quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Tesouros Cinéfilos - Medianeras: Buenos Aires na Era do Amor Virtual (Medianeras)

DE: Gustavo Taretto. Com Javier Drolas, Pilar Lólez de Ayala e Inés Efron. Comédia romântica, Argentina / Espanha / Alemanha, 2011, 95 minutos.

Poucas vezes a juventude solitária, mas que mantém a esperança - especialmente no amor - em meio a um mundo cheio de pessoas e povoado pela tecnologia, foi tão bem descrita como magnífico Medianeras: Buenos Aires na Era do Amor Virtual (Medianeras), verdadeira obra-prima do cinema moderno argentino. Ainda que seja eventualmente pessimista em seu tom e no olhar para seus protagonistas - o webdesigner e fotógrafo ocasional Martin (Javier Drolas) e a arquiteta e vitrinista Mariana (Pilar López de Ayala) -, a película mantém um permanente clima de ternura e de leveza capaz de tornar a experiência não menos do que deliciosa. É um filme que traça um paralelo entre a arquitetura e o eventual crescimento desordenado e sem nenhum planejamento dos grandes centros, com as vidas das pessoas que também surgem desalinhadas, confusas, cheias de dúvidas, de fobias, de doenças e vivendo um sem fim de frustrações. E, pior: como encontrar o amor em meio a esse caos, especialmente após relacionamentos fracassados?

Mas a melhor notícia: não se trata de um drama pesado. Muito pelo contrário, ao adotar uma postura absolutamente literal em sua abordagem, o diretor e roteirista Gustavo Taretto transforma Medianeras em uma experiência gráfica que dialoga com o seu tempo e que é capaz de apresentar as metáforas - quase esfregadas na cara do espectador - de uma forma fluída, orgânica e totalmente deliciosa. Em resumo, é aquele filme gostoso de assistir. Mariana gosta de abrir o seu livro de Onde Está Wally? para procurar o famoso personagem nos mais variados locais - seja em shoppings, na praia ou no aeroporto. Bom, não é preciso ser nenhum gênio para supor que o "Wally" que ela nunca encontrou em uma daquelas páginas, poderá ser justamente o sujeito que encherá de cor os seus dias - assim como ocorre com as multicoloridas páginas de tal publicação.


Sim, é um filme romântico por excelência. Mas nunca aquele romantismo brega, piegas ou clichê. Tá, talvez um pouquinho. Mas é uma obra adorável e doce, que acompanha a rotina solitária dos personagens - Martin gosta de jogar videogame e assistir Astro Boy e faz um bico como cuidador de cachorros, enquanto Mariana se esforça para aturar um vizinho de prédio que gosta de executar música clássica ao piano -, bem como seus encontros e desencontros (eles são vizinhos). São duas pessoas aparentemente infelizes, com muitas diferenças, e que devem aprender diariamente a enfrentar um mundo que nem sempre lhes parecerá o mais inadequado. Na realidade, refletido na metrópole cinzenta, em grande parte das vezes parecerá aquele mundo frio, oblíquo, difuso e até mesmo opressor e claustrofóbico. Tal qual os cubículos e os prédios em que residem.

Repleta de frases de efeito significativas fruto das divagações de ambas as personagens em suas rotinas de isolamento - "que gênios esconderam o rio com prédios e o céu com cabos?", "a internet me aproximou do mundo, mas me distanciou da vida", "observar é estar e não estar", "quem dera minha cabeça funcionasse como um Mac" - a película ainda nos brinda com uma série de citações culturais, que vão de Manhattan (o filme do Woody Allen), passando pelo Jogo da Vida, até chegar a Star Wars. Tudo de uma forma orgânica, natural e que promove um verdadeiro deleita visual. O que torna Medianeras, com toda a sua plástica própria e toda a sua personalidade gritante, ela mesma em uma verdadeira peça de arte contínua - como se o próprio filme, com todos os seus elementos, objetos cênicos, trilha sonora e personagens complexos, fosse uma espécie de instalação artística pronta para ser apreciada.


Os mais exigentes talvez digam "ah, é só uma comédia romântica boba e adolescente, que não reflete a realidade da maioria dos jovens". Pode ser. Mas é uma experiência divertida, leve, despretensiosa, como muitas vezes podem (e devem) ser os produtos artísticos. Se talvez não haja tanta profundidade neste debate envolvendo a solidão (e até mesmo a depressão) da juventude na pós-modernidade, impossível é ignorar o realismo daquilo que vemos retratado na tela (e não seria difícil substituir Buenos Aires por Porto Alegre, pra ficar só num exemplo). E se o filme já existisste na era do Tinder, do Happn e de outros aplicativos de relacionamento? Talvez pudessem ser acrescentadas ainda outras camadas a obra. O que reforçaria o fato de que a tecnologia não para. Nos toma. Nos ocupa. Nos faz as vezes esquecer de como é importante viver a vida no mundo real. E a conclusão do filme nos mostra que NADA substitui isso. E que o acaso, muitas vezes, é capaz de nos surpreender.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - A Lição (Bulgária)

De: Kristina Grozeva e Petar Valchanov. Com Margita Gosheva, Ivan Barnev e Stefan Denolyubov. Drama, Bulgária, 2014, 111 minutos.

