segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Pitaquinho Musical - CHVRCHES (Screen Violence)

Esqueçam o disco de 27 músicas e quase duas horas provavelmente insuportáveis disponibilizado neste final de semana e mantenham o foco naquilo que interessa: os escoceses de CHVRCHES lançaram na sexta-feira (27/08) o seu quarto registro de inéditas. Intitulado Screen Violence o trabalho é, sem sombra de dúvidas, mais um que deverá ser figurinha certa nas listas de melhores do final do ano. Retornando à boa forma mostrada no inaugural The Bones of What You Believe (2013) - álbum que tinha, entre outras, os hits The Mother We Share e We Sink - Lauren Mayberry, Iain Cook e Martin Doherty apostam novamente no synthpop movimentado, eventualmente soturno, recheado por refrãos grudentos, que deixam para trás a má impressão causada pelo pouco inspirado Love Is Dead (2018). Ainda que produzido em um contexto de pandemia, o disco opera no modo "esperamos vocês no estádio pra cantar junto conosco". Sim, as letras podem soar melancólicas, reflexivas - a perfeita Violent Delights fala de morte de uma forma sombriamente romântica (aliás, condição que se estende a capa do projeto) -, mas a dor é convertida em redenção, a cada evolução robótica da melodia. A conclusão é a de que dá pra falar do mal-estar do mundo, da tecnologia empregada de forma difusa, da violência cotidiana e da fragilidade das relações. E ainda fazer um verdadeiro hinário em forma de álbum.


quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Cine Baú - Casablanca (Casablanca)

De: Michael Curtiz. Com Humphrey Bogart, Ingrid Bergman, Paul Henreid, Claude Rains e Dooley Wilson. Drama / Romance, EUA, 1942, 102 minutos.

Acho que já podemos deixar uma coisa combinada na abertura dessa resenha: em matéria de cinema, a palavra "clássico", no dicionário, bem que poderia (ou deveria) vir acompanhada de uma foto de Casablanca (Casablanca). Afinal, o filme de Michael Curtiz é o CLÁSSICO por excelência. Com todas as letras! Pra começar, trata-se de uma grandiosa história de amor, em meio a um contexto de guerra. Aliás, a ousadia de falar sobre a perseguição promovida pela Alemanha nazista em meio aos anos em que se desenrolava o conflito, também merece crédito. Há ainda um inesquecível "casal" de estrelas de Hollywood - no caso Ingrid Bergman e Humphrey Bogart. Há o roteiro engenhoso, sinuoso, pontuado pelos diálogos tão envolventes quanto cínicos. Por fim existe ainda a riqueza técnica, que vai da construção do cenário que reproduz a cidade que fica ao Norte do Marrocos, até chegar aos jogos de luzes, passando ainda pelo uso da música e pela edição de uma fluidez comovente. Tudo é engenhosamente perfeito. 

Tão perfeito que Casablanca, quase oitenta anos após seu lançamento, segue sendo uma prazerosa experiência fílmica. Que nos joga para dentro do fervilhante Rick's - o caleidoscópico bar/cassino de propriedade de Rick Blaine (Bogart) -, para nos apresentar um sem fim de figuras que trafegam naturalmente pela boemia, de garçons e músicos passando por jogadores vigaristas e empresários sem muitos escrúpulos. No ambiente que é preenchido pela música quase onipresente, a câmera flana de um lado para o outro, o que nos revelará um outro lado desse contexto, que é quebrado pela guerra que se impõe. Casablanca, a cidade, é uma espécie de rota quase obrigatória para quem pretende fugir da América para a Europa, fazendo uma ponte entre Marselha, no Sul da França, e Lisboa, em Portugal. E, portanto, o município marroquino também é povoado por generais, capitães e outros líderes do conflito que movimentam peças de xadrez, enquanto os oprimidos confabulam pelas frestas em busca do sonho de liberdade.

Um desses sujeitos que pretende empreender uma fuga é um certo Victor Laszlo (Paul Henreid), líder da resistência tcheca que chega ao bar acompanhado da estonteante Ilsa Lund (Bergman). Uma troca de olhares entre Ilsa e Rick é o suficiente para que saibamos: há algo a mais entre os dois do que o mero flerte descompromissado. Enquanto Laszlo se ocupa em tentar obter os salvos-condutos que, aparentemente, estão perdidos após o trapaceiro Ugarte (o ótimo Peter Lorre) ser preso, Ilsa e Rick apelam a melodramáticas reminiscências ao som da inesquecível As Times Goes By, tocada majestosamente pelo pianista Sam (Dooley Wilson). Em meio a tudo, o terrível major Strasser (Conrad Veidt) estuda a melhor estratégia para executar seus planos em território não ocupado, enquanto o capitão Renault (Claude Rains) se comporta de forma ambígua, tentando estabelecer limites em meio a todas as forças que se interpõem - enquanto escancara o amor oblíquo que parece verter de seu coração, a cada nova paixão que se apresenta.

É um filme tão completo que é costuma ser lembrado pelos mais variados motivos. Entre elas há as frases memoráveis - "estou de olho em você, garota", "nós sempre teremos, Paris", "Louis, acho que este é o começo de uma bela amizade", "reúna os suspeitos de sempre", "toque novamente, Sam" - e, não por acaso, em uma lista com as maiores citações da história do cinema elaborada pela AFI, Casablanca aparece com seis. Há também uma reviravolta impactante, que torna o final paradoxalmente feliz - teria Rick tomado a atitude correta, nos instantes decisivos do filme? Os figurinos charmosos, os jogos de luzes - repare no brilho ofuscante de Ilsa, quando da cena em que ela chega de volta ao bar, na madrugada -, o romantismo quase kitsch, que se repetiria tantas vezes depois (até mesmo em paródias). O filme de Michael Curtiz é tão maravilhoso, que a premiação máxima no Oscar chega quase a ser pouco. A obra integra o cânone das grandes, aparecendo em absolutamente todas as listas de melhores de todos os tempos - na da AFI é a segunda colocada. E pode ser a porta de entrada ideal para quem quer mergulhar no universo dos "filmes em preto e branco". E dele não sair mais.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Novidades em Streaming - An American Pickle

De: Brandon Trost. Com Seth Rogen, Sarah Snook, Carol Leifer e Betsy Sodaro. Comédia, EUA, 2020, 89 minutos.

