrevidas do Brasil colonial. "E ao fazê-lo mostra como é possível enfrentar o desafio moral e ético de abordar essas experiências de vida sem replicar gratuitamente a violência que as sustenta, nem reencarnar um pacto oculto de subalternidade. [...] Um romance de libertação".

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Livro do Mês - Salvar o Fogo (Itamar Vieira Júnior)

A cada novo livro de Itamar Vieira Júnior uma ideia parece cada vez mais consolidada: a de que seus trabalhos buscam dar voz às minorias, aos vulneráveis sociais, aos marginalizados. Aqui não temos mulheres de classe média em seus dilemas suburbanos ou homens de meia idade em crise existencial - um tipo de literatura que alcançaria talvez sem muita dificuldade uma boa comunidade de leitores. Ao contrário, agindo quase como um Guimarães Rosa da nova geração - guardadas todas as proporções, naturalmente -, o autor baiano aposta no microcosmo que parte de narrativas familiares para uma análise do todo. O texto aqui é o do chão batido, da natureza em simbiose com o homem, dos conflitos territoriais, das instituições poderosas - seja o Estado ou a Igreja - que tentam silenciar o gritos dos excluídos. Das tradições, do folclore, da religião. Da luta. Da política. Do corpo. Foi assim com o elogiadíssimo Torto Arado - nosso livro favorito de 2020. É assim com o recém chegado Salvar o Fogo.

Publicado pela Todavia, Salvar o Fogo é mais uma daquelas tramas de Brasil profundo. Que abraça com carinho a odisseia diária daqueles que não se sentem representados - ainda que isso signifique expor as suas vísceras. O seu íntimo. Em entrevistas de divulgação, o escritor lembrou que os invisibilizados, ao cabo, estão no entorno, no cotidiano. "E estão ’em silêncio’ o tempo todo, nos lugares onde a gente transita. Quem está dirigindo os ônibus? Quem está fazendo aquele trabalho cotidiano de limpeza, muitas vezes, de forma quase mecânica? As pessoas passam por elas e nem as cumprimentam", comentou, salientando ainda que todo mundo tem bagagem, tem história. Em muitos casos ricas histórias. "Se a gente observar as suas vidas, vai descobrir um mundo interior rico, imenso", afirmou ao site Culturadoria. Romper o muro do silêncio e fazer reverberar vozes. Esse parece ser o foco da sua literatura sinuosa, poética, envolvente.



A narrativa caleidoscópica, de idas e vindas e de voltas ao passado - que parecem sempre assombrar o presente - conta com quatro capítulos, com os três primeiros destacando os irmãos Moisés, Luzia e Mariinha, com o último aglutinando todos os pontos a partir de um trágico evento: a morte de seu Mundinho, o patriarca. Numerosa, a família conta com outros irmãos - Joaquim, Zazau, Raimundo. Todos eles já saíram da localidade conhecida como Tapera, pra tentar a vida fora. Invariavelmente todos passam por dificuldades. Não é diferente por exemplo com Luzia, que é motivo de chacota na comunidade por possuir uma corcunda - uma deficiência que é tida como maldita pelos habitantes do local. Sua tragédia se completa quando ela é estuprada e tem um filho que é resultado desse ato de violência. Esse menino irá parar na Igreja, como uma espécie de coroinha - sua mãe é lavadeira no local. 

Tudo vai mais ou menos aos trancos e barrancos dentro desse cenário, até o jovem presenciar um caso de pedofilia envolvendo o abade do mosteiro. O que faz com que ele simplesmente fuja dali e passe também a tentar a vida na cidade.  Ao cabo, trata-se de uma literatura que se vale do mundano ainda que tenha suas complexidades. E que vai se revelando sem pressa para o leitor. A presença de outros personagens, de figuras relevantes - sejam elas vizinhas, uma bisavó, professores, prostitutas e até cobradores de impostos - ajudarão a compreender ou mesmo verbalizar angústias, anseios, sofrimentos, sonhos. A vida é dura, é árdua, mas todos ali parecem estar em busca de algo. De uma vida melhor. De um futuro. De um romance. De trabalho. De terra pra plantar. O fogo se espalha e funciona como metáfora para uma existência que queima - e não é à toa que ele é o catalisador de tragédias. Mas também esse fogaréu parece ecoar a libertação. A reimaginação. De gestos e gritos sufocados. É um livro imperdível.

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Livro do Mês - Kafka à Beira-Mar (Haruki Murakami)

Editora Alfaguara. Tradução Leiko Gotoda. 2002, 578 páginas.

Depois de Norwegian Wood, Kafka à Beira-Mar foi a minha segunda experiência de leitura com Haruki Murakami. Resumidamente é um livro muito bom, que tem uma boa dinâmica - até por ocorrer em duas linhas temporais distintas, o que minimiza a exaustão - ainda que exija um pouco mais do leitor, especialmente por conta das suas voluptuosas 578 páginas. Digamos que talvez não seria a obra que eu recomendaria pra quem está querendo adentrar no universo do escritor japonês. A menos que você já esteja acostumado com os "calhamaços". Assim como Norwegian é um livro fluído, mas talvez mais adulto. Ainda que, aqui e ali, aposte no realismo mágico, na fantasia, no subconsciente e no universo onírico em sua composição. "Uma viagem fabulosa através da identidade, da mitologia, da filosofia e dos sonhos", como resumiria o Boston Globe em sua resenha.

A trama, como já dito, envolve dois enredos distintos inter-relacionados que, inevitavelmente se cruzarão. Em capítulos alternados, conhecemos a história do jovem Kafka, um adolescente de 15 anos que, para tentar fugir de uma maldição familiar edipiana foge de casa meio que sem rumo, com o objetivo de tentar encontrar a mãe e a irmã. Em sua jornada, encontrará abrigo em uma suntuosa biblioteca particular na tranquila cidade de Takamatsu - espaço que é dirigido pela enigmática bibliotecária senhorita Saeki (mulher elegante, de modos discretos). No local, Kafka fará amizade com a esperta Oshima enquanto desvendará, paulatinamente, segredos que envolvem seu passado. Na outra linha temporal acompanharemos a história de Satoru Nakata, um homem idoso que, após passar por um trauma na infância, adquire excêntricos poderes sobrenaturais.


Um desses poderes envolve a capacidade de conversar com gatos. Habilidade que foi adquirida após Nakata acordar de um coma que envolve um estranho incidente ocorrido em uma floresta na província de Yamanashi, onde várias crianças teriam desmaiado sem muita explicação. Após o episódio, o homem acordou sem nenhuma memória e sendo incapaz de ler e escrever. As limitações o levaram a um trabalho como auxiliar de marcenaria. E em meio período como localizador de gatos perdidos. Situação que lhe conduzirá, em certa altura da trama à residência de um certo Johnny Walker (sim, na história são muitos os trocadilhos com nomes conhecidos e figuras da cultura geral), famoso por assassinar gatos. Nakata acaba matando Walker, o que lhe fará pegar a estrada pela primeira vez na vida, fazendo uma inesperada amizade com um generoso caminhoneiro de nome Hoshino. O destino da dupla depois de tantas andanças? A mesma Takamatsu, onde Kafka está morando de forma improvisada.

