quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Cinema - Trama Fantasma (Phantom Thread)

De: Paul Thomas Anderson. Com Daniel Day-Lewis, Vicky Krieps e Lesley Manville. Drama, EUA, 2018, 131 minutos.

Claramente parece haver algo mal resolvido no que diz respeito a relação do estilista Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis) com a sua mãe na juventude e que, agora, na fase adulta, reflete-se em seu comportamento. Afetado pela dificuldade em superar um aparente Complexo de Édipo que lhe parece ter consumido uns bons anos de infância, Woodcock, agora um sujeito consagrado em seu meio - tendo realizado trabalhos diversos para a alta sociedade e também para a realeza britânica -, trata algumas das mulheres ao seu redor com desprezo. Algo que pode ser observado já em uma das primeiras sequências do ótimo Trama Fantasma (Phantom Thread), em que o costureiro humilha a sua "modelo/companheira" pelo fato de esta não estar comprometida com o seu peso - estando, portanto, incapacitada de vestir as elegantes roupas elaboradas por ele.

Uma cena que, num primeiro momento, surpreende pelo caráter misógino mas que, pouco a pouco, vamos compreendendo conforme se desnuda na tela uma das mais excêntricas (e detestáveis) personas construídas pelo talentoso Day-Lewis - que, não por acaso, é um dos favoritos para estatueta de Melhor Ator no Oscar do próximo domingo (ainda que Gary Oldman esteja insuperável como Winston Churchill em O Destino de Uma Nação). Um perfeccionista, o profissional exige dedicação (e submissão) permanentes daquelas que terão a honraria de se verem uniformizadas com as suas peças. Um trabalho certamente intragável para as jovens que com ele terão contato - ainda que o universo luxuoso, deslumbrante e requintado não deixe de ser um atrativo a parte (e, inegavelmente, a figura pernóstica de Woodcock, paradoxalmente, também).



A situação muda quando Woodcock conhece Alma (Vicky Krieps). Jovem de personalidade forte, ela se tornará modelo do estilista - e também sua amante, numa relação que parecerá estar sempre no limite do amor e do ódio, da devoção e da fúria. Ao mesmo tempo em que Woodcock não hesitará em lhe ferir com palavras - "você não tem seios, mas eu posso fazer você os ter" - Alma não se sujeitará completamente aos caprichos de um sujeito esnobe que acredita que, aquelas que com ele trabalham, devem atender a todos os seus desejos. Woodcock é um "menino mimado" em pele de adulto que escuta a mãe em sonhos, mantém uma mecha dos cabelos da genitora (!) no forro de seu casaco, e que idealiza apenas um tipo de mulher - cabendo a todas as demais o papel secundário de serviçais (inclusive a irmã Cyril, interpretada com grande ternura por Lesley Manville).

Será do choque de duas figuras com desejos absolutamente conflitantes - Woodcock quer a modelo submissa e perfeita (e se declara um "solteiro convicto"), Alma talvez queira um companheiro e alguém para dividir os prazeres da vida - que resultará em algumas das melhores sequências do mais recente longa de Paul Thomas Anderson (Magnólia, Sangue Negro, O Mestre). Sem pressa para apresentar cada detalhe da vida e da personalidade das personagens que envolvem essa obra-prima moderna, Anderson enriquece a experiência utilizando-se de um opulento desenho de produção - a trama se passa nos anos 50 -, com figurinos deslumbrantes e trilha sonora onipresente. Os cenários, classudos, fazem o contraponto perfeito para a sutileza dos comportamentos, com Woodcock e Alma funcionando como se estivessem envolvidos em um jogo de xadrez em que, a vitória, será representada por pequenas conquistas, de acordo com seus interesses particulares.


Pode não ser um filme tão fácil para quem está mais acostumado a linguagem urgente dos filmes recheados por grandes reviravoltas (ou mesmo por cenas de ação). Mas quem se arriscar pelas curvas sinuosas dessa obra cheia de nuances psicológicas, de relacionamentos complicados e de sequências delicadamente surpreendentes, será recompensado por uma das mais interessantes dinâmicas envolvendo um casal, no cinema. Woodcock, em seu íntimo, parece ser uma espécie de Peter Pan. Uma criança que nunca cresceu. E que vê na acolhida do colo de Alma uma espécie de regozijo para o corpo fragilizado que retorna no tempo para encontrar o afeto da mãe. Carência e admiração caminhando lado a lado. Um acordo tácito - literalmente tóxico - capaz de definir a perfeição a complexidade dos relacionamentos. Nunca fáceis. Sempre desafiadores. E, invariavelmente, apaixonantes.

Nota: 9,5

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - A Ovelha Negra (Islândia)

DE: Grimur Hakonarson. Com Sigurour Sigurjónsson, Theodór Júliusson e Gunnar Jónsson. Comédia dramática, Islândia, 2015, 92 minutos.

Difícil imaginar o quão triste deva ser para um ovinocultor ter de se desfazer de seu rebanho por causa de alguma doença - e, em partes, pode-se dizer que é isto o que assistimos no contemplativo A Ovelha Negra (Hrútar), filme islandês vencedor da mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes de 2015. Gummi (Sigurjónsson) e Kiddi (Júliusson) são dois irmãos que vivem lado a lado em uma isolada fazenda deixada pelos pais de ambos. Brigados e sem se falar a 40 anos, tem em comum a paixão pela criação de ovelhas e cordeiros que servem não apenas para seu sustento, mas também para a participação em concursos para a escolha do melhor animal. No mesmo dia em que Gummi perde para Kiddi uma dessas competições, o primeiro constata - ele já desconfiava antes, como podemos observar na primeira cena da película - que os animais do irmão possam estar sofrendo de scrapie, espécie de doença neurodegenerativa que ataca os ruminantes.

