sexta-feira, 17 de maio de 2024

Picanha.doc - Bobi Wine: O Presidente do Povo (Bobi Wine: The People's President)

De: Moses Bwayo. Documentário, Uganda / EUA / Reino Unido, 2022, 113 minutos.

"A verdadeira liberdade começa na mudança de mentalidade". Uma obra sobre o poder da arte como veículo de transformação social e como apoio da manutenção da democracia - especialmente diante de ameaça de sistemas políticos autoritários. Assim podemos considerar Bobi Wine: O Presidente do Povo (Bobi Wine: The People's President), filme disponível na plataforma Star+ e um dos cinco indicados ao Oscar desse ano na categoria Documentário. Aqui temos uma obra inspiradora, que mescla as letras poderosas de Wine, um carismático cantor de reggae que faz uma mistura saborosa de ritmos africanos, como o afrobeat e o dancehall, e que começa a chamar a atenção do público, especialmente pelas letras socialmente conscientes que refletem sobre direitos humanos, pobreza, saneamento básico, importância da educação, paternidade responsável e outros temas, sempre com um olhar atento às mazelas do povo de Uganda, seu País de origem.

Nesse sentido, essa é uma produção que nos captura de forma instantânea. Enquanto circula pelas ruas e becos arenosos e miseráveis de uma favela da capital Kampala, o artista passa a arrastar uma multidão de adeptos, que replicam suas músicas e imitam seu estilo. Com certa fama, Wine casa com a filantropa Barbie Kyagulanyi e amplia o olhar político em sua arte, especialmente a partir de meados dos anos 2000, quando a corrupção do governo do ditador conservador de direita Yoweri Musevini aflora. O que se soma ao desrespeito aos direitos humanos e também a tentativa de silenciar qualquer opositor - algo que sempre envolve um pesado aparato militar e uma disposição única para atos de truculência. Em um dos episódios mais traumáticos do País, um protesto que antecederia uma das tantas eleições livres - algo bastante recente, já que entre 1986 e 2005 era proibido o pluripartidarismo em Uganda - vencidas por Musevini, um grupo de civis é morto pelas forças militares, sob a desculpa de serem "terroristas" ou "insurgentes".


 

Enfim, a gente já viu o mesmo papo em ditaduras mundo afora - especialmente aquelas que desejam se manter no poder na base da força (e por mais que a situação do Brasil seja diferente, é simplesmente impossível não pensar no País quando vemos um presidente que utiliza absolutamente toda a máquina pública estatal para tentar permanecer no poder). A diferença é que aqui ainda temos uma democracia, e por mais que já existisse uma minuta do golpe e um bando de alucinados na frente de um quartel, tendo ainda como complemento o maior estelionato eleitoral da história, o projeto mambembe de ditador tropical foi deposto. Em Uganda essa aguardada primavera é mais complexa. E eternamente adiada. Com o voto impresso - sim, que surpresa! -, as chances de fraude aumentam progressivamente. E quando Wine resolve partir pro confronto com Musevini nas eleições de 2021, ele perde por 58% a 34%. Por mais que tudo indicasse o desejo do povo por oxigenar a sua política, depois de CINCO mandatos do déspota.

Com belas imagens de arquivo, a produção dirigida por Moses Bwayo acompanha os movimentos de Wine que, a cada ataque que sofre, dobra a aposta na tentativa de confrontar o poder tirano - e as repetidas fraudes que parecem ocorrer com anuência de um parlamento "comprado", que altera leis para que Musevini se perpetue no poder. Em uma cena chocante, o artista sofre uma frustrada tentativa de assassinato, que resulta na morte de seu motorista. O que não o impedirá de, mais adiante, ser preso por suposta desobediência. Com tudo costurado sempre pelas letras pungentes de Wine e pelos ritmos quentes, que permitem ao mesmo tempo a festa do povo e a consciência (um combo, muitas vezes, ideal). Se há um pequeno porém, acho que falta um pouquinho mais de profundidade a respeito do panorama político do País e sobre quais as plataformas defendidas por Wine, que tanto se dedica aos direitos humanos e às minorias. Um progressista que confronta um reacionário. Aliás, a tônica atual em muitas partes do mundo. Com a arte tendo papel central nesse debate.