A narrativa cheia de situações inusitadas envolve de chuva de sanguessugas, passando por floresta "encantada", até a capacidade de ver o passado a partir de um quadro na biblioteca. É uma trama engenhosa que mescla referências do mundo pop com tragédias gregas, numa odisseia que aborda temas diversos como, luto, memória, destino e até mesmo o poder das artes (especialmente da música na comunicação) - e não é por acaso que uma sonata de Beethoven é utilizada como metáfora redentora para a vida daqueles que acompanhamos. Metafísico, o livro também aborda a natureza e a nossa relação com ela, sendo comoventes as descrições de Kafka de sua existência solitária e elegíaca em uma espécie de chalé, que é emprestado por Oshima quando o jovem passa a ser suspeito de um assassinato. Drama, mistério, romance torto, tudo com certo senso de humor, a obra nos leva ao limite entre o material e o abstrato, entre o mundano e o filosófico. Parece ser um mergulho em muitos temas que envolvem a obra de Murakami. O que não é pouco.

sexta-feira, 17 de março de 2023

Livro do Mês - Gosma Rosa (Fernanda Trías)

Devo confessar que, enquanto lia Gosma Rosa, da uruguaia Fernanda Trías, só conseguia pensar no quanto o livro havia sido certeiro como alegoria para um mundo que precisa lidar com o rescaldo de uma pandemia. Afinal, todos os elementos estavam lá - da névoa avermelhada que simboliza o perigo, dos infectados que precisam permanecer em quarentena, da sensação de isolamento mesmo em uma grande cidade. Do abandono de qualquer esperança. Da necessidade de se apegar a qualquer fiapo de afeto para que não percamos a nossa humanidade. Ou mesmo a empatia. A romancista, ao cabo, havia lido a tragédia da covid-19 como uma metáfora perfeita dos nossos tempos. Mas aí eu resolvi pesquisar um pouco mais e descobri que a obra havia sigo gestada antes do surto da doença. Aliás, quando a Organização Mundial da Saúde decretou oficialmente a pandemia, Trías já comemorava três meses de seu celebrado lançamento.

Ainda é incerto inferir que a vida imitando a arte (ou o contrário) tenha dado um gás a mais para que a publicação alcançasse um público maior. Mesmo assim ela tem tido mais visibilidade, com direito a premiações internacionais e até entrada em listas de prestígio como a de 10 Melhores Livros de 2020 do New York Times. Lançada por aqui pela editora Moinhos, a obra tem chamado a atenção como uma novela que fica no meio do caminho entre uma distopia clássica à moda de 1984 ou Fahrenheit 451 e um romance catástrofe no estilo dos de J.G. Ballard. "Com uma arquitetura sutil de camadas e mecanismos, e sempre intensa e evocativa, a publicação atravessa os gêneros (ciência, ficção, distopia, ecocatástrofe) e se instala em um território único, à borda do horror, mas sem se submergir desse abismo: um espaço desolador, mas não livre de esperança" resume o crítico literário Ramiro Sanchiz, na orelha do livro.



Em alguma medida é o cataclismo ambiental que conduzirá o mundo à ruína - e a forma como a autora descreve a mortandade de peixes como evento inaugural em uma praia do Sul dos Estados Unidos é tão cheia de detalhes, tão realista, quanto perturbadora. Não há muita explicação plausível pro episódio, que não seja a ação humana. No romance, é possível perceber que já é meio tarde e sobreviver nesse cenário é tentar coletar os cacos em meio a uma rotina que envolve toques de recolher governamentais (especialmente em áreas de risco) e a ausência de uma alimentação em qualidade e quantidade - a "gosma rosa", na realidade, é uma espécie de embutido gelatinoso e industrializado que é fornecido pelo Estado à população, para que esta não morra de fome. Fora o problema da infecção em si, que poderá entrar por qualquer frestinha, pelo vento, como um "redemoinho picante e ácido", que descamará a pele, gerando um mal estar generalizado como uma gripe muito forte. "Não esqueça sua máscara" lembrarão os avisos do Ministério da Saúde vindos pela TV. Ironia das ironias.

A protagonista (sem nome) se ocupa de cuidar do pequeno Mauro, um menino que parece ter algum tipo de síndrome que faz com que ele coma sem parar (inclusive objetos). Já o ex-marido Max, está em uma ala do hospital conhecida como os crônicos - daqueles sem muita solução, sem piora nem melhora, num estado meio permanente, como que aguardando algo que nunca chega. Orbitando o trio central há ainda Leonor, a irascível mãe da protagonista, uma senhora de difícil trato que torna tudo ainda mais complexo nesse dolorido universo de caos - os livros nunca lidos, as conversas incompletas ou nunca ditas. E como grande personagem há ainda a opressora cidade portuária ocupada por algas rosas e tóxicas que surgem junto ao vento vermelho, como se fossem um outro tipo de materialização da natureza à moda The Last of Us. Há um sentimento permanente de desalento, de opressão, quase uma claustrofobia permanente que evoca uma cidade (e um mundo) doente, individualista, cheio de privações - e que só poderá encontrar algum tipo de paz nas relações. "Para mim, o mais importante era explorar os laços afetivos, toda a gama cinzenta de relações humanas complexas e, ao mesmo tempo, construir um pano de fundo distópico”, resumiu a autora em entrevista ao Estado de Minas

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Livro do Mês - Aniquilar (Michel Houellebecq)

Lançado pela editora Alfaguara, Aniquilar foi a minha quarta leitura de Michel Houellebecq e devo admitir que, agora, mais experiente com o estilo do autor, já me acostumei ao fato de que as suas obras podem começar em um lugar e terminar em outro. Bem diferente - e não estamos falando apenas de geografia. O que interessa ao cabo é o painel político, social e cultural que ele costuma tecer em seus trabalhos, geralmente tomando a França - esse país tão controverso quanto democrático - como pano de fundo. Um pano de fundo que a converte de forma não tão involuntária, talvez, em um microcosmo do mundo. Democracia em ruínas, burocracia governamental, fanatismo religioso, deep web, doenças da alma e do corpo, uma espécie de aniquilação meio que generalizada de tudo. Muitos críticos têm afirmado que este é um dos trabalhos mais melancólicos do autor. Mas vamos combinar que certo niilismo, um pessimismo diante dos rumos atuais não chega a ser uma novidade. Por mais que, aqui e ali, ainda haja espaço para um ou outro respiro.

Aqui, a trama inicia como um thriller político - que enveredará para o romance doméstico em tempos de distopia (e de busca por migalhas de felicidade em meio ao caos). É em meio aos prédios acinzentados do Ministério da Economia - Houellebecq e essa predileção pela burocracia estatal pesada, que pende para a crítica por sua mera existência em si -, que Paul Raison trabalha. Seu chefe é o ministro Bruno Juge, que está cotado para ser candidato a presidente (ou a vice) para as eleições que se aproximam (o ano é 2027 e tudo leva a crer que a Era Macron está perto do fim). Entre idas e vindas em meio a cum certo vazio existencial, que é completado pelo fato de o casamento de Paul com Prudence estar estremecido, o setor de Inteligência do Governo recebe um tipo curioso de ataque virtual: um vídeo bastante realista em que Bruno surge sendo decapitado. A tensão toma conta do entorno, especialmente pela fato de outros ataques terroristas ocorrerem.