Quando uma equipe de veterinários local confirma que, de fato, a doença assola os produtores, não resta alternativa a não ser sacrificar os rebanhos. O que, invariavelmente, gerará grande comoção entre os agricultores que, além de se desfazerem de seus animais, deverão queimar o estoque de feno (ou de outros tipos de pastagens), higienizar ambientes e reconstruir galpões - devendo aguardar, ainda, o tempo mínimo de dois anos para que possam retomar a atividade sem que haja qualquer risco sanitário. O que, não se pode negar, se constitui em uma espécie de tragédia para quem depende da criação de animais para sobreviver. Enquanto Kiddi acredita que Gummi o possa ter denunciado por ter ficado com ciúmes do resultado do concurso, o segundo se esforça para abrigar, no porão de sua casa, um grupo de ovelhas que ele acredita ter se livrado da patologia. E não é preciso ser nenhum adivinho para saber que, não demorará, o "segredo" virá a tona.



Apostando muito mais nos silêncios e na sutileza de olhares e de movimentos de seus protagonistas do que em gestos expansivos, o diretor Grímur Hákonarson apresenta seus personagens - bem como suas personalidades e jeitos de ser - de forma absolutamente orgânica e fluída. E se Kiddi parece ser um sujeito de presença muito mais "forte" (o que pode ser observado, por exemplo, na dificuldade que tem em aceitar as "orientações" dos veterinários, com direito a discussões e brigas em frente à propriedade), Gummi parece ser uma pessoa muito mais compreensiva em relação a realidade que se apresenta. (ainda que ambos, inegavelmente, estejam doloridos) Nesse sentido, a opção de Gummi por, ele mesmo, matar o seu rebanho, ainda que, inicialmente, pudesse soar como um gesto "cruel", apenas serve para que notemos, no instante seguinte, a natureza da relação absolutamente afetuosa que mantinha com os seus animais.

E se a fotografia (e os cenários) são um espetáculo a parte - o frio é tão "palpável" que parece saltar da tela -, o mesmo pode-se dizer da relação entre os irmãos, capazes de ir do ódio eterno a reconciliação em alguns minutos (especialmente quando ambos percebem que, somente se juntarem forças, serão capaz de tentar salvar parte daquilo que integra as suas histórias). Com interpretações de fazer cair o queixo - a naturalidade com que ambos os atores "pastoreiam" os seus rebanhos é surpreendente - o filme ainda serve como uma verdadeira aula a respeito das frustrações que os agricultores, em qualquer parte do mundo, podem sofrer - e sobre como é importante o suporte do Governo, para que estes não se vejam completamente desassistidos em casos de perdas. Uma obra simples, minimalista, comovente e ironicamente engraçada, que ainda possui um daqueles finais que permanecerá por horas na cabeça de qualquer cinéfilo.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Músicas Gêmeas - Spin Doctors x Third Eye Blind

Esse negócio de achar música parecida tem rendido tanto que, hoje, o Buzzfeed publicou um post em que comenta - acreditem - as semelhanças entre Vai Malandra, da Anitta, e a música-tema do crocodilo Tick Tock da animação Peter Pan, lançada pela Disney em 1953. E o mais incrível é que, sim, as canções de fato se parecem. Proposital? Não? Alguma ideia escondida nos confins da memória que é reutilizada por algum produtor esperto como se fosse algo novo? Não sei, acho que nunca saberemos. O "causo" é que são muitas as músicas parecidas no mundo, o que não chega a surpreender já que são tantos anos de produções.

Ontem estava assistindo ao primeiro episódio da ótima série Everything Sucks da Netflix - quem era adolescente nos anos 90 não pode deixar de ver - e eis que, lá pelas tantas, começa a rodar a música Two Princes, lançada pelo Spin Doctors, em 1993. E foi nessa hora que eu lembrei que eu SEMPRE me confundia quando, na MTV, começava a rolar essa canção e eu pensava estar tocando Semi-Charmed Life do Third Eye Blind - ainda que a segunda tenha surgido depois, em 1997. Existe alguma coisa na batida, na forma de cantar, no andamento... não sei dizer. O fato é que ambas possuem alguma semelhança naquele estilo banda noventista americana branquela. Aliás, onde estarão o Spin Doctors e o Third Eye Blind? Me digam vocês, enquanto relembram estas pérolas dos anos 90.




Cinema - The Post - A Guerra Secreta (The Post)

De: Steven Spielberg. Com Meryl Streep, Tom Hanks, Bob Odenkirk, Sarah Paulson, Alison Brie e Michael Stuhlbarg. Drama / Suspense, EUA, 2018, 117 minutos.

Em um cenário de completa descrença no jornalismo, em que as fake news e as barrigadas são a ordem do dia e em que as redações parecem estar mais conectadas do que nunca aquilo que determina o setor comercial, um filme como The Post - A Guerra Secreta (The Post), deveria ser filmografia básica em qualquer curso de Comunicação Social. Não que isso fosse mudar alguma coisa dentro do atual modus operandi das empresas do meio ou mesmo do fazer jornalístico como um todo - atualmente NADA conectado com aquilo que interessa, de fato, a população, que é a informação de qualidade. Mas, ainda assim, talvez servisse, num gesto de desespero nostálgico, como uma espécie de homenagem àqueles jornalistas e editores - ou mesmo aos grupos que os coordenavam - que buscavam a notícia pautada pela verdade e pela e ética acima de tudo (e de todos), nem que para isso tivesse que passar por cima de poderosas instituições, como no caso o Governo.