Devo confessar a vocês que foi a trama excêntrica de An American Pickle aquilo que me atraiu para essa comédia bobagenta da HBO Max. E o melhor de tudo: não me arrependi! E olha que aqui está falando um sujeito que já anda bastante saturado daquele humor meio "mangolão" que costuma ter o Seth Rogen como protagonista. Mas aqui o negócio funciona direitinho - especialmente no que diz respeito aos contrastes existentes entre um judeu do começo do século 20, que precisa (re)aprender a viver no universo tecnológico (e recheado de extremismos) dos dias de hoje. A narrativa nos apresenta a um certo Herschel Greenbaum (Rogen), um operário que migra para os Estados Unidos em busca do sonho americano, depois de os cossacos destruírem o vilarejo em que ele morava, em algum lugar da Rússia Oriental. Tudo corria relativamente bem na fábrica de pepinos em conservas que ele trabalhava até o dia em que, acidentalmente, ele cai em um tanque de picles, permanecendo na salmoura por... 100 anos!

Sim, ninguém percebe o acidente, já que a fábrica é lacrada ainda em 1919 por um problema envolvendo o excesso de ratos no local. Só que 100 anos depois uma dupla de meninos descobre o corpo do homem. Que não apenas está vivinho da silva, como não envelheceu um "milímetro" sequer. Sem se ocupar demais com a curiosidade natural que o fato poderia gerar na comunidade científica - e na imprensa sensacionalista em geral -, o filme do diretor Brandon Trost pula estas etapas indo direto para a parte em que ele encontra um de seus descendentes - no caso o bisneto Ben Greenbaum (também interpretado por Rogen), que trabalha como desenvolvedor de aplicativos. É óbvio que não será necessário ser nenhum adivinho para imaginar que será a partir desses contrastes que emergirão as melhores piadas da obra. Com os dois não apenas tendo dificuldade para se entender como ainda disputando espaço no "mercado".

 
 
A situação se complica verdadeiramente quando o "viajante do tempo" percebe que o cemitério em que estão enterrados seus parentes está abandonado e ainda é ocupado pela iniciativa privada. Uma briga generalizada com operários acaba indo parar nas redes, o que compromete os negócios do jovem Greenbaum. Separado de seu único parente, o veterano resolve investir na única coisa que sabe fazer: pepinos em conserva. Sem capital, ele cata a matéria-prima no lixo, envasa em vidros que não passariam nem perto de uma avaliação positiva da vigilância sanitária e ainda completa o combo, utilizando água da chuva reaproveitada no processo. Nas ruas, o bisavô Greenbaum se torna um sucesso entre os hipsters do Brooklyn, que elevam a sua figura singular - o que se estende a barba farta e ao modo de se vestir -, a uma personalidade hypada do ramo gastronômico. Não demora para que ele figure em sites, blogs, tik toks. Sua fama aumenta, na mesma medida do golpe, que envolve uma balela sobre cultivo de alimentos orgânicos, sem agrotóxicos e adquiridos por meio de produtores locais.

É claro que a gente sabe que essa história toda tem os dias contados, mas até lá temos uma ampla oferta de piadas que envolvem as extravagâncias dos padrões de consumo de hoje - a irritação de Herschel ao perceber que a vodka, nos dias de hoje, é misturada com... baunilha, é ótima -, até a cultura do cancelamento gestada pelas redes sociais. Nesse sentido, não há melhor momento do que aquele em que o veterano começa a colocar as suas "opiniões impopulares" no Twitter, o que faz com que atraia um sem fim de conservadores reacionários americanos - adeptos de Deus, da família e das armas (e muito provavelmente votantes do Trump). Sim, é meio besta. Sim, a lição de moral sobre unir esforços por um bem maior é meio óbvia. Mas faz rir, tem boas referências culturais e ainda é tecnicamente bem feito (o desenho de produção das cenas do passado, é digna de grandes obras de época). O que comprova mais uma coisa: até quando a HBO Max produz algo que teria tudo pra dar errado, ela acerta. 

Nota: 7,0

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Podcast do Picanha Cultural #10 (Segunda Temporada) - Filmes Esportivos

Sim, a gente sabe que está bem atrasado. Aliás, completamente atrasado. E que as Olimpíadas parecem ter acabado, sei lá, no século passado. Tudo é tão rápido nesse mundo que quando a gente pensou em homenagear os Jogos de Tóquio com um episódio especial com filmes esportivos, bem, lá estava a Rebeca Andrade carregando a nossa bandeira na cerimônia de despedida. Com o mundo todo já projetando Paris, em 2024. Mas a gente é assim mesmo: com um "orgulho meio envergonhado" (se é que isso é possível) de estar meio deslocado no espaço-tempo, resolvemos manter o nosso tema. Até mesmo porque o encantamento provocado por Isaquías, Rayssa, Ana Marcela, Abner, Beatriz, Alison, Kelvin, Thiago, Mayra e tantos outros não cessa. Até os "não campeões" - caso do Darlan Romani - tem muito a nos ensinar sobre espírito esportivo, luta, esforço, superação. Então embarque conosco nessa jornada e reverencie essa verdadeira coleção de grandes obras que tem o esporte como pano de fundo. De clássicos como Carruagens de Fogo (1980), passando por alternativos como Febre de Bola (1997) até chegar no recente Raça (2016), a gente promete uma discussão leve, divertida, quase como uma prova de skate park. Bora dar play?


Cinema - Nunca Mais Nevará (Sniegu Juz Nigdy Nie Bedzie)

 De: Margolzata Szumowska e Michal Englert.Com Alec Utgoff, Maja Ostaszewska, Lukasz Simlat e Weronika Rosati. Comédia dramática, Polônia, 2020, 113 minutos.

Foi com o ótimo Medos Privados em Lugares Públicos (2006) que o falecido Alain Resnais elaborou uma verdadeira colcha de retalhos em que a hipocrisia da sociedade era evidenciada a partir da história de seis pessoas - três homens e três mulheres - que tinham suas vidas cruzadas. Na narrativa - meio fria, eventualmente insólita, quase como uma fábula existencialista -, temas como solidão, efemeridade das relações e a instabilidade do amor, eram apresentados de forma primorosa, enquanto a neve que persistia em cair, se apresentava como a metáfora estética perfeita que servia como alicerce para a ideia geral do filme. De alguma forma, é possível afirmar que Nunca Mais Nevará (Sniegu Juz Nigdy Nie Bedzie) - o enviado da Polônia para a mais recente edição do Oscar e que finalmente está chegando aos cinemas - repete esse expediente. Ainda que de uma forma invariavelmente mais hermética.