Pitaquinho Musical - Rachel Chinouriri (What a Devastating Turn of Events)

"Quando coisas ruins acontecem, as pessoas ao seu redor ficam tipo, ‘vai ficar tudo bem, lamento que isso tenha acontecido', E, na verdade, às vezes é bom dizer: ‘isso foi uma merda, foi horrível e é injusto'. Esse era o tipo de emoção que eu queria traduzir nessas músicas". Quem ouve o pop sofisticado, muitas vezes agridoce, e cantado com a voz aveludada da britânica Rachel Chinouriri, em sua estreia What a Devastating Turn of Events, talvez não imagine a densidade de suas letras e mesmo a relevância de seus temas. Em linhas gerais há uma leveza nostálgica que conduz o ouvinte entre palminhas, assobios e uma sonoridade que se equilibra bem entre o R&B, o soul e o indie rock, que fazem tudo soar acessível. É aquele disco gostoso, com pontes e refrãos que flanam com facilidade. Basta uma ou outra audição pra memorizar as canções. Como no caso, por exemplo, de Robber, balada sombria que tem como pano de fundo a história de um casal que perde um bebê. Coisas ruins acontecem. E são uma merda - como ela disse no material de divulgação.


 

Nascida em Londres, a artista de apenas 26 anos é filha de pais emigrados do Zimbábue. E ainda que pudesse ser convidativo em termos de "mercado", tornar sua música apenas uma excentricidade para um público médio e branco ávido por sons alternativos de fora dos grandes centros, Rachel cresceu ouvindo Kings of Leon, Phoenix e Coldplay - e é interessante notar como todas essas bandas aparecem salpicadas, aqui e ali, como influências não tão óbvias. Nas letras, as experiências pessoais se mesclam com narrativas familiares - o que resulta em um projeto complexo e heterogêneo em que guitarras mais velozes se misturam com sintetizadores econômicos, sempre prontos a explodir mais adiante. Canções sobre sensação de não pertencimento (o ótimo single The Hills), a respeito de amores não correspondidos (All I Ever Asked), sobre autoimagem e aceitação (I Hate Myself) ou mesmo suicídio (como na sombria faixa-título) se mesclam para formar um conjunto irresistível de uma das artistas mais promissoras de atualidade. Não deixe de ouvir.

Nota: 9,0

 

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Cinema - Love Lies Bleeding: O Amor Sangra (Love Lies Bleeding)

De: Rose Glass. Com Kristen Stewart, Katy M. O'Brian, Ed Harris, Jena Malone e Dave Franco. Suspense / Romance, EUA / Reino Unido, 2024, 104 minutos.

Quem assistiu Saint Maud (2019), o filme anterior da diretora Rose Glass, talvez se surpreenda com o estilo mais maximalista de Love Lies Bleeding: O Amor Sangra (Love Lies Bleeding), obra que está em cartaz nos cinemas do País. Afinal tudo que o projeto anterior tinha de sutileza e de morosidade na hora de fazer a crítica a respeito dos problemas que decorremdo fanatismo religioso, este tem de exagerado em seu exame de uma sociedade ainda machista, individualista, com pendor pra violência e pouco paciente na hora de efetuar qualquer tipo de negociação. Sangue, suor, lágrimas, excrementos e gozo se misturam em um tipo de cinema que se convencionou chamar atualmente de "cinema do corpo", que é aquele tipo que, a partir de certo experimentalismo, arrasta o espectador para algo mais sensorial do que aquele que se vale apenas do olhar. Algo que, por exemplo, fazem com maestria realizadores como Julia Ducournau e David Cronenberg, com seus body horrors.

Ainda assim o cinema do corpo, lembra a autora Linda Williams, não é apenas o do terror, da palpitação e dos sustos. Sim, em Love Lies Bleeding a gente encontra isso. Mas ele é também o do choro e o tesão, que mobilizam nossos fluídos, que movimentam nossas vísceras. E é preciso que se diga aqui temos a experiência completa nesse sentido. Ao cabo essa é uma obra de closes em corpos, com todo o seu esplendor - como no caso de Jackie (Katy M. O'Brian), que talvez materialize justamente a transformação irracional que sofremos quando nos apaixonamos -, e em rostos, que é onde entra Lou (Kristen Stewart em mais um grande papel), que, de cabelo seboso, se utiliza de seu olhar sempre penetrante e capaz de preencher espaços, para transmitir toda a ansiedade e a angústia diante de uma violência que lhe rodeia, e que talvez esteja pronta a explodir a qualquer momento.