Sim, o mais recente filme de Steven Spielberg é sobre jornalismo. E sobre os bastidores da política. E, talvez por isso, possa soar meio enfadonho num primeiro momento. Mas o caso é que, como quase sempre ocorre com o diretor, estamos diante de um filmaço! Rico em termos de roteiro, cheio de grandes personagens (e interpretações) e com reviravoltas de tirar o fôlego. Sim, acredite: reviravoltas. A trama retorna para o começo dos anos 70 quando o New York Times inicia, com base em um grande volume de documentos sigilosos vazados do Pentágono, uma série de reportagens denunciando o fato de vários governos norte-americanos - Eisenhower, Kennedy, Johnson - terem mentido por mais de 30 anos acerca da atuação do País na Guerra do Vietnã (o que teria resultado em mais de 50 mil americanos mortos no conflito, em uma Guerra considerada "perdida").



Presidente na época, Richard Nixon resolve processar o periódico com base na Lei da Espionagem - estabelecendo ainda uma cláusula que determinava que nada mais poderia ser divulgado sobre o assunto, em veículo de imprensa algum. Só que um dos integrantes da redação do The Washington Post - um jornal menor, à época - acaba tendo contato com a fonte que vazou a informação para o diário Nova Iorquino. O resultado: mais de sete mil páginas de documentos secretos vão parar nas mãos de Ben Bradlee (Tom Hanks) e sua equipe que, agora, devem convencer a dona do jornal, Kat Graham (Meryl Streep, capaz de levar qualquer película a um outro patamar, só com a sua presença), a publicar os documentos, como forma de protesto e como forma de defesa da importância da liberdade de imprensa. A decisão para Kat não será tão simples: herdeira do jornal (que era mantido pelo falecido marido), acaba de fechar contrato com novos acionistas que pretendem investir na publicação. Muitos deles integrantes de bancos e outras corporações diretamente ligadas ao Governo.

O embate é interessante, instigante e conduzido com a habitual elegância por Spielberg - aliás, impressionante a sua capacidade de enriquecer o roteiro, que se torna cheio de nuances no que diz respeito não apenas a relação entre os próprios veículos de imprensa, destes com a opinião pública (que fica a seu lado em um período de grandes transformações na sociedade) e destes com setores como o Departamento de Defesa Americano. Trazendo ainda um subtexto complexo e rico sobre a presença de uma mulher em um cargo que "deveria" (naturalmente, entre aspas), ser ocupado por um homem, o filme ainda brilha por mostrar a coragem e a ousadia de um veículo que, sem medo da censura, peitou as organizações mais poderosas dos Estados Unidos para mostrar que, em uma guerra patética, somente a população americana saiu perdendo. Com coadjuvantes de luxo - Bob Odenkirk e Michael Stuhlbarg (aliás, que ano para o ator que também integrou o elenco de Me Chame Pelo Seu Nome e A Forma da Água), só pra citar dois - a obra é uma ode ao bom jornalismo. E ao bom cinema, claro.

Nota: 8,5

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Novidades em DVD - Corra! (Get Out)

De: Jordan Peele. Com Daniel Kaluuya, Allison Williams, Bradley Whitford e Catherine Keener. Suspense, EUA, 2017, 104 minutos.

Provocar a discussão não sobre o racismo escancarado (como aquele, dos seguidores do Bolsonaro, que vociferam o seu ódio na internet) e sim sobre aquele tipo de preconceito que aparece muito mais nas entrelinhas, de forma velada, é algo que o excepcional Corra! (Get Out) consegue com perfeição. Filme sensação da temporada - não por acaso indicado em algumas das principais categorias para o Oscar, entre elas Melhor Filme, Diretor (Jordan Peele) e Ator (Daniel Kaluuya) - a obra foi ganhando força na mesma proporção em que era mais assistida (e mais comentada) desde o seu lançamento, ainda no primeiro semestre. E não apenas pela importância de seu tema, mas também por ser um excelente thriller capaz de misturar elementos de terror, de fantasia e até de comédia na mesma medida, sem por isso diminuir o impacto daquilo que se propõe.

Sim, que o racismo não acabou nem nos Estados Unidos e nem aqui não chega a ser uma novidade. Mas buscando trazer para o debate o racismo estrutural - aquele tipo que está enraizado em nossa sociedade e que trata de forma "natural" a discriminação de negros no mercado de trabalho ou em outras esferas da sociedade, por exemplo -, o diretor Jordan Peele, em sua estreia, nos apresenta ao jovem fotógrafo Chris (Kaluuya), que namora a caucasiana Rose (Allison Williams). Chris está preocupado por que será este o final de semana em que ele será apresentado aos pais de Rose, que moram em uma casa de campo no interior dos Estados Unidos. "Meu pai, se pudesse, votaria novamente no Obama", explica a jovem, tentando justificar o fato de que seus pais não são racistas, após ser perguntada por Chris se ela teria dito a eles que estava namorando um negro.



A preocupação dele começa a fazer ainda mais sentido quando o casal chega a propriedade dos pais de Rose. Para Chris, ainda que o comportamento excessivamente amistoso dos sogros Dean (Bradley Whitford) e Missy (a sempre ótima Catherine Keener) pareça muito mais uma forma desajeitada de tentar lidar com o fato de ele ser negro, há no ar uma sensação de estranhamento permanente e generalizada que só parece se ampliar conforme o filme avança (o que é reforçado pela excelente trilha sonora, pela presença de ótimos personagens secundários - como o irmão de Rose - e pela atmosfera criada, que contribuem para o clima de tensão). E quando ele percebe que absolutamente TODOS os empregados da família são negros e se comportam de forma curiosamente amigável, com modos educados e olhar distante, ele conclui que, sim, ali pode haver algo a mais do que a simples coincidência que, historicamente, coloca os negros na posição de subserviência na relação com os brancos.