Trata-se ao cabo de um filme curiosamente agradável de se assistir, ainda que reserve uma boa dose de complexidade para as suas camadas mais interiores. A trama nas aparências é muito simples: nela acompanhamos um imigrante ucraniano de nome Zhenia (Alec Utgoff), que atua como massoterapeuta em um condomínio fechado na Polônia. Indo de casa em casa, sempre com a sua maca portátil a tiracolo, o protagonista tem contato com as mais variadas figuras que habitam esse universo particular - da dona de casa mãe de dois filhos que parece estar insatisfeita com o casamento, passando pelo idoso de comportamento reacionário até chegar a mulher solitária que se ocupa de cuidar de seus cachorros. Em meio a porteiros e vigilantes, a existência pacata do local parece estar sempre no limite do "acontecimento". Por baixo do véu de tranquilidade, um sem fim de angústias que sempre parecem prontas à vir a tona, seja em forma de discussões acaloradas, seja por meio de pulsões sexuais reprimidas.

Bonito e habilidoso no seu ofício, Zhenia vai aos poucos ganhando a confiança de cada uma daquelas pessoas - sejam homens ou mulheres. O que torna a sua presença um veículo para tensões latentes, que são complementadas por gestos econômicos, olhares de satisfação e a busca hedonista por algum prazer que a existência vazia já não parece mais capaz de satisfazer. Aqui e ali em cada diálogo, temas como xenofobia, opressão às minorias e a futilidade dos extratos mais abastados da população, surgem em pequenas pílulas, que nunca soam excessivamente invasivas. O mesmo vale para a curiosa análise da neve como fenômeno natural que está em "extinção" - e que aqui estabelece um diálogo sofisticado com a obra de Resnais. Diante de tudo o que (não) acontece, não demora para que Zhenia se transforme em uma espécie de guru daqueles que atende: condição que é reforçada pelo exercício de habilidades que vão para além da mera massagem.

Em linhas gerais, é um filme que possibilita uma série de interpretações - e que certamente fará sucesso naquele clube de cinema alternativo da faculdade de humanas. Nada é óbvio, por mais que o fio narrativo dificilmente se desvie do prumo. Tecnicamente bem executada, a obra recorre ainda a flashbacks para esclarecer que Zhenia também possui os seus próprios traumas - e a cada ida para esse "canto" do seu inconsciente nos desperta mais curiosidade sobre o que teria ocorrido, no passado, com sua família. Pra quem gosta do estranhamento gerado pelo trabalho da diretora Malgorzata Szumowska - aliás, tem resenha do excelente Body (2015) aqui no Picanha -, encontrará em Nunca Mais Nevará um prato cheio. Místico, soturno, emocionalmente curioso, é aquele filme que não entrega uma solução fácil. Mas que nos tira da zona de conforto. Eu, particularmente, adoro isso.

Nota: 8,0

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Tesouros Cinéfilos - O Conto (The Tale)

De: Jennifer Fox. Com Laura Dern, Ellen Burstyn, Elizabeth Debicki, Isabelle Nélisse e Jason Ritter. Drama, EUA, 2018, 114 minutos.

Filmes como o ótimo A Caça (2011), do dinamarquês Thomas Vinterberg, serviram para nos lembrar: mesmo quando o assunto é daqueles que suscitam reações mais exaltadas, pode haver algum grau de complexidade. Um tipo de contexto que "nubla" a nossa percepção. E que pode fazer com que, mesmo aquilo que possa parecer uma inadiável convicção, seja por nós questionado. Nem tudo é tão oito ou oitenta. Tão isso ou aquilo. Ainda que não seja tarefa fácil, num universo polarizado, pretender elevar o debate para além do mero antagonismo que coloca os bons e os maus em prateleiras bastante óbvias. O excelente O Conto (The Tale), telefilme disponível na plataforma da HBO Max é uma dessas obras. Densa, de fluidez difusa, nos apresenta uma outra visão da temática "abuso sexual contra crianças", a partir da história autobiográfica da documentarista Jennifer Fox (Laura Dern), que aqui estreia na ficção. 

A trama inicia com a mãe de Jennifer, Nadine (a excelente Ellen Burstyn) que, ao ler antigas cartas encontradas em um porão e escritas por sua filha ainda jovem - com cerca de 13 anos -, acredita ter identificado ali, naquelas crônicas cheias de lirismo, naquelas letras tortas e eventualmente poéticas, um caso de abuso sexual. Diferentemente da angustiada mãe de Lolita (a do livro de Nabokov) que é consumida pela culpa ao se demorar em identificar o abuso sofrido pela filha, Nadine empreende uma verdadeira jornada de pressões (algumas podem soar até mesmo exageradas) para que Jennifer, agora uma mulher que se aproxima dos 50 anos, possa lembrar o que de fato teria acontecido, anos atrás, no começo dos anos 70, no haras em que ela teve como tutores a professora de equitação Mrs. G (Elizabeth Debicki) e o instrutor de corridas Bill (Jason Ritter).

Vasculhando os cantos de sua própria memória, recorrendo a trechos das mesmas cartas encontradas pela mãe e fazendo visitas a antigas colegas que frequentavam o mesmo local - casos de Becky (Shay Lee Abeson) e Franny (Isabella Amara) -, Jennifer busca reconstituir os fatos, montando o quebra-cabeças que possa lhe dar a solução sobre o suposto abuso. Bem desenvolvida, a narrativa faz com que fiquemos em dúvida por um bom tempo. Quando Mrs. G e Bill surgem pela primeira vez, se apresentam como figuras afáveis, bem resolvidas, que incluem Jennifer (que na juventude é vivida por Isabelle Nélisse) em um tipo de relação "não convencional" e de aparência segura. A ponto de revelarem à adolescente segredos de suas vidas, possibilitando uma existência plena e livre das amarras de seus conservadores pais. Ao mesmo tempo, cada gesto feito pelos seus tutores, cada insinuação mais "perturbadora", faz com que redobremos a atenção. E nos perguntemos: houve abuso? E na percepção da jovem? Como ela encara tudo que aconteceu, em meio a uma realidade que surge em sua mente de forma meio borrada, difusa? Tudo isso sendo apenas uma adolescente?