Sartre já dizia que "o inferno são os outros" e que as nossas ações deveriam, fruto da nossa liberdade individual, servir de espelho para a sociedade em que vivemos. Mas como tomar decisões exemplares diante de situações limite? É mais ou menos isso que discute o ótimo filme búlgaro A Lição (Urok). A obra inicia em uma sala de aula, onde uma professora de inglês (Gosheva) inquire os seus alunos a respeito do sumiço de uma certa quantia de dinheiro de um dos estudantes. Aparentemente rígida em seu código de ética, a docente se esforça para descobrir o responsável pelo pequeno delito, com a intenção de lhe ensinar uma lição sobre o caso. Não por acaso, como forma de resolver a questão, ao menos de forma paliativa, ela faz com que todos os colegas de turma doem uma certa quantia para cobrir o valor desaparecido no furto - sendo este devolvido para a dona.

Em seguida, ao chegar em casa, ela se depara com o marido sendo pressionado por um oficial de justiça sobre o atraso de três meses no pagamento do financiamento habitacional - em três dias a casa irá a leilão caso a dívida não seja saldada. Desempregado, o marido havia utilizado o dinheiro para comprar uma caixa de marchas nova para o trailer da família, com a intenção de vendê-lo e, assim, cobrir as despesas relativas a hipoteca. O que, evidentemente, não deu certo. Para piorar a situação, a empresa que a protagonista presta serviços de tradução de textos - um complemento de renda - não apenas lhe atrasa os pagamentos, como acaba falindo. (e, diante desse cenário de burocracia, de pressão institucional e de descaso com as camadas mais humildes da população, é impossível não comparar a Bulgária parlamentarista com o Brasil presidencialista)


O que se assiste a partir desse processo é uma verdadeira espiral descendente onde o aviltamento financeiro é o gatilho para uma improvável bola de neve em que uma ação leva a outra muito pior, com o objetivo de levantar o dinheiro para o pagamento da dívida. Se um encontro com o pai (aparentemente rico e bem de vida) é um desastre que traz a tona mágoas do passado, pior ainda será a obtenção de verba com um agiota claramente mal intencionado. Nesse sentido, se consiste em uma obra preciosa que discute a falência de um sistema - no caso o capitalismo - que, em muitos casos, beneficia uma pequena parcela da população, para deixar a grande maioria do povo na miséria. E o pior, transforma uma professora dona de um rígido código de conduta - e que deveria certamente ser alguém muito mais respeitada na esfera social - em uma pessoa a margem da sociedade, que deve se sujeitar a um sem fim de humilhações com a intenção de manter um mínimo de dignidade.

Não é uma obra fácil de assistir - como ocorre, em muitos casos, com os filmes do Leste Europeu. E se a Bulgária não tem assim uma grande tradição cinéfila - especialmente pelos problemas financeiros enfrentados pelo País e pela queda do padrão de vida da população, com o fim da União Soviética - pode-se dizer que esse A Lição dá uma verdadeira "aula" (perdão pelo trocadilho) de bom cinema de estilo social. O que pode ser observado pelas interpretações (com destaque para Gosheva), pela fotografia pálida - tal qual a vida das personagens que assistimos na tela -, pela quase completa ausência de som (o som diegético é muito bem utilizado e mixado) e pelo figurino que retrata bem a condição social de cada um dos envolvidos. (e observar o agiota utilizando uma camiseta que mostra dois animais "se comendo" não é apenas uma rima visual desalentadora, mas um retrato quase literal daquela que pode ser considerada a realidade vivida pela família da protagonista) Um filme realista, seco, melancólico e que ainda conta com um final inesperado. Vale conferir!

Na Espera - Phantom Thread (Filme)

Finalmente uma parte do mistério que envolve a nova produção do diretor Paul Thomas Anderson (Magnolia, Sangue Negro, O Mestre) foi desvendada, com a divulgação de um trailer para o filme Phantom Thread, que tem estreia mundial prevista para o dia 25 de dezembro! Sério candidato a figurar entre os indicados do Oscar 2018 - em várias categorias - o filme se passa em meio ao glamour da Londres dos anos 50, onde o renomado costureiro Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis em seu último papel, antes da aposentadoria) e sua irmã Cyril (Lesley Manville) estão no centro da moda britânica, vestindo a realeza, estrelas de cinema, herdeiros, socialites, debutantes e damas com o distinto estilo da Casa de Woodcock.