Só que o caso é que esses ataques não possuem nenhuma lógica: após o vídeo da decapitação, um barco é atacado em alto-mar e também um banco de sêmen. Inicialmente não há feridos. Mas o que pretendem os criminosos digitais? Estariam ligados a quem? A grupos ambientais? À extremistas de direita? À fundamentalistas religiosos? Enquanto o serviço de inteligência trabalha para detectar a origem dessa milícia que opera de forma reomta, Paul se ocupa na campanha de Bruno - o que envolve ainda um excessivamente midiático e histriônico apresentador de TV que fará parte da chapa. Seu nome é Benjamin Sarfati e é simplesmente impossível não pensar nele como uma mistura de Donald Trump e Volodimir Zelensky, com algumas pitadas de Danilo Gentili (e não chega a surpreender o ex-CQC estar sendo cotado como o mais novo representante da extrema direita visando às próximas eleições, em mais um daqueles delírios protagonizados pelo MBL).

E se já não bastassem os problemas no trabalho, Paul ainda precisa lidar com uma série de problemas familiares que vão do AVC sofrido por seu pai, passando pelos problemas conjugais de seu irmão mais novo Aurelién - um restaurador de obras de arte que tem dificuldade de lidar com sua peculiar esposa Indy -, até chegar à sua irmã Cécille, que parece ter uma resposta pra tudo na religião (o que tornará o protagonista ainda mais impaciente). É muita coisa acontecendo, muita coisa pra lidar. O mundo urge, em meio ao turbilhão tecnológico, à descrença na ciência, a incerteza diante de tudo e Houellebecq costura tudo com sua verve cínica mas poética, iconoclasta, mas sensível. É tudo meio imprevisível. Aliás, como a própria vida - o que é comprovado pelos acontecimentos do último ato, que se inscrevem entre os mais tristes já elaborados pelo autor. Houelebecq ainda é jovem, tem 66 anos. Mas chegou naquela altura da vida que a curva parece não ter mais volta. Restando a tentativa de buscar a redenção por meio do amor, em um mundo que parece à beira do caos.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Livro do Mês - Diorama (Carol Bensimon)

Em junho de 1988 eu tinha apenas sete anos, mas lembro de forma muito nítida das chamadas do Correio do Povo em letras garrafais, que atualizavam o leitor sobre o famigerado Caso Daudt. Eu ainda era criança para ter a real dimensão os desdobramentos do crime que pararia o Estado - no caso o assassinato do deputado José Antônio Daudt, em circunstâncias jamais esclarecidas. Mas tenho essa recordação. De que era algo sério, impactante. E que permaneceria na memória dos gaúchos - como se fosse um diorama entre o nítido e o abstrato, a recriar aquele acontecimento ocorrido bairro Moinhos de Vento. Em que dois tiros de espingarda foram ouvidos. Aliás, Diorama é também o título do quarto livro da escritora gaúcha Carol Bensimon - e meu primeiro contato com a obra da autora. Por sinal, a representação artística tridimensional, bastante realista, que recria cenas cotidianas para fins de exposição ou entretenimento é a metáfora mais que perfeita para o caso nunca solucionado. Mas que parece assombrar as famílias envolvidas.

Morando há muito tempo nos Estados Unidos, a protagonista do romance, Cecília Matzembacher, é uma taxidermista que trabalha em um museu de história natural restaurando animais. É um ofício meticuloso, minucioso que visa a preservar a memória de espécies diversas a partir da reformulação de seus ecossistemas. Em resumo, trata-se de extrair a pele para reconstruir animais mortos - o que antigamente também se conhecia pelo pelo verbo "empalhar". Em meio a rotina de trabalho ao lado do colega Greg - com quem divaga sobre a vida, cotidiano e amores (a relação de Cecília com o músico Jesse está em crise), ela recebe uma ligação vinda diretamente de Porto Alegre: após um AVC, Raul Matzenbacher, o pai de Cecília está mal de saúde. Só que retornar para a capital gaúcha será revisitar memórias de infância que, 30 anos depois, pareçam presas a um passado distante. Ainda que, como já dito, sigam ainda vivas. Mais ou menos como as corças ou lobos que protagonizam os cenários vibrantes construídos construídos com esmero por Cecília.

Ocorre que, anos atrás, Raul foi acusado de assassinar o deputado e seu colega de bancada no PMDB, José Carlos Satti. Cecília na época tinha nove anos e pouco compreendia daquilo que ocorria no seu entorno - fossem as animadas caçadas no meio do mato no interior de São Gabriel ou mesmo a rotina de convivência com os irmãos Vinícius e Marco, com quem passava os dias entre audições de Echo and the Bunnymen, Depeche Mode e The Cure. Rememorar esse cenário que culminaria no Caso Satti (a adaptação do Caso Daudt) é reencontrar um núcleo familiar esfacelado, que é completado pela mãe Carmen, uma dondoca porto-alegrense que, nos dias de hoje, se orgulha de defender políticos de extrema direita em uma luta abstrata contra o comunismo. Aliás, Carmen pode ser a chave para a motivação do crime, já que, encorajado pelo ciúme - não apenas da mulher, mas dos ideias políticos progressistas e oxigenados de Satti - Raul pode ter se sentido impelido à violência extrema. Ou não?

Repleto de ambiguidades e de idas e vindas, Bensimon constroi seu livro com uma prosa saborosa que discute, nas entrelinhas, temas como o homossexualismo em uma região conservadora, a preservação da camada de ozônio (uma novidade nos agora distantes anos 80) e mesmo a espetacularização de casos de violência. Em uma rima direta com os dioramas em si - e a possibilidade de permitir uma viagem nostálgica a partir desse tipo de montagem -, a autora refaz acontecimentos do passado, juntando uma e outra peça, na tentativa de esclarecer o real envolvimento de seu pai no crime. Uma tarefa complexa que envolve uma família disfuncional e um crime que se entrelaça com o universo dos amimais empalhados. "Em Diorama, os Matzenbacher são um retrato [...] dos valores tortos de 'defesa da família' tentando justificar um ato de violência. Ao fim e ao cabo, ficará evidente que o mal que a família causa é muito maior do aquele que supostamente está do lado de fora", comentou a escritora em entrevista ao Estado de Minas, explicando como esse tipo de violência encontra eco na atualidade. 

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Livro do Mês - O Negociante de Inícios de Romance (Matéi Visniec)

"Ele era um velho que pescava sozinho num esquife na Corrente do Golfo e saíra havia já oitenta e quatro dias sem apanhar um peixe". A primeira frase de o Velho e o Mar, clássico de Ernest Hemingway, é daquelas que faz com que o leitor sequer saiba onde exatamente está a gravidade da situação. "No fato de o personagem estar sozinho? Ou no de ser velho? Ou de pescar numa zona por onde passa a famosa Corrente do Golfo, conhecida por seus redemoinhos? Ou ainda, no fato de não apanhar peixe já há quase três meses?" É por meio de um conjunto de divagações bem humoradas como estas, que Matéi Visniec converte o divertidamente cínico O Negociante de Inícios de Romance em uma experiência caleidoscópica sobre contemporaneidade, indústria cultural e sociedade de consumo, apresentando a urgência da busca pelos "eternos começos" em uma metáfora absurdamente mundana a respeito de fuga de responsabilidades, superficialidade da vida e completa evasão de profundidade de pensamentos.

