quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Livro do Mês - O Negociante de Inícios de Romance (Matéi Visniec)

"Ele era um velho que pescava sozinho num esquife na Corrente do Golfo e saíra havia já oitenta e quatro dias sem apanhar um peixe". A primeira frase de o Velho e o Mar, clássico de Ernest Hemingway, é daquelas que faz com que o leitor sequer saiba onde exatamente está a gravidade da situação. "No fato de o personagem estar sozinho? Ou no de ser velho? Ou de pescar numa zona por onde passa a famosa Corrente do Golfo, conhecida por seus redemoinhos? Ou ainda, no fato de não apanhar peixe já há quase três meses?" É por meio de um conjunto de divagações bem humoradas como estas, que Matéi Visniec converte o divertidamente cínico O Negociante de Inícios de Romance em uma experiência caleidoscópica sobre contemporaneidade, indústria cultural e sociedade de consumo, apresentando a urgência da busca pelos "eternos começos" em uma metáfora absurdamente mundana a respeito de fuga de responsabilidades, superficialidade da vida e completa evasão de profundidade de pensamentos.

Pode parecer um papo chato em um primeiro momento, mas o romance do autor romeno é, um dos mais curiosos, excêntricos, cômicos e metalinguísticos livros que já li. Ainda na apresentação de sua obra, Visniéc indaga: "por quê, afinal, parecemos estar com o botão de fast forward cada vez mais pressionado nos dias de hoje?" A sensação geral é a de que a população tem filhos, mas já não tem paciência pra criá-los. Compra coisas das quais logo se enfastia. Provoca revoluções, mas não tem energia para construir sociedades justas e duradouras que avancem para além das emoções iniciais. Presos nesse senso de necessidade de consumir tudo quanto é coisa ao mesmo tempo, ficamos mais ou menos como o sujeito que desenvolve a Síndrome do FOMO (do inglês Fear of Missing Out), patologia que envolve o receio de ficar de fora do universo tecnológico ou de se sentir incapaz de se desenvolver no mesmo ritmo destas. Quem nunca ficou com a impressão de que estava ficando pra trás, afinal?



Cruzando questões relativas à pós-modernidade que se conecta à literatura como veículo de enfrentamento ao totalitarismo, o escritor nos conduz por um universo onírico - meio de sonho, meio de realismo fantástico - onde um aspirante a escritor conhece um sujeito misterioso que se apresenta como agente de uma empresa responsável pela criação de frases de abertura de romances universais de Albert Camus, Franz Kafka, H.G. Wells, Hermann Melville e Thomas Mann, entre outros. Percorrendo as ruas de Paris - e suas passagens estreitas que levam à cafés, restaurantes, galerias de arte, antiquários e outros -, o protagonista alcançará a livraria Verdeau, que será o ponto de encontro para a troca de uma série de correspondências com o enigmático Guy Courtois, que mantém a promessa de lhe entregar, a qualquer momento, a sentença de abertura que poderá transformar a sua ainda discreta existência como romancista. Conferindo-lhe mais credibilidade, potencialidade. Algo que gere a adrenalina da excitação inicial.

Em meio a esses diálogos abusadamente caóticos e engraçados e a promessa de glória futura, uma espécie de revolução literária se põe em marcha, com a criação de uma tecnologia que parece ser capaz de traduzir sentimentos em palavras. Seria o fim da figura do escritor? Das reflexões genuínas sobre vida, morte e além, que seriam paulatinamente substituídas pela mera banalidade cotidiana? Em trechos de poemas nunca concluídos e de um romance dentro de um romance - sobre um sujeito que se depara com o desaparecimento de todas as pessoas do planeta, o que lhe obrigará a construir uma nova vida pra si  -, o livro funciona como uma alegoria sobre passagem do tempo, burocracias e alienação. Sendo provocativo na medida exata na hora de apresentar a frenética e moderna cultura da diversão como uma chaga de nosso tempo, o romance satiriza a hipocrisia do ideal do sonho americano (que é vivido pelo irmão mais velho do narrador), ao passo em que discute o absurdo de a Romênia jamais ter ganho uma edição que fosse do Prêmio Nobel de Literatura. Muita coisa acontece nesse livro que é uma joia da versatilidade, da graça e da erudição, sendo capaz de divagar de forma assombrosa sobre essa nova droga social da contemporaneidade: a da dependência da ilusão sedutora dos inícios. Incrível é pouco.