Na trama, mulheres parecem ir e vir na vida de Woodcock, entregando inspiração e companhia ao solteiro, até o dia em que ele encontra a jovem e opiniosa Alma (Vicky Krieps), que logo se torna um acessório em sua vida como musa e amante. Uma vez "controlado" pela moça, ele verá sua vida minuciosamente planejada ser interrompida justamente pelo amor. O trailer tem estilo classudo e dá a impressão de que virá por aí uma película com grande interpretação de Day-Lewis, em uma obra que ainda deverá receber atenção pelo desenho de produção, pela fotografia e também pela trilha sonora. Na bolsas de apostas o hype tem falado mais alto e há a expectativa é a maior possível. Por aqui, naturalmente, já estamos Na Espera!


terça-feira, 24 de outubro de 2017

Novidades em DVD - O Estranho Que Nós Amamos (The Beguiled)

De: Sofia Coppola. Com Colin Farrell, Nicole Kidman, Kirsten Dunst e Elle Fanning. Drama, EUA, 2017, 93 minutos.

Sou um fã do trabalho da diretora Sofia Coppola, o que torna a decepção um pouco maior com o resultado alcançado pela refilmagem de O Estranho que Nós Amamos (The Beguiled) - o original foi dirigido por Don Siegel, em 1971. Sob a desculpa de "aparar as arestas" e retirar boa parte do componente politicamente incorreto do original, tentando ainda - com justiça, diga-se - focar a trama muito mais nas moradoras do internato em que vai parar o soldado da União John McBurney ((Farrel), Sofia consegue apenas reduzir a carga dramática e a tensão sexual de um filme que, diga-se, já nem era lá grandes coisas no original. Pior ainda: suprimir da história sequências como a do beijo do soldado em uma menina de 12 anos (o que ocorre no original) e, pior, fazer desaparecer do mapa a escrava Holly, que tinha valioso papel na discussão do preconceito - basta lembrar das escabrosas reação da personagem de Clint Eastwood no terço final da obra de 1971 -, é fazer de conta que, em um cenário de guerra (ou mesmo no cotidiano), outros crimes horrorosos como pedofilia e racismo não existem.

Nesse sentido, ao ignorar essas subtramas, a diretora não melhora a obra do ponto de vista do debate em relação a estes temas. Muito pelo contrário, especialmente para quem não viu ao filme antigo. Aliás, enquanto assistia a moderna releitura da diretora - sempre estilosa do ponto de vista do desenho de produção, da fotografia e da edição de som - apenas conseguia pensar em como os integrantes do MBL ficarão felizes diante dessa releitura, que joga no lixo questões cruciais discutidas no roteiro da película inaugural. E me admira alguns críticos profissionais de cinema (longe do nosso caso, aqui no Picanha) estarem valorizando essa escolha, como se esconder temas espinhosos debaixo do tapete automaticamente nos livrasse deles. Racismo e pedofilia existiam aos montes na época da Guerra Civil Americana? Sim, provavelmente é só ir para a internet para que se constate isso. Mas no filme de Coppola isso não aparece. Ou aparece pouco. Como se o espírito transgressor da arte não pudesse nos servir justamente para a reflexão sobre assuntos considerados tabu.



E se algumas escolhas não são tão interessantes, apagando parte da força político-ideológica do filme, outras são muito mais adequadas aos tempos em que vivemos. A própria Amy (Oona Lawrence), a menina de 12 anos que encontra o soldado ferido em um matagal próximo ao internato de mulheres gerenciado pela diretora Martha Farnsworth (Kidman), é muito mais ingênua do que no original - afinal de contas, nunca é demais lembrar que se trata de uma criança. Já a aparente disputa entre todas as mulheres do internato - que envolve ainda a professora Edwina (Dunst) e a aluna Alicia (Fanning), além de Martha - pela atenção do inesperado visitante (um inimigo que deverá se recuperar para ser entregue aos oficiais confederados do Sul, onde se passa a história) é atenuada, provavelmente, pelo bem da sororidade. O que explica, por exemplo, a exclusão da sequência do original em que Alicia, numa explosão de ciúmes em relação a Edwina, praticamente entrega o soldado inimigo ao pendurar um pano azul no portão do educandário (que era o sinal que advertia as tropas sulinas para a presença do inimigo).