Desenvolvida de forma elegante, a obra jamais insulta a inteligência do espectador ou tenta manipula-lo. Quebrando a quarta parede, a jovem Jennifer surge numa espécie de conflito interior, desafiando também a nós, que acompanhamos a sua narrativa em meio a flashbacks embaralhados, que hora sugerem uma coisa para, no instante seguinte, migrar pra outra. Da mesma forma, a a obra jamais exagera na romantização, já que nos lembra o tempo todo do fato de que uma vítima pode jamais ter se percebido como tal em sua infância/juventude - muito pela completa incapacidade de leitura mais ampla do cenário no que diz respeito ao sexo. Por mais que a mente esteja sempre aberta para novas "experiências". Como complemento, Nadine e a própria Mrs. G da terceira idade surgem, quase ao final da vida, como figuras amarguradas, que foram coniventes com um processo de aliciamento quase "normalizado" em uma sociedade patriarcal, e que jamais deve ser suavizado. Sim, é complexo. Nunca fácil. Possibilitará uma série de discussões. Sobre corpo, sobre memória, sobre subjetividade, sobre hipocrisia. Sobre violências. As mais diversas. Em resumo: é uma obra gigante. E fundamental. 

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Tesouros Cinéfilos - Locke

De: Steven Knight. Com Tom Hardy, Olivia Colman, Andrew Scott, Ruth Wilson e Tom Holland. Drama, EUA / Reino Unido, 2013, 84 minutos. 
 
[ATENÇÃO: ESSE TEXTO POSSUI SPOILERS]

De clássicos como O Anjo Exterminador (1962), passando pelo suspense noventista Louca Obsessão (1990), até chegar a obras recentes, como o ótimo A Pele de Vênus (2013), não foram poucos os filmes que utilizaram como cenário um único local. Fosse por escolhas estéticas ou por limitações de orçamento - ou mesmo ainda por questões técnicas da narrativa -, o caso é que a sensação de confinamento, a persistência do "ambiente fechado" como parte do contexto, em muitos casos resulta em experiências sufocantes, tensas, daquelas que nos deixam nervosos. Nesse sentido, talvez não seja por acaso que haja tantos thrillers que concentram suas histórias em espaços limitados. Situação que, convenientemente, busca ampliar a sensação de claustrofobia daqueles que acompanhamos. E, em partes, podemos afirmar que é exatamente isso que ocorre com Ivan Locke (Tom Hardy), o protagonista do curioso Locke - filme dirigido por Steven Knight, que está disponível na HBO Max.

O filme todo se passa dentro do carro de Locke, durante pouco mais de uma hora e vinte minutos, no final de uma noite. O sujeito é um operário experiente da construção civil - aliás, ele é o responsável por receber um grande carregamento de concreto que será entregue em uma obra de grandes proporções, no começo da manhã seguinte. Só que, no interior do veículo, ele deixa tudo para trás: pega a rodovia e parte na direção de um hospital. É lá que está a sua amante, que se prepara para entrar em trabalho de parto. De um filho seu. Na madrugada que se inicia, em meio ao movimento de vai e vem de carros, utiliza o telefone adaptado do painel do carro para (tentar) resolver todos os problemas de sua existência. O que envolve, entre outras decisões, revelar para sua esposa - e filhos -, o episódio isolado de traição, que resultou em uma paternidade não desejada. Ao mesmo tempo, conversa com colegas empreiteiros que tocarão a obra em sua ausência - o que também não é simples -, ao mesmo tempo em que tenta se apresentar como uma figura presente também para a pessoa com quem teve um relacionamento extraconjugal.


É um contexto complexo, difícil. Locke sai de uma ligação para outra e mais outra e mais outra, emendando uma conversa em outra conversa - e é quase inevitável constatar o fato de que, pouco a pouco, as coisas sairão do controle. Como metáfora óbvia, a própria construção da qual ele é responsável - um empreendimento majestoso, o maior da Europa, como ele mesmo faz questão de ressaltar mais de uma vez -, corre o risco de ruir se não estiver bem alicerçada. Assim como está "ruindo" a sua vida - e não deixa de ser comovente o esforço do protagonista em tentar manter todas as arestas bem aparadas, sem alterar o tom de voz, num desejo íntimo de jamais repetir aquilo que aconteceu com o seu próprio pai (que, aparentemente, abandonou a família após seu nascimento). Na estrada, a sensação de solidão asfixiante, se alterna com os barulhos de veículos da polícia, de ambulâncias, de pedágios e de outros elementos do tráfego, que surgem como forma de ecoar a própria balbúrdia interior vivida por Locke. O trânsito nunca parece excessivamente caótico. Mas ele eventualmente apresenta alguma barreira, alguma limitação, algo que gera dúvida sobre o "destino".

Hábil na construção do roteiro, o diretor Steven Knight jamais deixa a experiência derivar para o tédio. Mesmo quando um instante parece isolado ou meio em sentido, ele surge com razão de ser. É o caso por exemplo das sequências em que vemos os limpadores e para-brisas muito mais "bagunçando" a sua visão, do que clareando aquilo que ele enxerga. O mesmo valendo para as persistentes cenas das estradas vazias, que certamente reforçam, de forma metafórica, o estado de espírito de um sujeito que está colocando em risco não apenas o seu casamento, mas também o seu trabalho - e o seu "destino" como um todo. Carismático, o protagonista nos é apresentado como um homem que tenta manter o controle, mesmo em meio ao caos - condição reforçada pela voz monocórdica adotada, que sempre é precedida por gestos econômicos, discretos. Imersivo, tenso, é um daqueles filmes que a gente nem vê passar. E que, quando acaba, deixa um gostinho de quero mais. O que torna tudo ainda melhor.