Reservando para a segunda metade da obra os momentos mais tensos da película, Peele ainda surpreende por conseguir incluir um personagem - no caso o agente de imigração e transportes Rod (Lil Rel Howery) - como alívio cômico. Algo que ocorre de uma forma absolutamente orgânica, sem comprometer a projeção e sem tornar a obra um caos em termos de gênero. Apostando muito mais na sutileza do que na "crítica escancarada" (percebam como se comporta um policial durante uma abordagem ao casal, como as roupas de Rose mudam drasticamente de cor depois que ela se "revela" ou mesmo como os integrantes de uma festa na casa da família reforçam, discretamente, os estereótipos), Corra! ainda tem na interpretação de Kaluuya, uma de suas forças - e não deixa de ser impressionante a capacidade de, apenas com o olhar, o jovem ator conseguir transmitir ao mesmo tempo medo, curiosidade, desconfiança e outros sentimentos. Um filme de baixo orçamento, mas certamente de grande importância. E que, não por acaso, foi o nosso oitavo colocado na lista de 25 Melhores Filmes lançados no ano passado.

Nota: 9,0

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Disco da Semana - Franz Ferdinand (Always Ascending)

Eu mal estava no segundo ano do curso de Jornalismo quando o Franz Ferdinand lançou o seu primeiro disco - e é meio curioso pensar que já se vão quinze anos daquelas festas da Comunicação Social em que a moçada sacolejava a som de clássicos modernos como Take Me Out, This Fire e The Dark Of The Matinee. De lá para cá muitos colegas tentaram ser músicos - alguns replicando as próprias canções dos escoceses em rodas de violão constrangedoras -, outros se formaram, outros ficaram pelo caminho e mais alguns largaram tudo pra tentar a vida em outros lugar, sumindo do mapa. Só o que não mudou nesse tempo todo foi a capacidade de Alex Kapranos e companhia fazerem o povo dançar com aqueles roquinhos que vão no limite do post-punk oitentista e do rock alternativo aliado aos sintetizadores e a outras eletronices.

Sempre foi assim: as melodias certeiras, o clima divertido e efervescente de festa que vai madrugada adentro, as guitarras bem pontuadas, o baixão que se sobressai. Agora no quinto registro - intitulado Always Ascending - o quarteto dá mostras que envelheceu bem e que continua disposto a fazer a gurizada mexer o esqueleto. Isso é bom? Bom, aqueles críticos mais exigentes (bem longe do nosso caso) talvez afirmem que o grupo venha lançando, sistematicamente, álbuns pouco inventivos ou com aquele clima de "mais do mesmo" com pequenas variações aqui e ali. Mas, vem cá, tem coisa melhor do que ouvir um novo trabalho daquela banda do coração, que não seja cheio de invencionices? Excessivo demais? Que seja na medida certa para aumentar o volume durante a caminhada, no som do carro ou na festinha da Comunicação Social? (será que eles continuam fazendo?)



É nessa busca pela rock simples e direto que a banda parece dialogar ainda mais com aquilo que ela própria fez no passado - e no passado como um todo. Não é por acaso que faixas como Feel The Love Go talvez pudessem representar uma continuidade natural do grupo de canções apresentado no primeiro trabalho. Ainda assim, honrar o passado não significa ignorar o presente ou mesmo rechear a novo registro com ideias anacrônicas ou ultrapassadas. Assim, não é difícil de constatar, em cada curva do novo álbum, algum efeito levemente inovador, um refrão mais descolado (ainda), um dedilhado não tão óbvio. Ou mesmo o diálogo com outras vertentes nem sempre exploradas pelo grupo - como no caso da (levemente) psicodélica Slow Don't Kill Me Now, que consegue soar nostálgica e contemporânea na mesma medida.

Com aquele charme cativante de sempre a banda segue apostando na ironia em suas divertidas letras que versam, entre outros, sobre a fragilidade dos relacionamentos em um mundo tecnológico (Glimpse Of Love) e sobre boas escolhas que, com algum cinismo, poderiam mudar o mundo (Lois Lane). Já a melhor canção de todas, Lazy Boy, tem aquele clima davidbowiano numa ida para o espaço sideral em meio a divagações magnéticas sobre a letargia juvenil. "Quando as coisas no mundo real estão indo tão mal e há essa sensação de mal iminente, a música é o lugar para onde as pessoas procuram fugir", afirmou o baixista Bob Hardy em entrevista ao Tenho Mais Discos Que Amigos, explicando, de certa forma, essa simplicidade buscada pelo grupo - e que também tem a ver com o produtor Philippe Zdar, que já trabalhou com o Phoenix. Simples, bom, dançante e divertido.

Nota: 8,0 

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Na Espera - Courtney Barnett (Disco)

Pra quem curte boa música não pode haver notícia mais legal do que o anúncio de um novo álbum daquele artista que gostamos - e aqui no Picanha ficamos altamente empolgados com a notícia de que a australiana Courtney Barnett vai lançar o seu segundo trabalho - Tell Me How You Really Feel - no próximo dia 18 de maio! Especialmente aguardado após o sucesso de Sometimes I Sit and Think and Sometimes I Just Sit - nosso oitavo colocado na lista de 25 Melhores Discos Nacionais de 2015 - o trabalho será lançado pelos selos Mom + Pop, Marathon Artists e Milk! Records - este último gerenciado pela própria artista. O disco chega ainda na esteira dos elogios colhidos pelo álbum Lotta Sea Lice lançado em parceria com o guitarrista norte-americano Kurt Vile.