Só que, do ponto de vista da carga dramática, estas escolhas também reduzem parte da força da obra. E se no filme mais recente os jogos e provocações entre as meninas parecem mais discretos ou mesmo atropelados - na intenção de dar mais espaço em cena para todas, o resultado parece meio confuso -, o mesmo vale para a condição imposta ao soldado McBurney. Se no original ele ficava literalmente trancado no quarto, num clima permanente de tensão, de claustrofobia e de luxúria, no segundo filme ele não apenas transita livremente, como se torna até mais "amigo" das companheiras de internato. O que também diminui drasticamente o clima de sedução, que agora parece muito mais insosso. Nesse sentido, até mesmo o impacto visual das escolhas de Martha no terço final, a partir dos eventos ocorridos na casa, é reduzido (por mais que o trailer tente vender o contrário).


Sim, comparar esta com aquela obra nunca é bom e é evidente que Sofia Coppola tentou de todas as formas imprimir o seu estilo, transformando o seu O Estranho que Nós Amamos em uma película mais urgente, moderna e até mesmo palatável para todas as famílias de bem. Mas para a diretora que já nos brindou com obras-primas modernas como As Virgens Suicidas (1999) e Encontros e Desencontros (2003), me pareceu faltar mesmo foi uma boa dose de ousadia. Debater assuntos caros aos tempos em que vivemos, como, empoderamento feminino, racismo, pedofilia, machismo e outros, não é transformar um filme (ou qualquer produto artístico) em algo certinho ou fácil de assistir. É, sim, utilizá-lo para escancarar essas feridas que até hoje fazem a sociedade sangrar. Aliás, nem sangue se vê no filme. As bombas da guerra explodem lá longe, as pernas não aparecem rasgadas, os soldados parecem mansos demais (e não os inimigos que talvez fossem). Para quem quer uma experiência um pouco mais interessante sobre o filme dirigido a partir do livro de Thomas Cullinan, a versão do começo dos anos 70 ainda é melhor. Infelizmente.

Nota: 6,3

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Lançamento de Videoclipe - Phoenix (Ti Amo)

É praticamente impossível permanecer alheio ao retrô sofisticado dos franceses do Phoenix que, com o seu mais recente lançamento, Ti Amo, promove uma divertida mistura de pop oitentista com o cancioneiro kitsch italiano. E a prova de que o que vale mesmo para o quarteto é o bom humor, está justamente no lançamento do videoclipe para a faixa-título, que alterna imagens de diversas localidades da Itália com outras sequências que envolvem filmes rodados no País, tudo amparado por uma nostalgia e uma graça cheias de charme. (e sem esquecer que a letra da música é MUITO engraçada, com citaões ao Festival de San Remo, a série Bonanza e até a Beethoven) Já assistiram ao vídeo? Bora clicar pra conferir!

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Grandes Filmes Nacionais - O Pagador de Promessas

De: Anselmo Duarte. Com Leonardo Villar, Glória Menezes, Dionísio Azevedo, Norma Bengell e Othon Bastos. Drama, Brasil, 1962, 97 minutos.

Por mais que a icônica imagem do Zé do Burro carregando uma pesada cruz de madeira até a porta de uma Igreja, com o objetivo de prestar contas a Santa Bárbara, se mantenha até hoje no imaginário coletivo do público brasileiro, o que torna O Pagador de Promessas - obra de Anselmo Duarte adaptada da peça de Dias Gomes - um filme tão atemporal, efervescente e vigoroso é a sua temática. Afinal de contas, abordar a intolerância e o preconceito religiosos é falar não de algo sepultado na Idade Média e sim dos tempos atuais. De um período em que a Igreja convive com a dificuldade de se modernizar, mantendo-se próxima das "famílias de bem", e com os dois pés bem fincados em um conservadorismo que surge com força total também na esfera política. O que, de forma desoladora, impossibilita avanços dos mais simples, como a aceitação do pluralismo religioso, até outros mais complexos, e que envolvem o debate científico e cultural.

Na trama, Zé do Burro (interpretado de forma comovente por Leonardo Villar) e sua esposa Rosa (Glória Menezes) chegam a Salvador após uma longa caminhada de mais de 40 quilômetros desde a propriedade rural em que moram. O protagonista tem consigo a já mencionada cruz, que é parte de uma promessa feita a Santa Bárbara, após o seu burro de estimação ser atingido por um raio - e ter se restabelecido depois. O problema é que, desesperado, Zé faz a promessa em um terreiro de candomblé, o que acaba sendo uma afronta para o padre Olavo (Dionísio Azevedo), que fará de tudo para impedir a entrada do homem na Igreja. "Não posso permitir que o senhor se perca nas trevas da bruxaria", argumenta o sacerdote, para ouvir como resposta "Oras, se Santa Bárbara não estivesse de acordo com isso, ela não faria o milagre?"