 

Lou herdou uma academia de ginástica da família e é lá que ela conhece e começa a se relacionar com a forasteira Jackie, após um encontro improvisado, ainda que jamais fortuito entre as duas. Jackie, com seu corpo vigoroso, está vindo de Oklahoma, se prepara para um torneio de fisiculturismo, e encontra abrigo no local. Por uma daquelas coincidências, ela arruma um emprego em um clube de tiro chefiado justamente pelo pai de Lou (Ed Harris) - um sujeito tão repulsivamente palpável em sua combinação de caipira norte-americano reacionário com idoso decadente que votaria facilmente no Trump (ou em Bush), que é quase impossível não sentir asco. O que é reforçado pela sua aparência de tiozão acampado na frente do exército com sua cara oleosa e cabelos longos, mesmo sendo calvo, e a grande propensão para golpes no mercado negro de armas. Esse ambiente "família" é completado pelo violento JJ (Dave Franco), o cunhado de Lou, que tem o hábito agredir a irmã Beth (Jena Malone). É claro que em um cenário tão cáustico que mistura violência doméstica, clubes de tiro, academias anabolizadas, amor lésbico e tentativas de fuga a chance de a coisa sair do controle é grande. Pra alegria do espectador. 

Em linhas gerais Rose Glass não se intimida na hora de evidenciar seu ponto. Lou pai e JJ, por exemplo, são apresentados como os machos torpes e misóginos que, atualmente, ocupariam com tranquilidade os fóruns online de redpills ou os 4chans da vida - e o fato de o cenário ser alguma pequena cidade do Novo México rural e conservador, ajuda nessa composição. Só que aqui estamos nos anos 80 e, é preciso que se diga, esse aspecto também fornece certo charme à parte técnica, com sua fotografia levemente saturada, as cores vivas e figurino de roupas meio antiquadas. É um conjunto saboroso que olha para o passado para falar do presente de forma alegórica: afinal para que o mundo avance em toda a sua plenitude, talvez seja necessário extinguir certos sujeitos (ou ideias, vá lá) que representem certo atraso na sociedade. Pode parecer meio over em alguns momentos: mas é sexy, divertido e macabro. O odor pestilento parece saltar da tela. E ainda assim não resistimos.

Nota: 8,5


terça-feira, 14 de maio de 2024

Pitaquinho Musical - Jessica Pratt (Here in the Pitch)

Uma bossa nova enevoada, cantada em um filme cult dos anos 80. Um folk espacial que emerge em uma série de TV distópica e existencialista. Uma melodia que martela sutilmente em um bar enfumaçado, ocupado por figuras niilistas e silenciosas. Tentar converter em "imagens" a música feita por Jessica Pratt pode não ser tarefa tão fácil - uma vez que ela parece trafegar com facilidade entre a nostalgia onírica e a modernidade borbulhante. Em alguma medida é possível afirmar que as possibilidades são muitas e mesmo um disco pequeno como Here in the Pitch - o quarto da carreira da norte-americana -, permite ao ouvinte uma viagem pop psicodélica por ambientes tão variados, que tudo parece ser maior do que é (a despeito das apenas nove músicas distribuídas em 27 minutos). Lúdico, sensorial, evocativo, esse é daqueles trabalhos que ressoam de forma hipnotizante em uma rota intimista e agridoce.


 

Um bom exemplo disso tudo pode ser percebido no single lo-fi World on a String - com sua musicalidade flutuante e elevada. Pratt tem um estilo de cantar que consegue soar ao mesmo tempo doloroso e acolhedor e, por causa disso, versos como "E você ganhou tudo, mas seu sorriso vai embora / Quando, ao final, você é notícia de ontem" (na bossa nova Better Hate) soam ousados e irônicos. Há um pouco mais de expansão no todo, especialmente se compararmos com a sutileza dilacerante do anterior Quiet Songs (2019). E talvez aí esteja parte do magnetismo: o que antes era apenas um violão mais discreto, que vinha acompanhado de um pianinho sutil, aqui fica mais amplo, mais preenchido, com mais camadas. Inclusive vocais. É o tipo de combinação que faz com que retornemos várias vezes para o disco.