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Na Espera - The Fabelmans (Filme)

Preciso ser sincero com vocês: só de ver o trailer de Os Fabelmans (The Fabelmans) eu já me emocionei. E depois de levar o People Choice Award do recente Festival de Toronto, o filme de tintas autobiográficas de Steven Spielberg já salta na frente na corrida pelo Oscar. Na trama, um garotinho inspirado no próprio diretor (vivido por Gabriel LaBelle) revive memórias de infância tendo a paixão pelo cinema - e a descoberta desse universo meio mágico - como pano de fundo. No trailer, aquele clima Spielberg por excelência, com história de superação (ou de amadurecimento), trilha sonora épica, reviravoltas, dores e a persistência na busca da consolidação do sonho americano em meio a um ambiente doméstico meio conturbado. Aquela coisa meio mágica que, aliás, é o tipo de história que costuma agradar a indústria - e, consequentemente, os votantes da Academia.

Com previsão de estreia para o dia 09 de fevereiro de 2023, a superprodução conta com nomes de peso no elenco, casos de Michelle Williams, Paul Dano, Seth Rogen, Judd Hirsch e Jeannie Berlin - com Williams, Hirsch e Dano podendo figurar também nas categorias de atuação. Metalinguística e cheio de referências, a obra parece funcionar como uma carta de amor à própria arte cinematográfica - sendo, nesse sentido, um pouquinho diferente de Belfast (2021) e A Mão de Deus (2021), que também traziam reminiscências juvenis de seus diretores (no caso Kanneth Branagh e Paolo Sorrentino). A avaliação geral no condensador Metacritic está alta (84) e sites como o Hollywood Reporter concederam nota máxima em suas resenhas. "Filmes são como sonhos que você nunca vai esquecer" é uma das frases ditas por Mitzi (personagem de Michelle Williams que vive a mãe). Dada a filmografia de Spielberg, ele aprendeu essa lição direitinho.


Foi Um Disco que Passou em Minha Vida - R.E.M (Automatic for the Pepole)

Não sei como foi pra vocês, mas a minha paixão pelo R.E.M não começa com Automatic for the People. Na realidade é o Out of Time (1991) que abre as portas: um disco que talvez não fosse tão coeso, mas que tinha hits imbatíveis - e basta pensar que Losing My Religion e Shiny Happy People, com seus videoclipes marcantes, fazem parte desse álbum. O fato é que quando se é uma criança de dez, onze anos, que está crescendo e meio que descobrindo o mundo, as memórias se tornam meio aleatórias, difusas. Sim, eu lembro das canções de Michael Stipe e companhia ecoando no rádio. As citadas acima. Outras como The One I Love, Orange Crush ou Radio Free Europe. É tudo meio espaçado dentro dos sonhos juvenis. Nostálgico em alguma medida. A gente ia se formando meio que sem saber. Aprendendo não se sabe bem de onde. E quando vê, bate. E eu jamais vou me esquecer da minha alegria ao sair de uma das lojas de CDs locais, com a minha cópia do oitavo trabalho do R.E.M.

Na minha juventude utilizávamos uma expressão que buscava resumir a paixão demasiada por um disco: o de que ouvíamos ele até "furar" (o que não deixava de ser um curioso paradoxo, diante de um artefato que possui um buraco em seu centro). Esse foi o caso de Automatic for the People. Trancado no quarto ficava horas saboreando aquelas canções que iam da melancolia extrema (como no começo, com Drive e mais adiante com Everybody Hurts), passando pelo otimismo debochado de The Sidewinder Sleeps Tonight, até chegar a intimista e grandiosa Man on the Moon que, até hoje, permanece como uma das minhas músicas preferidas da vida. Tudo nela é perfeito, da melodia sinuosa e envolvente, passando pela letra que homenageia o comediante Andy Kaufman ao mesmo tempo em que divaga sobre atemporalidade, memória, mitologia e a inocência perpetrada pelo sonho americano, até chegar ao refrão grudento. A canção entraria mais tarde na trilha do ótimo O Mundo de Andy (1999) e, bom, apenas amamos.