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Pitaquinho Musical - The Killers (Pressure Machine)

Um The Killers muito mais reflexivo, contemplativo e sutil é aquilo que encontramos no ótimo sétimo disco Pressure Machine, lançado nesta sexta-feira (13/08). Sim, a festa purpurinada, dançante e explosivamente roqueira vista nos trabalhos anteriores dá lugar agora a um registro mais íntimo, de essência nostálgica, que pretende navegar sem pressa em meio a esse contexto urgente, tecnológico, de pandemia e de incertezas que vivemos. E, nesse sentido, confesso que esse álbum faz muito bem. Aliás, talvez seja o melhor de Brandon Flowers e companhia em anos. É da economia, afinal, que brotam as grandes canções do disco - casos de Quiet Town, Cody e a perfeita Runaway Horses, que conta com a participação de Phoebe Bridgers, Isso sem contar a inaugural West Hills, com seu instrumental folk à moda Mutual Benefit que já nos insere naquele clima "cidade pequena do interior que pede para ser abraçada". A crítica, aparentemente, está saudando a mudança de rumo. Aliás, a gente muitas vezes espera isso de uma banda. Alguma alteração, um sopro de novidade. Um algo diferente que saia da mesmice. O Killers conseguiu.


quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Na Espera - Casa Gucci (House of Gucci)

A gente sabe que ainda é cedo pra falar em prováveis indicados ao Oscar 2022 - a cerimônia acontece em 27 de março do ano que vem -, mas aos poucos as bolsas de apostas vão sendo ocupadas por obras que, muito provavelmente, deverão figurar na premiação. E esse é o caso de Casa Gucci (House of Gucci), mais recente produção de Ridley Scott (Alien: O Oitavo Passageiro). Com estreia prevista para o dia 27 de janeiro próximo, a trama volta no tempo para contar a história de como Patrizia Reggiani (vivida por Lady Gaga), então esposa do membro da família fundadora da marca italiana Gucci, conspirou para matar o marido Fabrizio (Adam Driver), em 1995. O elenco estelar é completado por Al Pacino, Jeremy Irons, Jared Leto e Salma Hayek e as nominações em categorias como Filme, Roteiro Adaptado, Diretor, Ator (Driver), Atriz (Gaga) e até Ator Coadjuvante (Pacino) são dadas como quase certas.

Sim, a gente não pode esquecer do efeito Era Uma Vez Um Sonho (2020), do Ron Howard, que saiu de favorito ao carecão dourado para candidato ao Framboesa de Ouro, depois que as primeiras exibições começaram a ocorrer. Mas consideramos difícil que isso se repita. O trailer estilizado, cheio de trucagens técnicas e uma trilha sonora cheia de firulas com Heart of Glass do Blondie, sendo entoada quase como um mantra, dão um bom indicativo que vem coisa boa por aí. É aguardar. Por aqui já estamos Na Espera!

Tesouros Cinéfilos - Raça (Race)

De: Stephen Hopkins. Com Stephan James, Jason Sudeikis, Clarice van Houten, William Hurt e Jeremy Irons. Drama, Alemanha / França / Canadá, 2016, 134 minutos.

Vamos combinar, cada edição dos Jogos Olímpicos revela um sem fim de histórias sensacionais envolvendo os atletas - muitas delas com potencial para virar livro, filme, documentário. Sem muito esforço, puxando pela memória, somente na recém finalizada edição de Tóquio 2020, é possível lembrar do arremessador de peso que treinava em um terreno baldio, da ginasta que teve de abandonar os jogos devido à pressão sofrida (e ao trauma decorrente de abusos) e da boxeadora que, após faturar a medalha de ouro em sua categoria, voltará a trabalhar no hospital em que atua como enfermeira. Sim, e isso que nem mencionei a praticante de skate que, com apenas 13 anos, barbariza nas pistas - após ter viralizado há seis anos, fazendo uma manobra impossível, vestida de... fada. Fadinha, no caso. Tem de tudo e acho que a beleza das Olimpíadas está também nisso: ela revela contextos. Sociais, políticos, culturais, religiosos. Esportivos, claro. De cada País envolvido. Sua bagagem, suas tradições. Tudo parece estar lá. Em meio a braços, pernas, dorsos, sorrisos, choros e caretas de cada atleta. Suor e sangue. É algo meio mágico, na real. Até apaixonante.

E, nesse sentido, acho que não existe história olímpica mais inesquecível do que aquela envolvendo o atleta Jesse Owens que, nos jogos de Berlim, em 1936, em plano nazismo, faturaria quatro medalhas de ouro - escancarando o fato de que o alegado (e bizarro) conceito de superioridade racial nada tinha a ver com a cor da pele. Negro, Owens quase não participou daqueles jogos. Havia um impasse envolvendo o Comitê Olímpico Norte Americano que, naturalmente insatisfeito com o modelo político adotado pelo führer, quase boicotou a competição. Esse contexto de bastidores, os preconceitos raciais à época - inclusive nos Estados Unidos -, as discussões e incertezas familiares e o esforço do próprio Owens (Stephan James) em alcançar o lugar mais alto pódio, é o que acompanhamos no agradável Raça (Race), obra disponível no catálogo da HBO Max. Dirigido por Stephen Hopkins (de A Sombra e a Escuridão), essa é aquele filme do subgênero "história de superação" que costuma cair no gosto do espectador.

Em linhas gerais a gente sabe o final da história. Mas ainda assim não deixa de ser valioso conhecer o percurso. Que envolve, por exemplo, a existência do treinador Larry Snyder (o sempre simpático Jason Sudeikis), que sai da desconfiança inicial para o apoio incondicional ao seu principal atleta. Como integrantes do comitê, Jeremiah Mahoney (William Hurt) e Avery Brundage (Jeremy Irons) ficam em lados opostos no que diz respeito às decisões sobre ir ou não aos jogos. Ceder à Hitler não seria uma forma de demonstrar "fraqueza"? Superá-lo em sua casa não poderia se configurar como uma bela lição sobre o conceito de supremacia? Em meio a tudo, figuras conhecidas como a diretora Leni Riefenstahl (Clarice von Houten) e Joseph Goebbels (Barnaby Metschurat) se empenharam em transformar os jogos daquele ano em um verdadeiro circo midiático - e, olhando para as imagens que ficaram para a história, podemos afirmar sem medo: bendita mania de grandeza do führer, que possibilitou que cada detalhe dessa sua pequena humilhação particular fosse filmado.