Nota: 8,5

 

Cine Baú - Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb)

De: Stanley Kubrick. Com Peter Sellers, George C. Scott e Sterling Hayden. Comédia / Ficção Científica / Guerra, EUA / Reino Unido, 1964, 94 minutos.

Em uma das mais divertidas sequências de Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb), um grupo de líderes norte-americanos - entre eles diplomatas, militares e conselheiros - debate, em uma sala do Pentágono, o futuro da humanidade. Após uma ligação do presidente dos Estados Unidos Merkin Muffley (um dos três papeis de Peter Sellers) ao premier soviético (um certo Kissoff, que parece estar bêbado do outro lado da linha), tem início uma briga acalorada entre o general Turgidson (George C. Scott) - um sujeito que tem aquele tipo de arrogância militar, que esconde sua mais completa mediocridade sob o véu da suposta liderança - e o embaixador russo (um Peter Bull abusando do estereótipo). Após uma discussão quase infantil, um cai sobre o colo do outro, sendo repreendidos na sequência por Muffley: "senhores, vocês não podem brigar aqui, este é o salão de guerra".

Olhando em perspectiva essa pode parecer, atualmente, uma piada apenas boba. Mas também foi a forma que Stanley Kubrick escolheu para debochar da relação quase pornográfica entre esses homens - no caso, esses militares sempre prontos a vestir a farda e atirar para salvar a sua Pátria, nem que para isso morram 20 milhões de pessoas desnecessariamente (imagina, poderiam ser 150 milhões) - e a guerra. Sim, em 1963 já decorriam quase 20 anos da Guerra Fria, que colocava frente à frente o Ocidente e o bloco soviético - um impasse entre duas superpotências que mediam forças no abstrato e em estratégias como a de colocar o medo na cabeça do "inimigo" como forma de desencorajá-lo a atacar. Em uma época em que o escárnio (e o meme) estavam bem longe de pautar o debate, não dá pra negar que foi uma jogada ousada. Que talvez tenha assustado as plateias, especialmente pela cara de pau descarada em tirar sarro de paranoias comunistas (sim, sempre elas) e de outros delírios bélicos.


 

Aliás, nesse sentido, alguns temas parecem tão atuais, que mais parecem saídos de algum zap bolsonarista, ou fruto de alguma teoria conspiratória aleatória propagada por incels de extrema direita que passam o dia nas profundezas da web. Em certa altura o general que leva o sugestivo nome de Jack D. Ripper (Sterling Hayden) explica ao capitão Mandrake (o segundo papel de Sellers), seu colega em uma base militar, sobre como os soviéticos estão utilizando a fluoretação da água como uma estratégia bélica em seu favor. "Esta é a trama comunista mais perigosa que já tivemos de enfrentar", vaticina Jack a um incrédulo Mandrake, dando a entender que todos os seus problemas, desde a sensação de cansaço (e de falta de apetite sexual), até um certo vazio existencial, são efeitos da água batizada. "Você já percebeu que eles não tomam água, somente vodca?", pergunta. Sim, se hoje em dia um delírio do tipo não faria feio em meio a blocos de debates sobre agenda globalista, sósias do Lula, chip chinês na vacina, mamadeira de piroca e antenas Haarp, talvez não seja por acaso.

Porque o caso é que talvez só rindo pra gente conseguir dar conta. Já era assim na década de 60 e segue sendo hoje em dia e, em tempos tão nervosos como os que vivemos - de iminência de Terceira Guerra, de crise de refugiados, de desastres climáticos, de ascensão da extrema direita, de tecnologia desenfreada e de pandemia -, não deixa de ser interessante notar como a comédia de Kubrick segue irresistivelmente atual. "A paz é a nossa profissão" é a frase que se vê em um cartaz fixado nas paredes de uma base militar que é atacada por aqueles que deveriam estar do mesmo lado das trincheiras. Para o sinistro Dr. Strangelove do título (novamente Sellers) as disputas por poder que podem levar a explosão de uma Máquina do Juízo Final - uma ogiva nuclear de ativação automática - podem ser o caminho para a solução eugenista. Na teoria do cientista, que parece ter um certo pendor para o nazismo, a perspectiva de explodir o mundo pode abrir a brecha para um plano de supremacia branca em que cada homem teria direito à dez mulheres ("mas elas terão que ser bem escolhidas", lembra um dos idosos decrépitos da Sala de Guerra). 