Pode parecer um papo chato em um primeiro momento, mas o romance do autor romeno é, um dos mais curiosos, excêntricos, cômicos e metalinguísticos livros que já li. Ainda na apresentação de sua obra, Visniéc indaga: "por quê, afinal, parecemos estar com o botão de fast forward cada vez mais pressionado nos dias de hoje?" A sensação geral é a de que a população tem filhos, mas já não tem paciência pra criá-los. Compra coisas das quais logo se enfastia. Provoca revoluções, mas não tem energia para construir sociedades justas e duradouras que avancem para além das emoções iniciais. Presos nesse senso de necessidade de consumir tudo quanto é coisa ao mesmo tempo, ficamos mais ou menos como o sujeito que desenvolve a Síndrome do FOMO (do inglês Fear of Missing Out), patologia que envolve o receio de ficar de fora do universo tecnológico ou de se sentir incapaz de se desenvolver no mesmo ritmo destas. Quem nunca ficou com a impressão de que estava ficando pra trás, afinal?



Cruzando questões relativas à pós-modernidade que se conecta à literatura como veículo de enfrentamento ao totalitarismo, o escritor nos conduz por um universo onírico - meio de sonho, meio de realismo fantástico - onde um aspirante a escritor conhece um sujeito misterioso que se apresenta como agente de uma empresa responsável pela criação de frases de abertura de romances universais de Albert Camus, Franz Kafka, H.G. Wells, Hermann Melville e Thomas Mann, entre outros. Percorrendo as ruas de Paris - e suas passagens estreitas que levam à cafés, restaurantes, galerias de arte, antiquários e outros -, o protagonista alcançará a livraria Verdeau, que será o ponto de encontro para a troca de uma série de correspondências com o enigmático Guy Courtois, que mantém a promessa de lhe entregar, a qualquer momento, a sentença de abertura que poderá transformar a sua ainda discreta existência como romancista. Conferindo-lhe mais credibilidade, potencialidade. Algo que gere a adrenalina da excitação inicial.

Em meio a esses diálogos abusadamente caóticos e engraçados e a promessa de glória futura, uma espécie de revolução literária se põe em marcha, com a criação de uma tecnologia que parece ser capaz de traduzir sentimentos em palavras. Seria o fim da figura do escritor? Das reflexões genuínas sobre vida, morte e além, que seriam paulatinamente substituídas pela mera banalidade cotidiana? Em trechos de poemas nunca concluídos e de um romance dentro de um romance - sobre um sujeito que se depara com o desaparecimento de todas as pessoas do planeta, o que lhe obrigará a construir uma nova vida pra si  -, o livro funciona como uma alegoria sobre passagem do tempo, burocracias e alienação. Sendo provocativo na medida exata na hora de apresentar a frenética e moderna cultura da diversão como uma chaga de nosso tempo, o romance satiriza a hipocrisia do ideal do sonho americano (que é vivido pelo irmão mais velho do narrador), ao passo em que discute o absurdo de a Romênia jamais ter ganho uma edição que fosse do Prêmio Nobel de Literatura. Muita coisa acontece nesse livro que é uma joia da versatilidade, da graça e da erudição, sendo capaz de divagar de forma assombrosa sobre essa nova droga social da contemporaneidade: a da dependência da ilusão sedutora dos inícios. Incrível é pouco.

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Livro do Mês - A Metade Fantasma (Alan Pauls)

Savoy, o protagonista de A Metade Fantasma, novo romance do argentino Alan Pauls, possui um hábito excêntrico: visitar casas e apartamentos para alugar pelo simples prazer de adentrar o espaço alheio. A intenção não é de, efetivamente, fechar algum negócio: ao conhecer corretores e negociar encontros, esse cinquentão anacrônico que sequer possui um aparelho celular decente, funciona como um intruso fugaz da vida dos outros, enquanto contempla a singularidade dos moradores da capital Buenos Aires. O caos dos objetos, as quinquilharias que se amontoam, os odores esquisitos, as manchas nas paredes, o componente febril das relações, a intimidade devassada, enfim, qualquer coisa que possa contribuir para que ele desvende, nem que seja em partes, algo da existência daqueles que visita, oferece um fiapo de voyeurismo que, vá lá, não durará mais do que vinte minutos - mas que atenderá essa curiosa necessidade de sua vidinha tão errática quanto ordinária.

Em meio a entradas aleatórias no chatroulette e às perdas de tempo sucessivas em sites de compras de objetos meio inúteis - que ele amontoa em um canto da casa e que serão a desculpa perfeita para parte dessas visitas à terceiros (os lugares habitados, afinal, parecem ainda mais curiosos, mais interessantes, menos previsíveis) - ele conhecerá Carla, uma mulher mais jovem que, se comparada a Savoy, parece saída de outra dimensão. Carla é o completo oposto: conectada, tecnológica, participante ativa de uma geração em que a internet move a vida, as relações, os hábitos e os comportamentos. Trabalhando como house sitter - que é a pessoa que cuida das casas, dos animais, das plantas e da organização dos ambiente enquanto os demandantes viajam -, a jovem é a Geração Z desenhada. Não cria laços. Não estabelece vínculos afetivos intensos. Suas "raízes" são o mundo, que é o local a que ela pertence. Assim como ela está em Buenos Aires nessa semana, pode estar em Paris semana que vem. Em Tóquio na outra.



Só que um romance um tanto fugaz com a jovem servirá para bagunçar a vidinha mundana de Savoy. Sumindo de sua vida sem muita explicação, Carla lhe deixa apenas uma touca e um óculos de natação - o exercício o ajuda a extravasar, ao menos em partes, os seus impulsos - e o seu contato para que ele possa se conectar a ela via skype. O que ela fará na medida do possível, em horários marcados, entre uma viagem e outra (mas desde que o jet lag não atrapalhe). Para Savoy essa relação cibernética, pixelada, em meio a conexões difíceis, delays insuportáveis, mensagens fragmentadas e instabilidades na transmissão serão apenas angustiantes, sufocantes. Como, afinal, substituir o calor da presença amorosa, do abraço aconchegante, do acolhimento que é condição básica de um relacionamento, pela necessidade da virtualidade na hora de sustentar uma história de amor? É possível superar as diferenças geracionais e a paixão mediada pelas máquinas?

Com uma narrativa vigorosa, repleta de frases longas, separadas por vírgulas, em sentenças intermináveis, Pauls parece brincar, inclusive com os limites da linguagem digital, formando uma leitura hipertextual de idas e vindas, de fluxos de consciência e de ideias encadeadas com um ordenamento tão poético quanto eloquente. Intercalando instantes mais divertidos, com um senso de humor debochado e nonsense - a parte em que o protagonista detalha situações cotidianas do ambiente da piscina ("o ódio que lhe dava, ao sair do banho, que a regata lhe opusesse resistência, que os pés lutassem com as pernas da calça, que as meias nunca calçassem por completo") é ótima -, com outros mais melancólicos e sufocantes, como naqueles em que ele vai se deparando com a raiva que emerge pela displicência de Carla, tornam a leitura do livro uma experiência moderna, que discute relações na contemporaneidade e mesmo imaterialidade da existência no Século 21 de forma inteligente, hipnótica e imprescindível. Talvez a melhor leitura do ano. E uma das melhores da vida.