Como espectador, senti um pouco de falta de um contexto que nos apresentasse um pouco mais a juventude de Owens, e de como seria "formatado" o atleta inigualável, um retumbante recordista mundial, que ele seria. O mesmo valendo para a desastrosa política racial norte-americana que, nos anos 30, até poderia se vender como um espectro mais progressista (ao menos se comparada ao nazismo), mas que também mantinha suas esquisitices pós período escravocrata (caso da política que obrigava negros e brancos a se manterem separados na maioria dos locais). Em geral o tom é otimista. Quase fabulesco. As tomadas são belas - há muito uso de câmera lenta, closes. Assim como o desenho de produção, que recria o período de forma bastante fidedigna. A nota menor no que diz respeito a parte técnica fica com a exagerada trilha sonora, que às vezes mais parece retirada e um filme de ação com o Liam Neeson como protagonista (indo atrás da filha sequestrada). No mais é cinemão que acerta em cheio e faz com que saiamos da sessão com um belo (e esperançoso) sorriso. O que não é pouco, em tempos em que o racismo estrutural segue sendo política pseudo-oficial de tantos governos.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Cinema - Um Lugar Silencioso 2 (A Quiet Place Part 2)

De: John Krasinski. Com Emily Blunt, Cillian Murphy, Millicent Simons, Noah Jupe e John Krasinski. Suspense / Terror, EUA, 2021, 96 minutos.

Infelizmente, a existência de Um Lugar Silencioso 2 (A Quiet Place Part 2) nos faz constatar o óbvio: nem sempre uma continuação de filme é necessária. Aliás, em pouquíssimos casos eu diria. Vale para as séries também, que se repetem indefinidamente, apenas para faturar em cima do hype (um abraço Stranger Things). E pouco acrescentam de novidade, de fato. No caso da obra dirigida por John Krasinkski (o eterno Jim Halpert de The Office), a sensação é a de ficarmos no mesmo lugar no decorrer das pouco mais de uma hora e meia de duração do filme. Ok, passados os eventos da primeira parte, que foi concluída com a morte de Lee (o próprio Krasinski) e com a destruição da propriedade em que moravam, a viúva Evelyn (Emily Blunt) e os filhos Regan (Millicent Simons) e Marcus (Noah Jupe) precisam encontrar um novo lugar para viver. E sem fazer barulho, claro, por mais que, agora, eles saibam como enfrentar as criaturas alienígenas que são "ativadas" por meio do som.

No caminho, quando tentam entrar em um depósito aparentemente abandonado, Marcus acaba pisando em uma armadilha. Com a família sendo socorrida/aprisionada por um certo Emmett (Cillian Murphy), um antigo vizinho dos Abbott. Mais ou menos protegidos, mas ainda inseguros, eles recebem, de uma forma meio inesperada, uma transmissão de rádio em que a canção Beyond The Sea, de Bobby Darin está sendo executada. Não bastasse a letra sugestiva - Felizes nós seremos / Além do mar -, a música pode ser a chave para a existência de algo a mais no entorno (outras pessoas, será?). Intrigada com o caso, Regan parte em uma jornada meio solitária atrás de respostas. Para desespero de Evelyn, que pede socorro para Emmett, que parte atrás da menina, juntando-se a ela em seu objetivo. Tudo isso em meio a um sem fim de sequências de ação, com todos eles, em algum momento, precisando escapar das sangrentas criaturas.


Nesse sentido, os fãs de obras mais movimentadas se deleitarão já que, diferentemente da primeira parte - em que pareciam predominar as sequências silenciosas, em que a tensão era proporcionada pela necessidade plena de não haver barulho, o que tornava sufocante uma simples "caminhada no meio do mato" -, aqui o bicho pega, literalmente, com muito mais correria, perseguições, explosões, e tentativas desesperadas de sobrevivência. A execução técnica segue sendo o ponto alto, com detalhe para a engenharia de som, que muito provavelmente deverá ser lembrada no Oscar do ano que vem. Já o desenho de produção, combinado com a riqueza dos enquadramentos e a trilha sonora econômica, transforma os primeiros quinze minutos em uma experiência não menos do que aterradora em meio a um prosaico jogo de beisebol - o que, para  mim, se constitui no ponto alto. Aliás, eu adoraria ter continuado ali mesmo, sem que o filme avançasse para o dia quatrocentos e alguma coisa.

Só que, no fim das contas, como já dito, a sensação é a de andarmos em círculos. Agora já sabemos que os monstrengos não suportam frequências sonoras mais "agudas", o que oportuniza aos Abbott o contra-ataque. E aí surge uma forma de mostrar, ao menos em partes, que os inimigos podem ser outros (nada que já não tenhamos visto em séries como The Walking Dead quando, lá pelas tantas, os zumbis passam a ser o menor dos problemas). Há todo um esforço do elenco e um certo carinho por aquilo que procuram entregar - e os paralelos com a existência da covid-19 podem até formar uma curiosa metáfora narrativa. Mas ainda assim parece ser pouco. Quando os créditos sobem, fica difícil não se sentir meio frustrado. Especialmente pela expectativa criada. Sabe o Jim Halpert olhando pra câmera, com aquele tom de deboche que lhe é peculiar, a cada tentativa de passar a perna no Dwight (personagem do Rainn Wilson)? Pois é, nesse caso somos tal qual o Dwight. Enganados por um filme.

Nota: 4,5


segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Picanha em Série - The Flight Attendant

De: Batan Silva, Glen Winter, John Srickland, Marcos Siega, Susanna Fogel e Tom Vaughan. Com Kaley Cuoco, Michiel Huisman, Michelle Gomez e Rosie Perez. Drama / Comédia / Thriller, EUA, 2020, 340 minutos.

Vamos combinar que, não fossem as indicações ao Emmy e talvez The Flight Attendant passasse meio batida. Sim, é uma produção da HBO Max - o que costuma ser sinônimo de qualidade. Tem a Kaley Cuoco como protagonista - finalmente se vendo livre de encarnar a Penny de The Big Bang Theory. E ainda há a trama meio inusitada, um suspense meio rocambolesco à moda de um Hitchcock no aeroporto, com direito a assassinatos, flashbacks e um curioso senso de humor. A trama nos apresenta à comissária de bordo Cassie (Cuoco), uma alcoólatra que ocupa o seu tempo entre um voo e outro se relacionando com caras aleatórios. Em um desses encontros fortuitos, em uma noitada em Bangkoc, na Tailândia, ela conhece um certo Alex Sokolov (Michiel Huisman), passando a noite com ele. Após acordar com uma pesada ressaca, ela se depara com Alex morto na cama, ao seu lado, com um corte na garganta. Ela não lembra de nada. E resolve fugir, com medo da polícia, em um País que não tem lá uma fama muito boa quando o assunto é o sistema prisional.