 

 

Enquanto esses ineptos decidem sobre o que acontecerá no século seguinte - e que pode estar ao alcance de um botão -, um grupo de caipiras, com direito a sotaque sulista e tudo e uma Bíblia minúscula que também conta com expressões russas, é literalmente enviado pra morte. Tudo isso depois de um equívoco de Ripper que subverte os protocolos enviando aviões para um ataque aéreo aos "vermelhos". Há uma história interessante que está n'O Livro do Cinema sobre a intenção que Kubrick tinha de que a cena final fosse uma guerra de tortas entre aqueles homens, no estilo pastelão. Mas ele mudou de ideia e substituiu a sequência pela da explosão das ogivas nucleares. "Era importante que o público soubesse que, por mais caricatos e palhaços que aqueles sujeitos parecessem, eles eram de fato perigosos". O resultado dessa poderosa combinação conferiria ao projeto três indicações ao Oscar - Filme, Diretor, Roteiro e Ator (Sellers). E pavimentaria ainda o caminho para que Kubrick alcançasse grande fama entre os fãs de cinema, com obras-primas, como, 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), Laranja Mecânica (1971) e Nascido Para Matar (1987) - que, em alguma medida, revisitariam os mesmos temas. Fundamental.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Cinema - O Sabor da Vida (Le Passion de Dodin Bouffant)

De: Anh Hung Tran. Com Juliette Binoche, Benoit Magimel, Galatea Bellugi e Bonnie Chagneau-Ravoire. Drama, França, 2023, 135 minutos.

"Em casa eu sirvo o tipo de comida que conheço a história por trás". (Michael Pollan)

Vamos combinar que em tempos de IFood, de comida congelada e industrializada, de alimentação apressada (e sem graça) e de paladar infantil que via de regra é baseado em Nutella e leite ninho, assistir a um filme afetuoso e poético como O Sabor da Vida (Le Passion de Dodin Bouffant) é uma espécie de alento. Uma frase atribuída ao escrito Mia Couto nos lembra que "cozinhar não é um serviço e sim uma forma de amar os outros". E na obra de Anh Hung Tran - do ótimo O Cheiro do Papaia Verde (1993) - essa expressão parece elevada à máxima potência, especialmente ao nos fazer lembrar da importância da comida feita em casa, em toda a sua glória. Sim, aqui e ali pode haver um aspecto meio elitista nesse combo que envolve alta gastronomia luxuriante e cenários deslumbrantes, como aqueles que vemos na obra. Mas, honestamente, é meio difícil resistir.

Tanto é que a primeira meia hora do filme quase se assemelha a um documentário sobre as origens da alimentação, filmado em algum ponto da Europa. Claro, não fosse o fato de estarmos diante de uma Juliette Binoche sempre magnética - aqui ela vive a cozinheira Eugenie, que trabalha há mais de 20 anos para o chef gourmet Dodin Bouffant (Benoit Magimel), em seu belo casarão da França rural do fim do século 19. De forma quase ritualística, Eugenie e Dodin preparam, na companhia da assistente de cozinha Violette (Galatea Bellugi) e da aprendiz Pauline (Bonnie Chagneau-Ravoire), uma lauta refeição com peixes, carnes vermelhas, molhos, vegetais frescos e sobremesas pornograficamente vistosas - tudo encenado de forma viva, aproveitando da melhor forma as cores contrastantes da madeira e das matérias-primas elaboradas. Como se fosse um coletivo de dança com coreografias bem demarcadas, o quarteto de reveza pelo ambiente, num tipo de preparação exaustiva, mas prazerosa, que mais tarde será oferecida para um grupo de amigos de Dodin.