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Livro do Mês - A Velocidade da Luz (Javier Cercas)

O passado que reverbera no presente. As escolhas de vida nem sempre acertadas. Objetivos, sonhos, decisões e frustrações. Arrependimentos espalhados, trajetórias dentro daquilo que é possível. Tudo aquilo que, afinal, parece dotar a nossa realidade de sentido - ou mesmo de beleza, mesmo quando na dor -, é possível encontrar nesse maravilhoso A Velocidade da Luz, o meu primeiro contato com a obra do espanhol Javier Cercas. Sem medo de errar a obra da editora Biblioteca Azul é não apenas uma das melhores leituras do ano, mas como já vai diretamente praquele seleto grupo dos "da vida". Porque, ao cabo, é incrível como o autor pega uma coleção de temas aparentemente simples, que envolvem desde um autor recém aclamado em busca de uma nova história pra contar, passando pelos traumas de guerra e sobre como eles alterarão para sempre o futuro dos envolvidos, até chegar aos dramas domésticos nunca solucionados - tudo com uma fluidez desconcertante.

O livro é narrado por um protagonista que jamais diz o seu nome e que, quase como num desses acasos da vida, sai de Barcelona no começo dos anos 80, indo parar em Urbana - uma daquelas cidadezinhas tipicamente provincianas dos Estados Unidos. Desempregado, pobre, vivendo de bicos e com uma formação meio inútil ligada à área de Publicidade, o narrador recebe a dica de um professor universitário chamado Marcelo Cuartero: a Universidade de Illinois estava com vagas abertas para professor de espanhol. Como aspirante a escritor o sujeito é movido pelo desafio: e na Terra do Tio Sam conhecerá um certo Rodney Falk, seu companheiro de sala - um corpulento veterano da Guerra do Vietnã. Sujeito meio desengonçado, atarracado, que usa um tapa olho, Falk é uma figura taciturna, excêntrica, de poucos amigos. Daqueles que preferem o isolamento do que o convívio social. E que, claramente, guardam uma série de segredos por baixo da "casca".



E será justamente da convivência com Rodney que emergirá uma curiosa amizade, regada a muitas conversas sobre literatura - o ex combatente é fascinado por Ernest Hemingway -, que avançarão para pequenas trocas de confidências e até mesmo para avançados debates sobre o livro que o narrador, aos poucos, começa a dar forma. Tudo corre bem até o final das férias, quando Falk simplesmente desaparece do mapa. Sem deixar muitos vestígios. Com poucas informações sobre o novo amigo - na Faculdade o desinteresse por ele é meio generalizado - o protagonista descobrirá a residência do pai do desaparecido. Que o convidará para contar a sua história, que é recheada por ocorrências que marcariam a vida do veterano de guerra para sempre. A guerra afinal, pode até ficar para trás. Mas a memória dela, de seus horrores e de seu absurdo permanece.

Cercas costura essa narrativa entregando uma prosa riquíssima, poética e que vai recompensando o leitor com pequenas surpresas que, aqui e ali, formarão uma verdadeira colcha de retalhos a respeito da ruína do ideal de força que evoca dos conflitos bélicos, ao passo em que avança para a completa deterioração do sonho americano. "Existem duas tragédias na vida: uma é não conseguir o que se quer. A outra é conseguir". A frase de Oscar Wilde parece ser fundamental para todos os envolvidos ali, que veem seus desejos esfacelados - mesmo diante daquilo que poderia ser considerada uma vitória. O narrador sonha em ser um escritor de sucesso, Rodney deseja sepultar as lembranças trágicas do conflito, o pai de Rodney gostaria de não ter forçado a barra com seus dois filhos - especialmente com Bob, o irmão mais velho de Rodney. Talvez se o protagonista tivesse agido diferente com a sua esposa Paula e com seu filho Gabriel. De repente tudo ocorreria de forma diferente, por outros percursos, outros caminhos. Ou talvez assim não houvesse essa verdadeira obra-prima moderna, que fala de muitas coisas ao mesmo tempo, sem deixar de ser, ainda, um grande elogio ao poder da escrita. Inclusive como forma de exorcizar demônios. Vale a leitura. O quanto antes.

terça-feira, 31 de maio de 2022

Livro do Mês - Véspera (Carla Madeira)

Vamos combinar: existem escritores que possuem uma capacidade única de se conectar com os leitores e, a meu ver, esse é justamente o caso da mineira Carla Madeira. Lançado pela Record, Véspera foi o minha segunda leitura da autora - a primeira foi o impressionante Tudo É Rio, que narra a inesquecível história do "triângulo amoroso" formado por Dalva, Lucy e Venâncio. E, sério, ambos os livros são difíceis de largar, no melhor sentido da palavra. Com personagens cheios de ambiguidades que, em muitos casos, tomam atitudes extremas (e até eticamente questionáveis), cada obra mergulha em um universo bastante particular, em que temas como masculinidade tóxica, opressão sexual, hipocrisia e violências cotidianas chegam no formato de torrentes - caudalosas, vigorosas, imprevisíveis. Mas, nos dois casos, o cenário geral dos protagonistas não se modifica, com a presença de mulheres fortes em meio a uma sociedade patriarcal.

Ainda assim não se trata de mero panfletarismo, já que autora se apoia em sutilezas, mesmo quando as sequências parecem bastante visuais. Quando, no primeiro capítulo de Véspera, Vedina abandona o próprio filho Augusto, em uma calçada de uma avenida movimentada - uma decisão impensada, completamente estúpida, no calor do momento de uma discussão -, esta se se apresentará mais adiante como uma figura atormentada por uma série de frustrações, o que a condyz a essa situação limite. O seu marido Abel, irmão gêmeo de Caim e que vive à sombra desse - como se fossem espectros opostos numa carcaça igual, sendo Abel o lado mais sombrio, taciturno e Caim o mais luminoso e extrovertido -, também guarda uma série de segredos obscuros que remetem à juventude e que, em meio a tragédias familiares grandes ou pequenas, parecem sempre prontos para vir à tona.



Em linhas gerais estamos diante de uma narrativa que é costurada em dois tempos que correm paralelamente - com passado e presente se encontrando e se recombinando, como uma espécie de elipse que alude a vésperas e contemporaneidades. Em uma dessas narrativas voltamos à juventude de Caim e Abel, que são nomeados dessa forma pelo pai, o beberrão Antunes Filho, como uma forma de punir a própria esposa Custódia (e a revelia desta). Na outra linha Vedina, é a mãe que roda em círculos enquanto, completamente arrependida da decisão tomada segundos antes e que deixaria Augusto à própria sorte, se empenha em decidir o que fazer após o desaparecimento do menino. Ligar para a polícia? Admitir que ela própria abandonou seu filho pequeno em uma rua movimentada? Inventar algum tipo de história que serviria de álibi?