Uma passada pelas redes sociais, nos dias de hoje, e será possível perceber que, mais de cinquenta anos depois do lançamento de O Pagador de Promessas, nada mudou em relação ao respeito as crenças religiosas que não sejam as nossas. Como seria possível misturar um terreiro de macumba com a adoração a imagens sacras? Oras, com mais tolerância e menos preconceito, afinal de contas, na visão do ingênuo Zé do Burro, o que importa é salvar o seu estimado animal, já que para ele não há esse tipo de separação, por mais crente que seja. O que talvez fosse o ideal em um mundo, hoje, tão globalizado. Ainda, ao adotar a Bahia como cenário, Dias Gomes escancara um Brasil plural, colorido e multicultural em que jogadores de capoeira e adeptos do carnaval convivem com boêmios, prostitutas, cafetões, apostadores, escritores e devotos das mais diversas religiões - do Candomblé ao Cristianismo. E, nesse sentido, é praticamente impossível não se divertir com as sequências que mostram, no terço final, essa multiplicidade de personas em torno do Zé (e tentando se aproveitar dele, claro) que, lá pelas tantas, até ares de divindade passa a ter.

O papel da imprensa também é mostrado de forma orgânica na película e quando ouvimos um editor dirigindo a frase "não queremos boas reportagens, queremos reportagens que vendam" a um de seus repórteres, é fácil perceber como o sensacionalismo não é um modismo dos dias de hoje, sendo parte do processo de produção de (des)informação há várias décadas. E a tentativa de um dos jornalistas (um vivaz Othon Bastos) em transformar Zé em uma figura (política) favorável a Reforma Agrária - parte de sua promessa envolvia a distribuição de parte de suas terras a seus empregados - e contrária a exploração do homem pelo homem surpreende pelo fato de vermos, nos dias de hoje, a religião tão próxima das bancadas em que se acotovelam edis. (ainda que os ideias da atualidade sejam absolutamente opostos aqueles mostrados no filme, período em que João Goulart era o presidente de nossa República)


Povoando ainda a película com uma série de personagens secundários divertidos e audaciosos - como o sedutor Bonitão (Geraldo Del Rey), o ator de rua Dedé (Roberto Ferreira), o dono do bar Galego (Gilberto Marques) e a bela prostituta Marli (Norma Bengell) - Duarte transforma a obra de Gomes em um panorama do Brasil carente de ídolos e que se mostra, ainda, como numa espécie de contraponto, capaz de se aproveitar da ingenuidade das pessoas visando apenas o próprio benefício. Ao abordar temas como doutrinação religiosa, discriminação racial, adultério e sensacionalismo da imprensa - alguns momentos da mídia nos fazem lembrar outro clássico, A Montanha dos Sete Abutres (Ace In the Hole), lançado em 1951 por Billy Wilder -, Duarte ainda consegue trazer para o presente um debate já existente no passado e que envolve sujeitos sem escrúpulos em um microcosmo em que a parte mais fraca sempre é aquela que sai perdendo. O final desalentador, resultado da intolerância desenfreada, encerra a película - única na história do Brasil e faturar a Palma de Ouro no Festival de Cannes - de forma não menos do que impactante. Uma obra seminal.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Cinema - mãe! (mother!)

De: Darren Aronofsky. Com Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Ed Harris e Michelle Pfeiffer. Drama / Suspense / Horror, EUA, 2017, 121 minutos.


Quando as estruturas sociais e padrões de comportamento tornam-se tão rígidos que a sociedade não pode mais adaptar-se a situações cambiantes, ela é incapaz de levar avante o processo criativo de evolução cultural. Entra em colapso e, finalmente, desintegra-se.
Fritjof Capra, "O Ponto de Mutação".


Quem costuma ler sobre cinema ou até mesmo dar uma checada nos assuntos do momento já deve ter ouvido falar de mãe! (mother!, com minúscula mesmo), mais recente filme do diretor americano Darren Aronofsky. Vendido como um dos mais controversos filmes da década, o próprio longa ousou colocar em seu cartaz de divulgação as críticas polarizadas que recebeu, em mais um daqueles casos de "ame ou odeie" que costumam ocorrer de tempos em tempos. Mas afinal, aonde foi que o diretor e roteirista pesou a mão desta vez a ponto de provocar tanta polêmica, mesmo tendo em seu currículo obras desafiadoras como Pi (1998), Réquiem para um Sonho (2000) e Cisne Negro (2010)?

Um casal vive com aparente tranquilidade em uma enorme casa de campo cujo acesso ao mundo externo é praticamente inexistente, vide a ausência de estradas que levam até o recinto, enquanto a mulher interpretada por Jennifer Lawrence (identificada nos créditos apenas como "mãe") trabalha na pintura e reconstrução da casa que tempos atrás havia sido consumida por um incêndio. Enquanto isso seu marido (Bardem, creditado como "Ele"), autor consagrado, trabalha buscando inspiração para sua mais nova criação literária. A paz de ambos será interrompida com a chegada de um desconhecido cirurgião ortopédico (Harris) e, posteriormente, de sua luxuriosa esposa (Pfeiffer, em atuação espetacular) que, ao buscarem abrigo na casa, gerarão uma crescente tensão entre os habitantes que culminará em uma sequência de eventos desconfortáveis e com consequências desastrosas. 