Além do anúncio, a artista revelou ainda o primeiro single, de nome Nameless, Faceless - em videoclipe dirigido por Lucy Dyson -, além da arte da capa e a lista de músicas do registro. Pelo que se pode depreender do primeiro single, o estilo irônico das letras - I wanna walk through the park in the dark / Men are scared that women will laugh at them, debocha ela no grudento refrão - segue firme e forte, bem como a forma de cantar que nos faz lembrar um encontro entre o Pavement e a Sheryl Crow em modo shoegazer. Bom, nem é preciso dizer que estamos Na Espera.

TELL ME HOW YOU REALLY FEEL – Músicas
Hopefulessness
City Looks Pretty
Charity
Need a Little Time
Nameless, Faceless
I’m Not Your Mother, I’m Not Your Bitch
Crippling Self Doubt and a General Lack of Self-Confidence
Help Your Self
Walkin’ on Eggshells

Sunday Roast



Cinema - Artista do Desastre (The Disaster Artist)

De: James Franco. Com James Franco, Dave Franco, Seth Rogen, Alison Brie e Jacki Weaver. Comédia dramática / Biografia, EUA, 2018, 104 minutos.

Histórias sobre os bastidores de Hollywood já renderam bons filmes e não é diferente com o sensacional Artista do Desastre (The Disaster Artist) - uma narrativa tão improvável que, não fosse baseada em fatos reais, talvez fosse difícil acreditar que ela de fato tenha acontecido! A trama resgata a trajetória do excêntrico - sério, acho que excêntrico é pouco - Tommy Wiseau (James Franco), sujeito megalomaníaco que sonhava em ser ator na Meca do cinema mundial. Sem absolutamente nenhum talento, mas com muita confiança, Tommy - que mais parece saído de algum videoclipe de alguma banda de "metal farofa" dos anos 80 - tenta a sorte por meio de participações em aulas de atuação. Em uma delas se aproxima e se torna amigo do jovem Greg Sestero (o irmão de Franco, Dave), com quem divide o sonho de fazer sucesso em um mercado com alto grau de exigência.

Sim, eles receberão muitos "nãos" e, cansados de serem rejeitados em testes, partirão juntos para Hollywood. É lá que Tommy produzirá, dirigirá, escreverá e protagonizará, ao lado do melhor amigo, o próprio filme. O resultado: The Room, obra considerada a pior de todos os tempos - e que hoje é exibida regularmente no circuito alternativo, tendo recebido, inclusive, o status de cult. A trama se ocupa, em grande parte dos bastidores dessa produção que, diga-se, pode ter custado mais de US$ 6 milhões (dinheiro que ninguém sabe de onde veio, porque até isto é um mistério na vida de Tommy). E como a "plata" é que fala mais alto, Tommy contratará uma equipe de profissionais - editores, fotógrafos, diretores de cena, técnicos de som e de luz e figurinistas, além de atores - que conviverão, durante intermináveis 80 dias, com as extravagancias do sujeito.



Como não poderia deixar de ser em um filme desse tipo, com um protagonista tão singular, Franco (que também dirige) adota uma abordagem bem-humorada - e é impossível não gargalhar ao assistir os esforços de Tommy para tentar interpretar, mesmo nas sequências que poderiam ser consideradas mais fáceis de serem executadas por um ator minimamente profissional -, com destaque para as diversas participações especiais. Ainda assim, o realizador tem o cuidado de não transformar Tommy em uma simples caricatura exaltando assim, numa espécie de metáfora, todos aqueles que se esforçam na perseguição de seus objetivos. (e não é por acaso que - SPOILER - a cena final, com a plateia aplaudindo de pé a "comédia" The Room, em uma clara licença poética, se torna tão tocante e singela, numa verdadeira homenagem àqueles que se empenham em levar o universo do cinema para as nossas casas)

Sem deixar de brincar com o mau gosto em outros aspectos - o que dizer da trilha sonora que conta com a pérola kitsch Never Gonna Give You Up do cantor Rick Astley, entre outras breguices? - a película ainda satiriza a desorganização total e a completa falta de sentido de The Room por meio de pequenos erros de continuidade (observe como a bola de futebol americano quase nunca está no lugar certo enquanto Tommy e Greg brincam de arremessos, ou mesmo como o dia é capaz de virar noite de maneira inexplicável em questão de segundos), o que torna tudo ainda mais engraçado. Indicada para o Oscar na categoria Melhor Roteiro Adaptado - o livro de mesmo nome foi escrito pelo próprio Greg Sestero - a obra talvez tenha perdido força na reta final, por conta das acusações de assédio envolvendo James Franco. (e talvez este fato explique a sua ausência na categoria Melhor Ator, após ter faturado o Globo de Ouro, o que é sempre um ótimo termômetro) Ainda assim, trata-se de uma das mais improváveis e divertidas comédias do ano. E, se podemos dar uma dica, assistam The Room DEPOIS de ver o Artista do Desastre. Garantimos que tudo será AINDA MAIS HILÁRIO!

Nota: 9,5

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Cinema - Viva: A Vida É Uma Festa (Coco)

De: Lee Unkrich e Adrien Molina. Com Anthony Gonzalez VIII, Benjamin Bratt e Gael Garcia Bernal. Animação / Fantasia, EUA, 2018, 105 minutos.

Imagine você vivendo em um mundo em que não lhe fosse facultado o direito de ouvir música. Nunca. Em lugar nenhum. Sob pena de ser castigado pele mãe ou por algum outro familiar. Pois esta é a realidade do pequeno Miguel (Anthony Gonzalez VIII) de apenas 12 anos, o protagonista desta verdadeira joia da Pixar que, no Brasil, recebeu o nome de Viva: A Vida É Uma Festa (Coco). Ocorre que esta proibição remete a um trauma que envolve os antepassados de Miguel. Mais precisamente o seu tataravô, que abandonou a esposa e a filha pequena para seguir carreira como artista. Por conta do baque a música é banida do seio familiar, só que o problema é que Miguel não apenas ama as canções - especialmente as melodias românticas de seu ídolo Ernesto De La Cruz (Benjamin Bratt) - como ainda sonha em ser artista. Será possível conciliar isso?