 

É tudo bonito e elegante, requintado em sua simplicidade, seja nos móveis rústicos, nos fogões campesinos, nos utensílios rudimentares  - tudo de forma a mexer com absolutamente todos os nossos sentidos. Não se trata apenas de uma experiência visual. Os sons nos conectam, os aromas e sabores parecem saltar da tela - aliás, nos fóruns de internet, vi vários fãs da obra afirmando que não era uma boa ideia ir para a sessão com fome. Ainda mais em shoppings, onde muitas vezes as opções gastronômicas se baseiam em fast foods e alternativa rápidas (ou pré-prontas). Lá pelas tantas, chega à propriedade de Dodin, um jovem com um recado: há um príncipe das redondezas, que gostaria de lhe convidar para um jantar. Dodin, contra todas as possibilidades, aceita o convite. Ainda que precise lidar com questões internas, como a paixão secreta por Eugenie (que o homem tem dificuldade em formalizar, ainda que ambos se gostem muito) e a falta de apoio dos pais de Pauline, que acabam chamando ela de volta para a casa, após um período.

Em linhas gerais esse é um filme simplíssimo, mas de uma beleza quase ecumênica, elegíaca. Nesse sentido, outras artes parecem se mesclar como forma de fortalecer a metáfora para o amor, para o afeto. Quando Dodin cria coragem pra pedir Eugenie em casamento, ele brinca sobre o fato de ambos estarem casando no "outono de suas vidas", o que é a deixa para uma série de frase belíssimas e alegóricas sobre a vida em si - e de como saímos da primavera de nossas almas quando nascemos, para o inverno do fim quando nos aproximamos do ocaso. Eugenie nega tudo isso, e quer que sua vida seja um "verão permanente", mesmo que ambos estejam na casa dos cinquenta anos. É difícil não se emocionar - e de pensar como a paixão e a lealdade a alguém podem fornecer um sustento semelhante ao proporcionado pela alimentação. Com ambas fazendo conexões entre nossos órgãos - do coração ao cérebro, passando pelo estômago, pelo esôfago e outros. Fazer um filme simples mas que nos conecte não deixa de ser uma arte. Assim como sempre será uma refeição bem feita, bem elaborada - por mais modesta que seja.

Nota: 8,5


quinta-feira, 9 de maio de 2024

Lado B Classe A - Keane (Hopes ans Fears)

Sim, a gente sabe que hoje em dia Somewhere Only We Know virou sinônimo de cover de banda folk de branquelo que toca em formaturas e casamentos. Ou mesmo de trilha sonora de comercial de TV de gosto duvidoso. Mas, acredite, essa canção que ainda surge aqui e ali na programação da rádio light que parece meio parada no tempo, foi lançada há 20 anos pelo Keane. VINTE ANOS. Sim, não parece que já se vão duas décadas desde que Hopes and Fears, o disco de estreia dos britânicos, veio ao mundo. E, vá lá, talvez fossem tempos muito simples aqueles em que um grupo composto apenas por um vocalista (Tom Chaplin), um pianista e tecladista (Tim Rice-Oxley) e um baterista (Richard Hughes) conseguisse alcançar algum sucesso. Mas foi o que aconteceu naquele distante 2004 - a despeito da nota baixíssima concedida pela Pitchfork e das inadequadas comparações com o Coldplay (até mesmo porque, vamos combinar, o Keane é muito melhor).

Os detratores gostam de falar dos exageros dramáticos, eventualmente excessivos - que parecem elevar toda e qualquer canção a uma espécie de catarse catapultada por um refrão sempre voluptuoso, entoado em um falsete milimetricamente calculado de Chaplin. E, assim, esquecem a melhor parte: a de que o Keane faz música direta, sem firulas, cantando coisas do coração que só nas aparências soam óbvias. Com tudo se projetando maior do que parece, entre pontes bem posicionadas e estrofes magnéticas, capazes de transformar a voz suavemente vigorosa do vocalista em algo maior do que a vida. Tomemos como exemplo o single This Is The Last Time, um dos grandes momentos do álbum. Em entrevistas de divulgação Rice-Oxley explicou que ela é uma canção sobre "sentir uma enorme quantidade de afeto por alguém e, no entanto, não ter aquela faísca mágica que faz alguém se sentir apaixonado". É sobre ter um vínculo com alguém, gostar da pessoa, mas mesmo assim ir embora. 