De alguma forma, estamos diante de uma obra sobre rejeições variadas e sobre como lidamos com elas - abandonos que podem surgir já no colégio em meio ao bullying dos colegas, na ausência de um pai pouco amoroso, na fase adulta diante da negação de interesses amorosos. Como sofremos com isso e de que forma evoluímos é o que fará com que nos tornemos quem somos - o que não impedirá que questões que estejam escondidas no inconsciente surjam de maneira inesperada. Vedina certamente não queria abandonar Augusto, assim como Caim não queria se decepcionar com Abel, numa alusão metafórica mais do que perfeita à história bíblica. No centro de tudo está o casamento problemático e marcado pela frustração entre Vedina e Abel, o que também simboliza algum tipo de abandono. Com diversas personagens secundárias interessantes - caso dos padres Tadeu e Alberto, que possuem personalidades opostas, ou mesmo Veneza, a desejada melhor amiga de Vedina -, temos aqui uma obra magnética, daquelas que reverbera por muito tempo depois, em sua irrepreensível análise sobre a condição humana.

terça-feira, 3 de maio de 2022

Livro do Mês - Herdeiras do Mar (Mary Lynn Bracht)

De: Mary Lynn Bracht. Editora Paralela, 2020, 306 páginas.

O contraste entre a beleza poética da escrita e o argumento comovente é uma das marcas do imperdível Herdeiras do Mar, meu primeiro contato com a obra de Mary Lynn Bracht. Trata-se de um livro duro, quase indigesto, mas que apresenta uma história que é, para muitas pessoas, desconhecida - no caso, sobre as jovens coreanas que, durante a Segunda Guerra Mundial, foram enviadas para regiões longínquas para servirem como "mulheres de consolo" para soldados japoneses. Sim, essa experiência repugnante é vivida por Hana, que é conduzida à região da Manchúria por Morimoto - um soldado japonês linha dura que sequestra a jovem quando ela tinha apenas 16 anos. Sob ocupação japonesa Hana é considera, em sua Coreia natal, uma cidadã de segunda classe, com pouquíssimos direitos. Ainda assim ela orgulha-se em ser uma haenyeo, como são conhecidas as mulheres que trabalham no mar como mergulhadoras marinhas - atividade tão perigosa quanto lucrativa.

Em seu ofício, realizado na Ilha de Jeju, Hana segue de perto os passos da mãe, encarando sua rotina com independência e coragem. Ela também é responsável por Emi, sua irmã sete anos mais nova - o zelo envolve jamais deixa-la sozinha, especialmente em meio às rotinas da praia. Só que em certo dia, um instante de desatenção selaria o destino de Hana que, para proteger sua irmã, praticamente se deixa capturar por Morimoto. Levada ao bordel militar, ela sofrerá as mais duras atrocidades e os mais cruéis abusos sexuais e psicológicos. O sonho de reencontrar sua família é o que a mantém, enquanto encara a seu doloroso dia a dia. Com idas e vindas no tempo, a obra se alternará entre os eventos do passado - no caso o verão de 1943 - e os do futuro, em dezembro de 2011, com Emi, agora aos 77 anos, ainda sonhando com a perspectiva de reencontrar sua irmã. Aliás, por vergonha, ela mantém o ocorrido em segredo dos filhos Hyoung e Yoonhui, o que impactará a vida de todos quando as verdades começarem a vir à tona.


Ao cabo, Herdeiras do Mar pode ser uma jornada tão exaustiva quanto recompensadora. É um livro oportuno sobre o absurdo da guerra, escrito com maestria, e que mantém o suspense até as últimas páginas. Das tentativas de fuga de Hana ao empenho de Emi na busca por informações, a jornada das irmãs é narrada em meio a devaneios febris sobre o passado, num quase flerte com o realismo mágico. Enfraquecida, exaurida, mal alimentada, Hana sofre um processo de desumanização que lhe condiciona a ser "apenas" alguém destinada a satisfazer sexualmente um grupo de boçais. Em trens em que não se sabe o destino e em bordeis, Hana fará amizade - ou algo perto disso - com outras jovens, como é o caso de Keiko. O apoio entre elas, as poucas trocas de palavras, a sororidade, o comportamento empático também contribuirão para que Hana não esmoreça. Com as esperanças sendo renovadas após ela ser enviada para a Mongólia.

Em uma das tantas belas passagens, Hana se isola em sua própria imaginação, se enxergando mergulhada nas profundezas de um oceano, evadindo-se de seu entorno. "Ela aprende a prender a respiração quando um soldado invade seu corpo, e sente como se estivesse lutando para respirar antes de emergir à superfície em busca de ar. Nunca olha os homens no rosto. É melhor nem sequer pensar neles como pessoas. Em vez disso eles são máquinas enviadas a ela ao longo do dia. Ela se concentra na promessa de que tudo vai acabar, porque sempre acaba, e então dorme. Consegue controlar sua mente e escolher o que permite que a invada." São instantes sublimes, quase delicados como este, que servem para evidenciar as contradições entre o evocativo do texto, redigido com grande sensibilidade, e o martírio da história. Uma simples vaca sofrendo em meio ao pasto pode ser uma metáfora para a dor de Hana. Que só será extirpada na marra, à força. Bracht fez um trabalho magnífico em sua estreia. Uma experiência envolvente, inquietante, aflitiva e sensorial, um verdadeiro documento histórico que evidencia a misoginia, especialmente em tempos de guerra, em meio a outros absurdos do processo de colonização.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Livro do Mês - Poeta Chileno (Alejandro Zambra)

Já dizia Pablo Neruda que "é tão difícil as pessoas razoáveis se tornarem poetas, quanto os poetas se tornarem pessoas razoáveis". Não sei dizer se Neruda estava certo, mas no universo bastante íntimo retratado por Alejandro Zambra no ótimo romance Poeta Chileno, o que temos é um verdadeiro mergulho nesse ambiente quase mitológico dos poetas chilenos. "Somos bicampeões na Copa do Mundo de poesia" afirma a certa altura da narrativa, num tom que vai no limite entre o orgulho e o deboche, um certo Pato, amigo de Vicente, um jovem recém-saído da adolescência, que sonha seguir os passos de Gabriela Mistral, Nicanor Parra, Armando Uribe, além do próprio Neruda. Aliás, Mistral e Neruda atestam a eficiência da poesia saída do País de Salvador Allende, afinal, venceram o prestigioso Prêmio Nobel de Literatura. Mas há espaço para esse tipo de leitura nos tempos atuais? Fora os clássicos, as pessoas se interessam por esse tipo de material curto, meio formulaico e excessivamente subjetivo, ainda que invariavelmente provocativo?

Zambra, ele mesmo um escritor de poesias, ensaios e outros textos brinca com o tema, ao adotar um tom realista, quase pessimista, ao lançar um olhar para um mundo excessivamente antipoético, onde o estilo parece ser celebrado apenas entre os pares, em festas em que os poetas parecem dispostos a reafirmar sua importância para si próprios. O próprio Gonzalo, um dos protagonistas, é aspirante a escritor - daqueles que sonha em produzir um material que possa ser digno à conversão em livro, que possa ir ao encontro de leitores involuntários que se interessem por esse mundo de "herois, anti-herois e até de impostores literários". De forma bastante irônica a poesia, para Gonzalo, era a "história de homens geniais e excêntricos, bons de copo e especialistas nos altos e baixos do amor". Um tipo de mitologia que, desde a juventude, o contaminava. E que viria a influenciar diretamente em sua vida, seu presente e seu futuro - especialmente em sua relação com a namorada Carla e seu pequeno filho, o já citado Vicente.