A partir daí, a série de oito episódios se transforma num pequeno jogo de gato e rato, com Cassie tentando montar o quebra-cabeças que possa solucionar o que teria acontecido naquela noite. Ao mesmo tempo, o FBI passa a investigar a aeromoça, especialmente após ela tentar fugir na chegada aos EUA. Nas memórias da protagonista, o caos se estabelece. Permanentemente alcoolizada, as suas lembranças sobre os eventos no hotel surgem de forma episódica, com Alex "retornando à vida" para tentar auxiliá-la - o que, em muitos casos, confere a produção um clima exoticamente surrealista - tão violento quanto onírico. Também entra em cena, a melhor amiga da Cassie, a advogada Annie (a ótima Zosia Mamet) - um tipo de relação instável, repleta de segredos não revelados. E há ainda a colega de trabalho Megan (Rosie Perez), que parece ter uma vida dupla que envolve receptação de drogas, tráfico de informação e outros crimes.

Trata-se, ao cabo, de uma colcha de retalhos que segue o fio condutor da narrativa. E que é completado pela misteriosa Miranda (Michelle Gomez), que surge de forma difusa nas memórias de Cassie e que pode ser a chave para que os eventos ocorridos na Tailândia possam ser esclarecidos. É uma trama que parece complexa, mas que se desenvolve de forma fluída, em meio a doses cavalares de vodka e traumas de infância que vão sendo, aos poucos, esclarecidos. Especialmente no que diz respeito a complicada relação da protagonista com seu irmão Davey (T.R. Knight), um homossexual que sempre foi "renegado" pelo pai violento e conservador e que tenta uma aproximação com a irmã, a despeito de Cassie parecer uma figura tão egoísta quanto solitária (e as memórias de infância de ambos nos deixam, invariavelmente, com um gosto amargo na boca, condição que é ampliada pelo belíssimo desenho de produção e pela fotografia de saturação baixa, que reforçam o caráter melancólico de cada flashback).

E é por isso tudo que eu considerei meio curiosas as nominações ao Emmy nas categorias de comédia já que, em muitos casos, a série não é nada engraçada. Pelo contrário, debate sem falsos moralismos, temas como o alcoolismo (e o quão instável emocionalmente Cassie se torna a partir de seu hábito), a mitomania - a cena em que Cassie e Annie constatam a existência repleta de mentiras em que vivem é apenas melancólica -, os traumas de infância e a irresponsabilidade emocional. Com ótimas interpretações, a série escavoca os segredos da família de Alex, numa trama que envolve ainda grandes corporações e crimes como lavagem de dinheiro, empresas de fachada e espionagem corporativa. Tudo embalado num clima meio de realismo fantástico, com direito a coelhos gigantes que surgem inesperadamente e "mortos que falam" sem problema algum. Renovada para o segundo ano, foi uma das surpresas da temporada. É aguardar quais os caminhos que a série tomará, após as reviravoltas vistas nos capítulos finais.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Podcast do Picanha Cultural #9 (Segunda Temporada) - Grandes Vencedores do Festival de Cannes

Realizada nesse último mês de julho, a 74ª edição do Festival de Cannes concedeu a Palma de Ouro ao aguardado Titane, da francesa Julia Ducornau -  filme sobre uma jovem que sobrevive a um acidente automobilístico na infância e passa a ter uma relação peculiar com carros, na vida adulta. Um dos festivais mais bacanas do cinema, Cannes costuma ser uma ótima porta de entrada para quem quiser mergulhar em um campo dominado por ótimos filmes - muitos deles de cunho histórico, político ou social, que não se eximem de colocar o "dedo na ferida" na hora de criticar as mais variadas instituições, governos e outros. Não por acaso, Parasita (2019) foi um dos recentes vencedores, pra ficar num exemplo. E foi pensando nisso que o Bernardo e eu resolvemos fazer uma relação de grandes obras que já faturaram a Palma de Ouro. A nata da nata! Do brasileiro O Pagador de Promessas (1962) de Anselmo Duarte, passando por clássicos como A Doce Vida (1960), de Fellini, até chegar em obras atuais como Ventos da Liberdade (2006), do onipresente Ken Loach, a lista é só filmão. E tudo debatido com aquele clima bem humorado que vocês já estão acostumados. Bora dar play?


quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Cinemúsica - Carruagens de Fogo (Chariots of Fire)

De: Hugh Hudson. Com Ben Cross, Ian Charleson, Ian Holm e Cheryl Campbell. Drama, Reino Unido, 1981, 123 minutos.

Esse é um caso emblemático de filme que, para a história, é muito mais lembrado pela sua inesquecível trilha sonora, composta por Vangelis, do que por qualquer outro motivo. Aliás, muito provavelmente em uma lista com as maiores esquisitices da história do Oscar, a vitória de Carruagens de Fogo (Chariots of Fire) como Melhor Filme, segue como um dos maiores mistérios da maior cerimônia do cinema. Não há nenhuma explicação plausível. A obra é brega, conservadora, com uma mensagem meio ultrapassada que une apoteose esportiva com religião e que, na atualidade, soa apenas datada. Mas eram outros tempos, claro. A Academia evoluiria, deixaria de lado esse ideal do cinema como algo mais tradicional, que manda um afago para o cidadão médio. Só que ficou a música. Replicada, parodiada, imitada. Que surge em esquetes de humor, aberturas de formatura, palestras motivacionais de gosto duvidoso. E em qualquer evento esportivo, claro.

É a trilha sonora oficial de "alguém correndo em câmera lenta". Qualquer que seja o contexto. No filme de Hugh Hudson tudo acontece já na sequência inicial. Um bando de jovens correndo de pés descalços na beira da praia. A câmera vagarosa indo de um rosto a outro, entre sorrisos, caretas e expressões de sofrimento. A música evocativa de Vangelis, surge com sua batida hipnótica, que é invadida pelos sintetizadores grandiosos que fornecem uma espécie de transe para o espectador. Instantaneamente somos catapultados para um filme sobre atletismo. Que é baseado em fatos reais - e que narra a história das primeiras conquistas da equipe olímpica de corrida da Grã-Bretanha, nos Jogos de Paris, em 1924. O período é o entre-guerras. Há muita desconfiança de todos os lados - e até recusas a competir por motivos religiosos (o domingo, pelo visto não foi feito para colocar os tênis e para uma ida no parque).