Fosse só a breve sinopse acima o filme já teria boas credenciais para abocanhar boa parte do público sedento por uma história de suspense/terror. Seja pela cinematografia opressiva e angustiante (em alguns momentos pensei estar assistindo a um filme do movimento Dogma 95), as belas atuações, a (praticamente ausente) trilha sonora composta em sua maioria de sons diegéticos que pede sua apreciação na sala de cinema com um bom sistema de som, e a tensão crescente que desemboca em um ato final chocantemente arrebatador, confesso que não consigo entender o porquê de diversas pessoas terem "odiado" a obra ou, até mesmo, não tê-la "entendido". Em uma leitura rasa teríamos um filme no mínimo razoável - afinal não é objetivo de uma obra do gênero promover angústia e horror no espectador? E isto a película de Aronofsky faz com louvor. Mas a experiência cinematográfica que o diretor entrega aqui ganha status de - permitam-me a ousadia - obra-prima ao promover diversas camadas de leitura adicionais (algumas bem óbvias, outras nem tanto) em um verdadeiro deleite para os apreciadores desta grande arte - e não é maravilhoso quando saímos do cinema incomodados, com a mente fervilhando e carregamos uma obra conosco durante vários dias?

(recomenda-se não ler o restante do texto caso não queira maiores revelações, embora procurarei não exagerar nos spoilers)

Da mesma forma que Quentin Tarantino transformou seu mais recente filme, Os Oito Odiados (2015), em uma grande alegoria da História norte-americana, aqui Aronofsky nos brinda com uma representação visceral e impiedosa do Cristianismo - e, com certeza, a alegoria será óbvia para aqueles que, como a maioria de nós do lado de cá, foram doutrinados desde cedo a seguir seus preceitos. Enquanto naquele filme Tarantino tentava formar um painel histórico de forma a ecoar uma representação da sociedade atual, neste mãe! conceitos bíblicos formam um pano de fundo (embora sem tornarem-se pré-requisitos) para a reflexão de diversos temas caríssimos para a sociedade atual, que parece cada vez mais fadada à autodestruição: o fanatismo religioso, o culto à celebridade, o desrespeito ao meio ambiente pelo ser humano, o desafio em ser mulher em um mundo predominantemente machista, a dificuldade em criar, a relação arte/criador, a intolerância, dentre outros que podem ser desvendados pelo espectador em uma nova visita.

Em 1983 o filósofo Fritjof Capra já demonstrava como a nossa civilização desenvolvia ciclos de ascensão e decadência: se em um momento sucumbíamos à Idade das Trevas, noutro tínhamos o Século das Luzes. A julgar pelo mundo atual e seus retrocessos, tão bem exemplificado no filme aqui resenhado, estaríamos adentrando uma nova era das trevas após anos de conquistas? O retorno com força total do fanatismo religioso, a intolerância ao diferente "saindo do armário" estimulada pela classe política (vide Trump nos EUA e a ascensão de Bolsonaro no Brasil), os desastres ambientais, a desvalorização da ciência (negação do aquecimento global e de conceitos há muito já estabelecidos são só alguns exemplos) e o retorno da censura às formas de expressão artística por milícias organizadas são apenas alguns dos sintomas de que os dias que virão não serão nada fáceis.

Utilizando a casa como um microcosmo de nosso planeta e a mulher como representação da própria natureza, Aronofsky mostra ainda que temos muito que evoluir para evitar um desastre total de nossas tão suadas conquistas. E não deixa de ser irônico que um deus represente tão bem uma espécie tão egoísta como a nossa que, mesmo com todos os trágicos exemplos através da história, insiste em não aprender. Mas podemos começar não sentando na pia, por exemplo. Se até o cineasta em entrevista disse ser otimista com a humanidade, porque não podemos ter este pingo de alento? Deus te ouça, Darren!

Nota: 9,5.





Pérolas da Netflix - Neve Negra (Nieve Negra)

De: Martin Hodara. Com Ricardo Darín, Leonardo Sbaraglia, Laia Costa e Dolores Fonzi. Drama / Suspense, Argentina / Espanha, 2017, 91 minutos.