E é nesse ponto que o livro de Zambra ganha a gordura dos eventos mundanos que, não por acaso, servirão de matéria-prima para a poesia, que costura a narrativa de uma forma comovente. Da juventude ao lado de Carla - com os desejos juvenis se convertendo em verdadeiras manobras no sofá, embaixo de um poncho vermelho, enquanto a mãe da jovem circulava de forma desconfiada pelo ambiente -, até a separação, passando pelo futuro e inesperado reencontro, que resultará na mais improvável das amizades (a de Gonzalo com Vicente), as idas e vindas, medos e vontades, frustrações e anseios, sofrimentos e conquistas se mesclarão à própria história do Chile - especialmente após o fim do autoritário Governo do Ditador Augusto Pinochet. Trata-se ao cabo de uma obra que divaga permanentemente a respeito do fazer literário, sobre como poetas parecem desprezar o romance, sobre as tragédias contemporâneas, sobre o desejo de pertencimento, sobre masculinidade, paternidade e suas curvas espinhosas.

Percorrendo as mais de 400 páginas da obra editada pela Companhia das Letras, personagens secundários como Pru, uma jornalista estrangeira que está interessada em elaborar uma reportagem sobre a poesia chilena contemporânea; León, o medíocre pai verdadeiro de Vicente que atua como corretor de imóveis frustrado e Safadão, o extravagante avô de Gonzalo, conferem cor à narrativa cheia de possibilidades, de pequenos becos, de encaixes inesperados, numa reflexão que, acima de tudo, aborda o sentido de ler e escrever nos nossos dias. Repleto de citações culturais, Poeta Chileno ainda é um prato cheio para os fãs de literatura, que encontrarão na obra um verdadeiro desfile de autores, muitos deles completos desconhecidos - como aqueles vistos no magistral capítulo que se dedica as entrevistas realizadas por Pru. "Ser poeta chileno é como ser um chef peruano, um jogador de futebol brasileiro ou uma modelo venezuelana", resume alguém a uma certa altura. O que dá a dimensão da arte sobre a própria arte que propõe Zambra. Vale demais.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Livro do Mês - Hibisco Roxo (Chimamanda Ngozi Adichie)

Livro de estreia de Chimamanda Ngozi Adichie, Hibisco Roxo foi o meu primeiro contato com a obra da autora nigeriana. E, admito que fiquei impactado pelo microcosmo apresentado pela escritora que, ao mesmo tempo que propõe um mergulho lateral em um País pós-colonial militarizado, também evidencia as consequências do sincretismo religioso que coloca frente à frente as tradições mais primitivas dos povos africanos - suas crenças, seu folclore, sua cultura -, em contraste com o catolicismo branco, colonizador e, de alguma forma, opressivo. Sim, pode parecer bastante complexo, mas todos esses componentes são apresentados a partir da história de um pequeno núcleo familiar com a narradora, a adolescente Kambili Achike, sendo confrontada com uma série de eventos que ocorrem no entorno - e que envolvem outras figuras, como o pai Eugene (um empresário conservador/cristão), o padre progressista Amadi e, especialmente, a tia de Kambili, a professora universitária Ifeoma.

Com apenas 15 anos, Kambili ainda não é capaz de compreender a forma como agem os adultos - e o que os move. Educada a ferro e fogo pelo pai, um sujeito tão ortodoxo que não permite que a jovem ouça músicas que não sejam as da Igreja ou que utilizem seu (raro) tempo livre para atividades prosaicas típicas da juventude, Kambili cresce em um universo regido pelo fanatismo religioso que, não tardará, transbordará para a violência doméstica. Eugene não aceita, por exemplo, que Kambili e seu irmão Jajá visitem o avô Papa Nnukwu, já que ele acredita que o idoso poderá influenciar os jovens em suas crenças - como religioso de matriz africana. Da mesma forma, Eugene submeterá a própria esposa Beatrice a uma série de pressões psicológicas e de agressões (inclusive físicas) que, aos poucos, desintegrarão o núcleo familiar. Mas que servirão, paradoxalmente, para uma espécie de amadurecimento meio na marra da jovem protagonista.

Aliás, a respeito disso, será justamente após um evento violento na residência dos Achike, que Kambili e Jajá serão enviados para uma pequena temporada na casa da tia Ifeoma e de seus três filhos Chima, Amaka e Obiora. Lá, se depararão com um contexto em que as crianças são estimuladas para a curiosidade, para as descobertas, em uma rotina de maior liberdade, uma vez que, como professora universitária, Ifeoma surge como uma figura oxigenada, progressista e de uma leveza comovente (com uma gargalhada fácil sempre no rosto). Irmã de Eugene, ela é o seu oposto, ainda que pratiquem a mesma religião - e será esse contraponto entre o anacronismo e o contemporâneo que modificará a personalidade de Kambili para sempre, fazendo-a desabrochar, tal qual os hibiscos roxos que, metaforicamente, são descritos nas páginas. E esse sentimento de "liberdade" será ampliado quando ela conhecer o já citado jovem padre Amadi, por quem a menina se apaixonará.

Em meio a tudo isso, o avanço do Governo Militar também alterará a rotina da família, já que Eugene, além de empresário do ramo de biscoitos e de sucos, é detentor (curiosamente) de um jornal progressista de nome Standard - que não se furtará a fazer, em seus editorias, a crítica ao sistema (especialmente através da figura do editor Ade Coker). E, como não poderia deixar de ser, esse panorama também contribuirá para uma espécie de derrocada familiar - com os conflitos maiores influenciando diretamente no dia a dia dos Akiche. De escrita saborosa, vertiginosa, Hibisco Roxo é uma obra de formação que funciona como uma poética aula de história e de geopolítica da Nigéria - mas sem soar excessivamente acadêmica. E tudo isso nos apresentando uma coleção de personagens complexas, cheias de ambiguidades e nada maniqueístas. Simplesmente essencial.

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Livro do Mês - As Intermitências da Morte (José Saramago)

E se a Morte paralisasse as suas atividades? Resolvesse, de um dia para o outro, descontinuar o seu trabalho. Uma espécie de greve. Sem aviso prévio. A gadanha pendurada em um canto. O corpo esquelético em repouso. Um fato absolutamente contrário as normas da vida, daqueles de causar uma perturbação enorme nos espíritos. Um fenômeno nunca antes visto nos quarenta volumes da história universal - no caso 24 horas sem que se tivesse sucedido um falecimento que fosse por doença, por queda mortal, por suicídio. Nem um acidentezinho de trânsito - uma daquelas trágicas irresponsabilidades que povoam as estradas. Como reagiríamos a essa inesperada suspensão? Como procederíamos diante da imortalidade, convertida agora no "novo normal"? Pois é justamente isso que José Saramago imagina no fabulesco As Intermitências da Morte, obra lançada em 2005 e que funciona como uma ampla divagação sobre finitude, sobre vida e, creiam, até sobre amor.