 


 

E, vamos combinar, que essa atmosfera comovente, quase teatral e de romance torto - de se sentir confortável com alguém e não querer machucar essa mesmo pessoa ao simplesmente deixar essa pessoa pra trás - que se sobressai no conjunto, parece tornar tudo melhor. Ou seja, é o contrário do que dizem os críticos, justamente porque a emoção parece se esparramar da alma. Dos sintetizadores cheios de camadas. Dos vocais épicos. Sim, são músicas de amor, repletas de versos sobre perdas, incertezas, medos, frustrações. Mas onde na música popular que a coisa não foi assim? Onde, no trabalho de uma Taylor Swift ou de uma Olivia Rodrigo que as coisas do coração não ganharam corpo? Onde que uma música linda como She Has No Time parecerá menor, só porque os versos sobre amores não correspondidos soam em alguma medida brega ou até meio kitsch (Você acha que seus dias são comuns / E ninguém nunca pensa em você / Mas somos todos iguais)?

Ás vezes eu me pergunto se haveria uma segunda chance pro Keane - ao menos em termos de crítica - se, paradoxalmente, esse disco fosse lançado nos dias de hoje e não vinte anos atrás. Se não houvessem as inevitáveis comparações com Clocks ou com qualquer coisa que um Coldplay já acenando para a decadência vinha fazendo naquele período. Com o britpop já tendo sido devidamente reinventado pelo Radiohead. E com o rock inglês tomando um outro caminho, com a ascensão de coletivos como Franz Ferdinand, o Libertines e o Arctic Monkeys. Vai saber. Ou talvez eles fossem ainda mais odiados em tempos de raiva permanente contra tudo, como os que vivemos hoje. De intolerância, de preconceitos, de guerras, de fortalecimento da extrema direita, de pandemia. Talvez efetivamente fossem tempos mais simples. De se emocionar com Everybody's Changing, Your Eyes Open e Untitled 1. De não ter vergonha de ouvir a todo o volume Somewhere Only We Know. Que hoje em dia nem aquela bandinha cover de jardim florido, consegue estragar. Porque, afinal, sempre que tá tocando eu paro pra ouvir.


Pitaquinho Musical - Iron & Wine (Light Verse)

Desde que surgiu para o mundo há mais de vinte anos com o álbum The Creek Drank the Cradle (2002), o cantor e compositor Sam Beam - o nome por trás do Iron & Wine -, cativou uma legião de fãs com o seu estilo "estou aqui tocando um violãozinho na varanda, enquanto observo o final de tarde bucólico na cidadezinha do interior da Carolina do Sul". Os versos simples mas poderosos, cheios de ruminações simbólicas sobre o ambiente rural - suas famílias, comunidades, natureza, costumes e crenças -, sempre representaram uma fortaleza, o que seria reforçado por obras-primas do folk pop como Our Endless Numbered Days (2004) e, mais ainda, The Shepherd's Dog (2007), talvez o seu melhor disco. Claro que é um clichê dizer que, passados tantos anos desde esses primeiros trabalhos, muita coisa mudou. A música de Beam adquiriu mais elementos e até mais complexidade, e também houve um hiato de sete anos que, agora, é interrompido pelo maravilhoso The Light Verse.


 

Quem acompanha a carreira do Iron & Wine sabe que a sua música é daquelas que acalma a alma, que flui sem pressa em meio a emanações etéreas e uma musicalidade descomplicada, que apaixona já nas primeiras audições. E, em tempos de tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo - avanço da extrema direita, guerras, catástrofes ambientais e um mundo que ainda se recupera de uma pandemia -, não dá pra negar que canções como Taken By Surprise, Tears That Don't Matter, You Never Know e All In Good Time acalentam, envolvem, amparam. Esta última, feita em parceria com Fiona Apple - o que é automaticamente um atestado de qualidade -, versa sobre perseverança em dias difíceis e sobre, enfim, ter paciência. A voz sussurrante e vagarosa do artista, somada ao seu violão acústico nunca pareceram tão necessários. Às vezes tudo o que precisamos é um passo atrás para reconfigurar a rota. Fazendo o que já fazia e de uma forma ainda melhor, o Iron & Wine nos permite isso.

Nota: 8,5