Neve Negra (Nieve Negra) tem todos os elementos para um bom suspense: a ação ocorre num cenário inóspito, o clima é melancolicamente sombrio, as personagens complexas parecem guardar segredos relacionados ao passado, há uma série de reviravoltas na trama.. e ainda tem Ricardo Darín em um papel um pouco diferente, vivendo um homem recluso - quase como um ermitão - que se recusa a sair da isolada propriedade em que a família cresceu e que, agora, será vendida para um grupo de investidores canadenses - por módicos nove milhões de dólares. O incumbido de levar a notícia a Salvador (Darín), é seu irmão Marcos (Sbaraglia) que chega ao local junto com a namorada Laia (Costa), que está grávida. Na "bagagem", também carrega consigo as cinzas do pai de ambos, que faleceu na Espanha, onde o casal também vive. As cinzas deverão ser depositadas, a seu pedido, ao lado de onde está enterrado o irmão de Salvador e Marcos, morto, de forma aparentemente acidental, durante uma caçada.

Mas é evidente que nem tudo parece ser o que é, nesta que é a primeira obra dirigida por Martin Hodara. Salvador recebe Marcos e Laia com cara de poucos amigos. Suas poucas divagações envolvem metáforas sobre caçadas e o uso de armas, o que faz com que o espectador tenha a impressão de que o assassinato do irmão mais jovem da família, possa ter tido outros motivos - e convém prestar atenção nas manifestações dos três em busca de detalhes que possam solucionar o caso. As imagens em flashback, que transitam de forma fluída pela trama - perceba como as cores e o cenário se modificam naturalmente dentro da casa, quando a trama sai do presente para voltar ao passado e vice e versa -, também permitem deduzir que Salvador talvez tenha lá os seus motivos para um comportamento tão inóspito, bem ao estilo dos cenários gélidos que marcam o filme.


Não bastasse a falta de entendimento entre os irmãos, ainda há uma terceira pessoa na família: a irmã Sabrina (Fonzi) que, com problemas mentais, se mantém reclusa em uma instituição que atende pacientes com doenças neurológicas. E a venda da propriedade da família - proposta levada por Marcos a Salvador e MUITO mal recebida pelo segundo - também teria a ver com a possibilidade de levantar recursos para o tratamento da irmã. Ou será que não? E as imagens que mostram Sabrina saudável na juventude? E um pai absolutamente truculento com Salvador? Teria sido ele o assassino do próprio irmão? Sim, tudo vai se tornando mais estranho conforme a trama avança até, inevitavelmente, chegar a uma situação limite envolvendo todos.

Utilizando o pesado cenário como uma metáfora perfeita para o estado de espírito dos três protagonistas nos dias em que passam juntos - culminando em uma tenebrosa nevasca na noite em que a maior crise acontece - Hodara também é hábil no uso dos enquadramentos, que tornam palpável o sentimento de isolamento. E, se as interpretações de todos do elenco são verossímeis, a estranha escolha de Laia Costa para a namorada de Marcos (ela é quinze anos mais jovem que Leonardo Sbaraglia e, em alguns momentos, parece mais a sua filha), talvez possa ser explicada pela última cena da película - o que seria lamentável, já que isso poderia sugerir um certo machismo dos realizadores, ainda que a surpresa seja compensadora. (e vocês poderão e DEVERÃO me dizer se essa impressão procede ou não) Ainda assim, nada que afete este bom suspense, que merece ser visto na Netflix.

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Na Espera - Pequena Grande Vida (Filme)

Mais um daqueles que tem "cheiro de Oscar", Pequena Grande Vida (Downsizing) parece ter uma trama tão improvável quanto divertida, ao narrar a história de um homem (Matt Damon), que percebe que sua vida poderia ser muito melhor se ele fosse encolhido. E, na versão minúscula, será possível reduzir os gastos e conviver de forma mais satisfatória e harmoniosa em comunidade. Será? A premissa no mínimo diferente por si só já é um atrativo a parte. Mas a obra é dirigida por Alexander Payne, que já figurou nas premiações com outros filmes, como Nebraska (2013), Os Descendentes (2011) e Sideways - Entre Umas e Outras (2004) - sendo que os dois últimos renderam estatuetas ao diretor, que também é roteirista.



Sobre o filme, que tem estreia prevista por aqui para o dia 18 de janeiro de 2018, o elenco completo também é uma atração a parte, contando com nomes como Christoph Waltz, Laura Dern, Jason Sudeikis, Neil Patrick Harris, Hong Chau e Margo Martindale. Já a comediante Kristen Wiig terá a possibilidade de mostrar que também pode fazer carreira no drama - ainda que ela não figure nas bolsas de apostas para a maior premiação do cinema. Já o trailer não mostra muito sobre os possíveis revezes que poderão sofrer aqueles que escolherem a vida na versão mini - o que é bom. Por outro lado, fica a dúvida sobre o potencial de uma comédia para a conquista de uma certa estatueta dourada. Por aqui, estamos Na Espera!