Enquanto se esforça para, em segredo, participar de uma espécie de festival de talentos local, Miguel acompanha a movimentação familiar, com os seus parentes se preparando para a celebração do Dia dos Mortos - espécie de festa em homenagem àqueles que já partiram e que, de acordo com a crença, "autoriza" os mortos a visitar os seus parentes. Não é por acaso que as casas são enfeitadas com velas, flores, incenso, além da comida preferida daquele ente que já partiu. Ah, e também com fotos - artigo fundamental para que a memória seja mantida. Ao se meter em uma trapalhada no cemitério local e que envolve o furto do violão que está junto ao mausoléu de Ernesto De La Cruz - e que a esta altura Miguel acredita ser o seu falecido tataravô -, o menino acaba indo parar, por engano, do "lado de lá" (no mundo dos mortos). Bom, está feita a confusão.



Bom, este é o resumo de uma história absolutamente doce e delicada que, como já é tradição no universo da Pixar, nos faz refletir sobre temas diversos como a importância de acreditar nos nossos sonhos e o respeito a honra da família. Sim, não há nada de mais nisso e talvez essa abordagem até não seja nenhuma novidade. Mas a película de Lee Unkrich e Adrian Molina transforma a jornada do pequeno Miguel em uma viagem tão singela e repleta de simbolismos - confrontando vida s morte, sonho e realidade, entre outros - que é simplesmente impossível não se emocionar. Mesmo as reviravoltas do roteiro (que eventualmente poderão parecer meio óbvias) acompanham a lógica natural da trama em tentar transformar cada personagem em alguém um tanto mais complexo do que mostram as aparências. E reparem como Ernesto De La Cruz e Hector (Gael Garcia Bernal) se comportam de maneiras distintas - e nunca maniqueístas - no decorrer da película.

Contando com excelentes e inteligentes piadas - uma delas, impagável, envolvendo a artista Frida Kahlo - a obra ainda traz uma pungente e profunda mensagem sobre a importância de mantermos vivos em nossa memória aqueles que já partiram, o que expande a noção de amor não-físico e também o significado do afeto como parte da lembrança daqueles que, indiretamente, são parte de nós. Não por acaso, as cenas finais envolvendo a bisavó de Miguel (a Coco do título original), arrancarão lágrimas até dos mais duros corações. E, é preciso que se diga: só o fato de tratar da morte com tanta naturalidade (todas as crianças e adultos passarão por eventos dessa natureza), já torna Viva: A Vida É Uma Festa um dos grandes filmes de 2018. Favorito para a estatueta do Oscar na categoria Melhor Animação, a obra ainda é um combo sensacional de boa edição, linda fotografia e trilha sonora riquíssima, com o som mixado de maneira perfeita (capaz de fazer o espectador se envolver ainda mais com a história). Ah, e ainda há Remember Me, aquele tipo de canção que fica por horas na nossa cabeça, assim que terminada a sessão.

Nota: 9,0

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Cinema - Eu, Tonya (I, Tonya)

De: Craig Gillespie. Com Margot Robbie, Allison Janney e Sebastian Stan. Comédia dramática / Biografia, EUA, 2018, 120 minutos.

Filmes baseados em fatos reais sobre atletas indo do céu ao inferno não chegam a ser exatamente uma novidade e, mesmo que Eu, Tonya (I, Tonya) não chegue a ser um Touro Indomável (1980) - pra ficar em um dos exemplos mais famosos - consiste-se em uma obra tragicômica, que merece ser vista. A história que é resgatada aqui é a da atleta Tonya Harding (Margot Robbie) que, no começo dos anos 90, surgiu para o mundo como um dos mais promissores talentos da patinação artística no gelo. Apesar de alta e relativamente forte para o esporte ela foi a primeira mulher americana a conseguir executar o dificílimo salto triplo axel em competições, o que lhe garantiu títulos no campeonato nacional, além de um vice-campeonato no Mundial de 1991.

Tonya era uma das apostas dos Estados Unidos para a conquista do posto mais alto do pódio nos Jogos Olímpicos de Inverno de 1994. Mas o relacionamento abusivo com o violento marido Jeff Gilooly (Sebastian Stan) e as constantes humilhações e maus-tratos por parte da mãe (Allison Janney, em papel assustador) - com direito a toda a sorte de xingamentos e indiretas e até a facada no braço (!) "sem querer querendo" -, transformaram a vida da atleta em uma verdadeira descida ladeira abaixo. Não bastasse a baixa autoestima, apesar do estímulo das treinadoras, a situação piora quando Tonya participa de um bizarro plano durante a preparação para os já citados Jogos, que termina com outra patinadora - a rival Nancy Kerrigan - severamente machucada.



Se fosse tratado com o peso natural das tragédias que surgem na tela em efeito cascata, talvez Eu, Tonya fosse um filme meio difícil de ver. Talvez até intragável. Mas ao optar por uma abordagem mais leve - quase divertida -, o diretor Craig Gilespie (do ótimo A Garota Ideal) transforma a improvável história em uma daquelas comédias dramáticas capazes de nos deixar no limite entre o riso e o choro. Com ecos de filmes do Guy Ritchie e de Os Bons Companheiros (1990), com uma pitada de Irmãos Coen, a história é narrada em estilo documental, com direito a quebra da "quarta parede", o que confere um tom altamente intimista a trama. Além do artifício ser, diga-se muito engraçado - quem quebra a perna da sua amiga? questiona Tonya em certa altura da projeção.