Quando lançou o livro, Saramago já estava com 83 anos. Então não poderia haver nada mais natural do que utilizar o seu estilo virtuoso e repleto de alegorias - e de frases e de parágrafos intermináveis entrecortados por vírgulas -, para uma reflexão meio existencialista sobre a morte. Aliás, a frase de abertura da obra - "E no dia seguinte ninguém morreu" - já está inscrita entre as grandes sentenças da ficção mundial. O paradoxo, portanto, de não mais alcançar o ocaso da existência e todos os problemas implicados pelo inusitado fato - os conflitos governamentais, os dilemas institucionais, o caos visto em hospitais, casas de repouso ou agências funerárias -, forma a matéria-prima que faz com que percebamos a importância desse capítulo da nossa história. A morte, afinal, também tem sentimentos. "E, magoada com o mundo, resolve mostrar aos humanos como eles estão sendo ingratos", revela a orelha da edição lançada pela Companhia das Letras.


Porque sim, esse é o inesperado efeito de algo que apenas nos damos conta da importância quando não mais a possuímos. Mas engana-se quem pensa que o estilo é sisudo - assim como é o do melancólico Ensaio Sobre a Cegueira (que havia sido o meu único contato anterior com a obra do português que ganhou o Nobel de Literatura em 1998). Por mais macabra que seja a temática, o caos estabelecido em hospitais repletos de moribundos agonizantes e de idosos em situação decrépita que não conseguem partir "desta para uma melhor", o que acompanhamos é um relato irreverente e irônico, que nos apresenta as influências da morte em uma série de situações cotidianas - e nesse sentido, me diverti muito com o transtorno ocorrido na Igreja que, sem morte, não pode trabalhar com o conceito de "ressurreição". "E sem ressurreição não há Igreja", constata um desesperado cardeal, nos dias seguintes à inesperada greve.

Não foram poucos os autores, que utilizaram a morte - algo tão cotidiano, tão prosaico -, como matéria-prima. Ela, definitivamente está entre nós - seja em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, ou Em Crônica de Uma Morte Anunciada, de Gabriel Garcia Marques, passando por A Morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstoi. Em As Intermitências da Morte, assim como ela desaparece, ela anuncia que vai reaparecer. Por meio de uma carta lida em rede nacional, em uma emissora de TV do País, em horário nobre. E é aí que se estabelece um novo caos. O que ocorre em sua volta? Quem deveria ter morrido nesse meio tempo, como fica? Morre? Permanece? A morte, pra não alarmar ninguém, resolve enviar uma carta a cada candidato à partida. Com um aviso prévio de uma semana para o adeus, para a escritura de testamentos, para as organizações burocráticas finais. O que gera uma nova corrida desesperada diante da impotência diante da finitude. Tudo ocorrendo de forma desenfreada. Vertiginosa. Com trucagens diversas - com direito até mesmo a "quebras de quarta parede". Talvez Saramago quisesse congelar a morte por um tempo, ao perceber que ela, enfim, se aproximava. Quem ganhou foram os leitores. É um livraço!

terça-feira, 22 de junho de 2021

Livro do Mês - Solução de Dois Estados (Michel Laub)

É o Brasil polarizado na sua essência que nos é apresentado no espetacular Solução de Dois Estados, mais recente romance do gaúcho Michel Laub, que é também autor dos ótimos Diário da Queda e Tribunal da Quinta-Feira. Nas páginas do livro, o ódio que divide também as famílias é materializado na experiência antagônica que envolve os irmãos Alexandre e Raquel. Jamais estereotipados, ainda que ricamente caracterizados, os dois funcionam como uma espécie de case para uma certa Brenda Richter - documentarista alemã que centra a sua lente para os países do Terceiro Mundo, bem como para as suas mazelas, diferenças sociais, contrastes. As questões políticas e a beligerância por trás de cada manifestação de cunho ideológico também pontuam cada obra da diretora. Jamais a questão é tratada de forma aberta, mas o Brasil que "iniciou" em 2018 - aquele mesmo que odiou perdidamente o PT (e a esquerda) e alçou um genocida desqualificado ao poder -, aparece em cada página. Em cada linha. Nos detalhes de cada relato.

Sim, porque este é um livro de relatos. De recortes. De entrevistas abertas capturadas por Brenda, com Alexandre e Raquel se intercalando em capítulos, em pequenas narrativas que contam um recorte de tempo que inicia ainda no começo dos anos 90 - período do desastroso Plano Collor e do consequente impeachment daquele que dava nome a uma política financeira bizarra da época. Cada um com eu ponto de vista. Mesmo com certa estabilidade, foi nessa época que Alexandre e Raquel viram seu pai falir. Raquel, traumatizada pelo bullying que sofre desde a juventude - o que rendeu um sem fim de episódios de humilhação (ela sempre foi obesa e, aos 46 anos, pesa 130 quilos) - converte as suas frustrações em performances artísticas em que expõe o corpo, misturando ato político, sexualidade, pornografia gráfica e violência. Tudo obtido com bolsas de estudo em caríssimas faculdades de Artes européias, patrocinadas pela mãe agora viúva (e com dinheiro que talvez eles sequer tivessem).

No outro lado da história, Alexandre é o empreendedor que transforma o limão em uma limonada - pra usar um dos tantos jargões da área. Permanecendo no Brasil, apoia à sua maneira a deprimida mãe e inicia uma via crúcis no mercado de trabalho, onde salta de estagiário de uma academia de ginástica, para um dos sócios majoritários do negócio. O que obtém com muito suor, sangue e dificuldades - e com o apoio de um pastor evangélico que atua na periferia, organiza um esquema de pirâmide financeira e, aparentemente, pode ter algum vínculo com as milícias. Não é preciso ser nenhum adivinho para reconhecer, de um lado, o conservadorismo raiz - que mistura apelo religioso com superação de dificuldades, capaz de utilizar a urna eletrônica com a arma em punho, enquanto divaga sobre sonhos meritocráticos - e, de outro, a progressista - também conhecida como "mamadora de tetas do Estado", que, de quebra, ainda é financiada por um banco privado, enquanto apresenta performances artísticas de gosto duvidoso para a classe média das grandes metrópoles. Aliás, classe média que, assim, se sentirá momentaneamente contemplada por algum tipo de fiapo de consciência (que se diluirá no jantar a base de sushi daquele amigo progressista).

No centro da discussão estará Brenda, que inicia como uma ouvinte neutra que, aqui e ali, fará pequenas inferências. Ela, afinal de contas, também tem seus traumas: perdeu o marido vítima de violência urbana quando divulgava um filme justamente no Brasil. A mesma violência que alcançará Raquel não apenas na sua juventude, mas também durante um evento em que realiza uma performance num hotel, durante um congresso, ocasião em que um homem sobe no palco para agredi-la física e moralmente. O homem em questão, de nome Jessé, é um pedreiro com problemas de alcoolismo que perde a filha para o crime. É a bola de neve da falência do Estado brasileiro - e de sua incapacidade de encontrar soluções para as mais variadas questões - que pontua a narrativa, que é conduzida como experiência literária que gera desconforto mas entretém em igual medida. Na orelha do livro, publicado pela Companhia das Letras, resta a pergunta: "a ideia de conciliação - ou de perdão - é inimiga ou aliada da barbárie em que nos metemos?". A resposta não parece ser simples - e nem está no livro. Mas é o tipo de impasse que nos deixará com a obra na cabeça por semanas a fio.