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Tesouros Cinéfilos - Mia Madre (Mia Madre)

De: Nanni Moretti. Com Marherita Buy, John Turturro, Giulia Lazarrini e Nanni Moretti. Comédia dramática, Itália / França, 2015, 107 minutos.

Em uma das cenas mais comoventes de Mia Madre (Mia Madre), mais recente obra do diretor Nanni Moretti, a protagonista Margherita (Buy) tenta de todas as formas conduzir a sua mãe doente ao banheiro da UTI em que ela se encontra internada. Com esforço, mas sem alcançar sucesso, ela grita para a mãe que são "apenas três passos", para depois cair em um choro copioso que só será amparado por um caloroso abraço da genitora, que ouvirá em seguida um pedido de desculpa não menos do que tocante. Esse é o tipo de cena que torna a obra de Moretti especial. Margherita, na vida "real" é uma diretora de cinema que está trabalhando em uma nova película repleta de mensagens sociais, tendo de empreender um esforço a mais para equilibrar o drama da vida pessoal, com a necessidade de entregar o filme no prazo certo.

Se já não bastassem as dificuldades de coordenar todo um grupo de atores, dublês e extras, além de cinegrafistas, figurinistas e outros da equipe técnica, a protagonista ainda terá de lidar com as excentricidades do astro de Hollywood Barry Huggins (Turturro), que parece mais preocupado em se ocupar de galanteios e de outras exigências do que, de fato, entregar um bom trabalho. E, nesse sentido, não é por acaso que as constantes brigas da diretora com a sua principal estrela - Huggins se defende dizendo que já fez mais de 105 filmes, tendo trabalhado, inclusive com Stanley Kubrick - e as dificuldades para dar prosseguimento ao filme, funcionam como uma metáfora perfeita para a sua vida particular. Se no filme Huggins não atua como ela gostaria, pensar em sua mãe em uma cama de hospital na iminência da morte e em sua incapacidade de ajudá-la (a dar três passos, que seja) é algo que a atormenta.


Sim, a arte muitas vezes imita a vida e tudo o que Margherita gostaria de fazer, ao sair do hospital, seria dizer "corta" e mandar todo o mundo de volta para as suas posições, assim como os "operários" e os "patrões" que ela dirige em sua encenação. Mas não, a vida real é dolorosa e acaba invadindo o set de filmagem, chegando a fazer com que a diretora se questione até mesmo a respeito da qualidade de sua direção de arte, das frases de efeito ditas pelos empregados da fábrica fictícia que fechará ou mesmo os diálogos que podem parecer forçosamente falsos. No íntimo de Margherita de que vale aquele teatro todo se, no fundo, todos morreremos ou todos sofreremos? Nesse sentido Nanni é preciso ao incluir na película, cenas como aquela em que o apartamento da protagonista é inundado, como uma metáfora perfeita para o naufrágio enfrentado na vida real.

O filme é pesado mas o personagem de Turturro acaba funcionando como um delicioso alívio cômico, sendo impossível não gargalhar diante das dificuldades do presunçoso astro em pronunciar meia dúzia de palavras em italiano. E, nunca é demais lembrar, estamos falando de Nanni Moretti, que costumo comparar a uma espécie de Woody Allen italiano que, com suas obras verborrágicas e divertidas - ainda que com uma filmografia bem menor -, já nos brindou com outras tantas películas agradáveis como Caro Diário (1994) e Habemus Papam (2011), esta última imperdível sobre um papa eleito que passa a se questionar sobre sua capacidade em ocupar um cargo com tanta responsabilidade. Só que, mesmo tendo momentos de humor, o filme se assemelha muito mais ao pesado O Quarto do Filho (2001), já que em ambos os casos somos apresentados a pessoas devastadas que, ainda assim, devem seguir com suas vidas profissionais.


A propósito de Moretti, como é de praxe, ele participa também do filme, no papel de irmão da diretora - talvez pra não ficar tão escancarado o clima autobiográfico da obra. E, a propósito do elenco, quem comove mesmo é Lazzarini, uma vez que sua Ada nunca deixa de ter um espírito otimista capaz de iluminar a todos a sua volta - e, certamente, não é por acaso que a filha de Margherita se sentia muito mais a vontade para discutir temas como "namoros juvenis fracassados" com a avó, do que com a mãe que, de alguma maneira, muitas vezes parece ser uma pessoa distante emocionalmente, individualista e, inadvertidamente ausente. Talvez seja exagero atribuir a Mia Madre a pecha de "melhor filme do Nanni Moretti". Mas, com sua densidade de estilo, fotografia orgânica e coerente com aquilo que assistimos, boas interpretações e roteiro metalinguístico e pleno de metáforas entre realidade e ficção, certamente será uma excelente porta de entrada para quem não conhece o trabalho do diretor. Enfim, um verdadeiro Tesouro Cinéfilo.