A propósito de Robbie e Janney, ambas estão irrepreensíveis em suas caracterizações. E se a primeira parece se aproveitar da fama alcançada pela sua Arlequina no fraco Esquadrão Suicida (2016), repetindo aqui e ali uma espécie de sorriso alucinado e debochado (algo reforçado pela maquiagem) a moda de um "Coringa" do Jack Nicholson, a segunda compõe uma mãe capaz de se igualar a outras tenebrosas genitoras, como aquelas vistas em clássicos como Carrie - A Estranha (1976) ou mesmo em filmes mais atuais como Preciosa (2009). E não é por acaso que ambas foram lembradas em indicações para o Oscar desse ano, nas categorias Atriz e Atriz Coadjuvante, respectivamente, sendo Janney uma das favoritas em sua categoria. Com edição ágil e dinâmica - também indicada - Eu, Tonya talvez merecesse melhor sorte na maior premiação do cinema. Até mesmo por ser bem superior a obras medianas como Dunkirk e Lady Bird.

Nota: 8,5

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Cinema - A Forma da Água (The Shape Of Water)

De: Guillermo Del Toro. Com Sally Hawkins, Michael Shannon, Octavia Spencer e Richard Jenkins. Fantasia / Drama / Romance, EUA, 2017, 123 minutos.

Poucas vezes a empatia ou a importância do respeito às diferenças foi abordada de forma tão inteligente e delicada como no ótimo A Forma da Água (The Shape Of Water) - o grande campeão em indicações (são 13) e um dos favoritos para a estatueta principal na noite do Oscar. A obra é uma verdadeira ode aos desajustados, capaz de transformar uma criatura "meio anfíbio meio homem" (Doug Jones) na metáfora perfeita para as minorias ou mesmo para aquele sujeito que vive a margem da sociedade e que deve conviver em um mundo cheio de ódio, de preconceito e de intolerância. Sim, por trás da tocante história da faxineira muda Elisa (Sally Hawkins), que conhece e se apaixona pela criatura já citada, há a comprovação do cinema como força motriz para diálogos muito mais profundos do que aqueles que estão na superfície - com o perdão do trocadilho.

A trama retorna aos anos 60, época em que, em meio à Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética medem forças a partir de qualquer evento. Nesse contexto, Elisa atua como uma espécie de zeladora em um laboratório experimental secreto do Governo americano, local que recebe o fantástico ser que é capturado, como não poderia deixar de ser, em meio aos rios da Floresta Amazônica. Com acesso a sala em que a criatura é mantida presa - ela limpa o ambiente diariamente, em companhia da colega de turno Zelda (a sempre ótima Octavia Spencer) - Elisa estabelece uma espécie de amizade com o ser, em meio a olhares silenciosos, gestos contidos (e muita dieta a base de ovo). Só que o acesso ao local também tem o ônus, quando Elisa percebe que o prisioneiro é maltratado pelo agente Strickland (Michael Shannon em modo "sou fascista votante do Bolsomito"), que quer a morte deste para que seu corpo possa ser dissecado e estudado.



Preocupada com o destino do visitante, Elisa bola um plano de fuga que contará com a ajuda do vizinho Giles (o sempre ótimo Richard Jenkins) e da própria Zelda. Resumida dessa forma a obra de Del Toro (O Labirinto do Fauno) mais parece uma fantasia romântica com alguma intenção de ser filme de ação. Mas não. Ao contrário, película é uma verdadeira ode ao cinema, capaz de utilizar as suas cores e sons (que trilha sonora é essa??) como reforço para o caráter de devaneio onírico que acompanha toda a película. E não é por acaso que tantas sequências de A Forma da Água mostrem cenas de antigos musicais em preto e branco que - por meio da metalinguagem - dialogam com aquilo que estão sentindo seus protagonistas. Aliás, em certos momentos, Elisa e Giles surgem como se fossem habitantes do universo delirante de ficções altamente gráficas como Delicatessen (991) e Ladrão de Sonhos (1993), ambas dirigidas pelo (sumido?) francês Jean-Pierre Jeunet.

A propósito das cores, impressionante a capacidade de Del Toro em utilizá-las em favor da narrativa - e, nesse sentido, não chega a surpreender o o fato de o apartamento da protagonista e outros ambientes e objetos surgirem num tom verde escuro (numa cor meio de água de açude), o que acompanha também o seu melancólico figurino - que sutilmente ganhará novas cores, seja numa fita vermelha no cabelo ou outro detalhe de suas vestes, conforme o florescimento da paixão. O mesmo vale para o seu rosto, que aparecerá mais iluminado (e vivo) conforme os seus sentimentos forem mudando. Pródigo também em utilizar-se de rimas visuais - uma das que mais gosto envolve um homem arrastando outro pela boca (como se fosse um peixe) -, o diretor utiliza a água o tempo todo como um elemento onipresente da narrativa - na chuva, nos rios, no tanque em que é mantida a criatura, em goteiras, nos ovos que são fervidos, nos baldes carregados pelas empregadas, ou na banheira em que Elisa se masturba todas as manhãs. Algo que torna a umidade dos ambientes algo quase palpável para o espectador. E que se enche de significado conforme o filme avança.


Nem sempre fácil de ser assimilado - esse é aquele tipo de filme que costumamos dizer para as pessoas que estas devem entrar no clima da narrativa (fantasiosa, imprevisível, diferente, quase surrealista) - A Forma da Água também tem nas interpretações uma de suas forças. E não é por acaso que Sally Hawkins - que está assombrosa em sua caracterização, ainda que não diga uma palavra durante TODA a película -, Richard Jenkins e Octavia Spencer receberam indicações por suas interpretações. E, Shannon, é preciso que se diga, ainda que não lembrado, constrói Strickland como um sujeito que descarrega suas frustrações nos outros, enquanto vive um casamento de fachada ao modo "família de bem americana", acreditando-se superior (como homem hétero e branco), a mudos, negros, homossexuais e homens-anfíbio. Atualíssimo em seu debate e no diálogo com uma sociedade em franca transformação como a que vivemos, a obra ainda merece crédito por mão pesar a mão demais (não por acaso são vários os momentos divertidos, muitos deles protagonizados por falas de Spencer). É dessa forma que Del Toro constrói uma película que já nasce clássica. E que, no futuro, deverá ser lembrada como um das grandes de 2018.