Na trama somos apresentados a dois velocistas. Um deles, de nome Harold Abrahams (Ben Cross), é um filho de judeu que pretende provar a sua capacidade na corrida - a despeito da desconfiança da família, que possui uma confortável situação financeira. O outro é o devoto cristão Eric Lidell (Ian Charleson), um missionário escocês que acredita que a sua capacidade atlética nata é uma espécie de dádiva divina (e cabe a ele cumprir os desígnios de Deus em Terra, como forma de honrar a sua virtude). Da chegada a Universidade de Cambridge - com as primeiras e divertidas corridas -, até o chaveamento que lhes levará aos Jogos Olímpicos, ambos percorrem caminhos distintos. Lidell possui um talento natural, do qual se sobressai de forma espontânea. Já Abrahams contrata um treinador ítalo-árabe de nome Mussabini (Ian Holm), que também gera dissabores entre os católicos mais fervorosos, com a competição entre a dupla sendo o combustível para que ambos prossigam em seus objetivos.

Em meio a disputas entre eles, que envolvem ainda longos debates com os reitores da Universidade, com líderes religiosos e com familiares - muitos eles desgostosos com o conceito de prática de esportes como um ideal de vida -, o filme funciona como um pequeno libelo sobre triunfo e redenção, com o atletismo permeando a narrativa. E, nesse sentido, não deixa de ser soberbo o trabalho técnico de reconstrução das corridas, com toda a sua emoção, e que testa aqueles que acompanhamos até os seus limites físicos. Nesse sentido, se há alguma beleza em Carruagens de Fogo está na cruzada da dupla central que acaba por confrontar as instituições mais ortodoxas pelo bem do esporte. E sobre como a disputa saudável entre todos eles, se torna estímulo natural para todos os colegas da equipe britânica. Sim, hoje o filme é datado. Quase enfadonho. Mas a imagem de exaltação física e de competividade seguem inabaláveis. Assim como a trilha de Vangelis.

terça-feira, 3 de agosto de 2021

Cinema - Caros Camaradas (Dorogie Tovarishchi)

De: Andrey Konchalovskiy. Com: Yuliya Vysotskaya, Yuliya Burova e Andrei Gusev. Drama, Rússia, 2020, 119 minutos.

Se compreender os meandros políticos do nosso Brasil já não é tarefa fácil, imagina então os da antiga União Soviética. Ainda assim, os que se aventurarem a uma sessão do ótimo Caros Camaradas (Dorogie Tovarishchi) - o enviado da Rússia na categoria Filme em Língua Estrangeira no último Oscar - certamente serão recompensados. Há, pra começo de conversa, um fio condutor da narrativa, que culminará no episódio que ficou conhecido como Revolta de Novocherkassk - ocasião em que empregados de uma fábrica de construção de locomotivas entram em greve pelo fato de a comida estar a cada dia mais cara (e escassa), as condições de trabalho serem precárias e os salários estarem a míngua. O ano é 1962 e a promessa, com o Governo de Nikita Khrushchov, era o de criar um novo paradigma para o comunismo, muito mais distante da violenta herança estalinista que, com seu radicalismo - especialmente no que diz respeito às severas políticas agrárias -, acabaria levando milhares de pessoas à morte.

Só que os preços altos e o desabastecimento parecem estar batendo na porta. E os trabalhadores, no limite, avançam com o protesto. Que é reprimido de forma violenta pelo Exército Vermelho do Governo Soviético, com o apoio da KGB. O resultado? Vinte e seis pessoas mortas e outras 87 feridas pelas forças armadas de Khrushchov. E é aqui que entra o grande dilema da película: quando somos apresentados à uma certa Lyuda Semina (Yuliya Vysotskaya), percebemos logo que ela é uma saudosista de Stalin e que as correntes comunistas na Rússia podem ter várias vertentes. Como funcionária do Comitê do Partido Comunista ela atua de forma crítica ao Governo Khrushchov. Mais do que isso: tem saudade do período de bonança experimentado durante a Era Stalin. Por outro lado, sua filha Svetka (Yuliya Burova) representa o "outro lado" dessa equação. Como funcionária da fábrica se vê envolvida nas manifestações. E acaba desaparecendo após o massacre promovido pelo Governo. Para desespero da mãe que, com o coração "politicamente ferido", deve ir em busca do paradeiro da jovem.


Ao cabo, trata-se de um filme de forte teor político, que, em meio a discussões sobre a importância da greve e da sindicalização, faz lembrar clássicos como o nacional Eles Não Usam Black-Tie (1982) ou mesmo o ótimo alemão Adeus, Lênin (2003) - especialmente no que diz respeito à conduta antagônica de pais e filhos no debate político. Segura de suas convicções, Lyuda trafega entre gabinetes, comitês e outros setores ligados ao Partido Comunista, sem deixar de expressar o seu repúdio à massa trabalhadora (um coletivo que ela não hesita em taxar, preconceituosamente, de bêbados, vagabundos e outros adjetivos). "Antigamente as pessoas trabalhavam 16 horas ao dia e não reclamavam", argumenta em certa altura. Só que quando o comportamento extremista das forças de segurança do Governo a afetam diretamente, não lhe resta alternativa que não seja questionar as metodologias beligerantes aplicadas por Khrushchov. Aliás, ela mesma passa a ser perseguida, em certa altura.

Dura, árida, sem concessões, a obra do diretor Andrey Konchalovskiy utiliza a fotografia em preto e branco a seu favor - o que resulta em uma espécie de tributo ao conterrâneo Sergei Einsenstein que, em 1924, filmaria A Greve, outra obra-prima com título autoexplicativo. Lenta, de fluidez demorada, levemente introspectiva, a película chafurda nos meandros da podridão de uma política militarizada, em que o único recurso possível parece ser o uso da violência. Aliás, nesse sentido, por mais que faça a crítica ao modelo extremista de esquerda, o filme parece funcionar quase como uma distopia de um outro tempo, que se aplica ao momento que vivemos em nosso País - quando direitos são cassados, empregos são sucateados, trabalhadores são exauridos, sindicatos são suprimidos e a população como um todo se vê ameaçada. Há, no decorrer da narrativa, uma sequência quase simbólica desse tipo de falência, quando uma enfermeira é obrigada a assinar papéis que lhe obrigam a silenciar sobre os horrores presenciados no hospital, após o massacre. Esconder documentos, abafar verdades, burocratizar processos... o modus operandi, no fim das contas não muda. Independente do País que se esteja.
 
Nota: 8,0