Nota: 9,5

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Picanha em Série - O Conto da Aia (The Handmaid's Tale) 1ª Temporada

Texto: Ariana de Oliveira

Vamos pensar no nosso dia comum: trabalho, estudos, filhos, companheiro(a), saidinhas para um bar, uma rotina normal. Imagine acordar e perceber que tudo isso mudou drasticamente, isso mesmo, da noite para o dia. Mais drástico ainda para as mulheres: sem direitos sobre seus corpos, sem direitos civis, sem poder trabalhar, ter o dinheiro confiscado e nem ao menos poder ler. O pior cenário está pintado e é nele que a canadense Margaret Atwood conta, de uma maneira crua e instigante, a história de uma sociedade distópica em “O Conto da Aia”.

O seriado é uma adaptação do livro homônimo de 1985, o sexto de Margaret, e foi um dos grandes vencedores do Emmy Awards 2017, com toda a razão. Estrelado e também produzido por Elisabeth Moss, a série mostra uma sociedade com altos níveis de poluição ambiental e alto índice de infertilidade. O que fazer diante deste cenário? Como salvar uma sociedade que nem ao menos vai se perpetuar? Mudando os valores compartilhados, instalando uma nova ordem, reorganizando as funções de cada indivíduo e tirando todos os direitos civis, claro!

É neste contexto que a história se dá e a série se desenvolve.


June (Elisabeth Moss), ao tentar fugir com marido e filha para o Canadá é sequestrada e levada para a República de Gilead, mais especificamente para um centro de treinamento. É separada de sua filha, que vai para uma espécie de orfanato, de seu marido e é encaminhada a um centro de treinamento. Lá as mulheres aprendem a sua verdadeira função: ser dócil e reproduzir.

Para ilustrar a dura divisão dos papéis sociais e a rigidez das regras praticamente religiosas, cada indivíduo deve vestir conforme a sua função. A cor vermelha é destinada às “Aias”, que são mulheres férteis, destinadas à  reprodução e submissas a qualquer ordem (esta última característica é intrínseca a todas). Mulheres inférteis, ou “Martas”, são destinadas aos serviços domésticos e vestem cinza. As “Tias”, responsáveis pelo adestramento das mulheres sequestradas, são senhoras de mais idade e vestem marrom. E as Esposas, sempre arrumadas, bem comportadas e educadas, vestem verde. E os homens? Os homens são os Comandantes e desempenham os papéis de líder, de macho reprodutor e de dominador. Papéis bem conhecidos em nossa sociedade atual, digamos.

Seguindo na história. Após raptada, June aprende o seu novo papel social e é encaminhada à família do Comandante Fred. Ela então deixa de ser June para representar “Offred”, isso mesmo, ela agora é conhecida como “do Fred”,  uma propriedade ou um utensílio doméstico… uma roupa… Offred tem uma missão apenas: ser o corpo que vai gestar uma criança, já que supõe-se que a Esposa seja infértil e única responsável pela família sem herdeiros.


Em um ambiente de hostilidade,  de todas as formas e de todas as direções,  June passa a conviver com a Esposa, a Martha, o motorista e o Comandante. Sua rotina é fazer compras juntamente com outra aia vizinha. Ambas exercem entre si um papel de vigilância e punição. Elas devem atentar para que a outra mantenha a conduta sob pena de denúncia, posterior castigo físico e humilhação (servido de exemplo para as demais).

Já deu para sacar o quão machista e misógina é a República de Gilead e certamente qualquer, mas qualquer ser vivo, se comoveria e se revoltaria apenas com as imagens e representações ilustradas nos episódios.

Eis que chega uma hora que tu te perguntas: mas como é que isso tudo surgiu? Como há tamanha violência, coerção dos corpos e ditadura? Como isso é possível? Aí a série vai revelando que este projeto de  república foi criado por jovens fundamentalistas e  encabeçado pelo Comandante Fred e a Esposa. O objetivo deste projeto é salvar o mundo que está poluído, sem crianças e sem “pessoas de bem”. O foco deste planejamento é ter um mundo voltado aos valores morais cristãos, à ordem, ao crescimento econômico e à sustentabilidade ambiental.

Os capítulos vão circulando de maneira complexa em torno da inquietação de June (que procura uma saída, que procura a sua filha, que procura a vida deixada pra trás) e a sua obrigação única. Assim entramos em mais um pesadelo criado na narrativa: a procriação. Na República há muitos atos formais e não seria diferente no caso da reprodução.  Para tanto, uma cerimônia é feita envolvendo o triângulo  Esposa -  Comandante - Aia, e o resultado deste ritual é um ato triste, violento e trágico para todos, mas que deve gerar uma vida.


Offred segue na tentativa de engravidar, segue  humilhada, submissa, violentada e inconformada. Tudo isso é muito bem representado no olhar de Elisabeth Moss no decorrer dos capítulos.  Não existem alívios em “The Handmaid's Tale”, existe desesperança, existe medo e inconformidade até os últimos capítulos. Talvez o último nos deixe com uma pontinha de perspectiva positiva para a segunda temporada, mas o mais desesperançoso é entender que tudo isso pode ser possível na atualidade.