Sobre as outras canções, interessante notar como, mesmo os instantes mais enigmáticos, parecem ser envoltos em uma ambientação dramática, soturna. A reflexiva Monty Got a Raw Deal homenageia o astro da Hollywood dos anos 50 Montgomery Clift, que morreria tragicamente anos após um acidente que deformaria seu rosto. Clift era um dos homens mais belos de Hollywood e lidar com uma série de cirurgias em que nada poderia ser feito o fez se entregar às bebidas e aos remédios. "Monty, isso me parece estranho / Os filmes têm aquela coisa de filme / Mas o absurdo tem um quê de boas-vindas / E os herois vão e vêm facilmente", divagaria Stipe. Esse expediente que mescla referências culturais, dilemas cotidianos e dores mundanas, seria repetido em outros momentos. As perdas familiares são mencionadas em Sweetness Follows. As intenções suicidas em Try Not to Breathe. A esperança por dias melhores em meio a adversidades em Everybody Hurts. E a pesada crítica política às eras Bush e Reagan ecoa em Ignoreland. É um conjunto que se torna heterogêneo à sua maneira.

De alguma forma falar de morte, de sofrimentos, de tempo que não retorna mais, de passado mas olhando para o futuro, tudo é despejado para o ouvinte com calma, com elegância, de forma complacente. É como se Stipe se posicionasse como uma espécie de amigo que está ali ao lado para apoiar, para dizer a palavra certa, para fazer levantar a cabeça. Mesmo Drive, com suas cordas cortantes e melodia repetitiva, surge como um libelo a liberdade de escolha, especialmente por parte dos jovens (Hey, crianças, onde estão vocês? / Ninguém lhes diz o que fazer, baby). E mesmo quando adota o deboche, o pastiche aleatório, a banda de Athens o faz de forma graciosa, transformando o inusitado na matéria-prima ideal, como no caso de The Sidewinder Sleeps Tonite, que nada mais é do que uma canção sobre um sujeito que aguarda uma ligação na calçada da rua. Levemente acústico, estabelecendo diálogo com o country e o alternativo em igual medida, Automatic for The People talvez tenha sido o último grande disco do R.E.M. Não que Monster (1994), com suas três insuperáveis guitarras, fosse ruim. Mas aí já é outra história. Que fica pra um outro texto.


segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Tesouros Cinéfilos - Speak No Evil

De: Christian Tafdrup. Com Sidsem Siem Koch, Fedja Van Huêt, Morten Burian e Karina Smulders. Terror, Dinamarca / Holanda, 2022, 97 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM SPOILERS]

Quando crianças nos acostumamos a ouvir de nossos zelosos pais frases como "não converse com estranhos na rua". Mas e os adultos? Quem os alerta para os perigos decorrentes das convenções sociais? Quais os riscos que incorrem de uma vida de passividade em que apenas aceitamos tudo? Sem questionar nada? Nesse sentido pode parecer uma experiência excessivamente chocante aquela que propõe o diretor Christian Tafdrup em Speak No Evil. A tragédia pela tragédia, o mal que vêm não se sabe de onde, a violência cotidiana - que pode, inclusive, se esconder atrás dos modos cordiais ou de uma gentileza de fachada. Mas, ao cabo, a questão aqui - a metáfora - soa como uma análise mais ampla sobre nosso comportamento. Não estamos, afinal, sendo meio apáticos diante de tudo nesse mundo? Meio indiferentes? Guerras, pandemia, extremismo de direita, abusos de poder político e religioso. Fome, miséria, desemprego, inflação. Corrupção. Até quando somos capazes de levar porrada permanecendo letárgicos? Qual o limite do aceitável? Em que ocasião dizemos: "basta, deu!".

Enquanto assistia à essa pequena joia do cinema de terror eu pensava, inevitavelmente, no Brasil de Bolsonaro. No Brasil em que um presidente no auge da maior pandemia global desse século afirmou sem nenhum assombro que "não era coveiro". "E daí, as pessoas morrem, quer que faça o quê?". Mais do que isso, imitou pessoas sofrendo com falta de ar. Debochou das famílias e de seu luto. Andou de jetski, fazendo do País o seu palanque permanente. Usando de quebra dinheiro público - o seu, o nosso - para colocar em prática as suas intenções macabras. E o que nós, brasileiros, fizemos diante de tudo isso? Permanecemos quietos, amedrontados. Em silêncio, reclamando no Twitter - no máximo com um amigo, um vizinho. Todos nós, coletivamente. Insatisfeitos, mas silenciosos. Não se viu impeachment, revolta popular, motim, greve geral, qualquer coisa. Negligentes, fomos os trouxas que receberam uma enxurrada de merda na cabeça com um desinteresse alarmante. Ao perguntar por quê fizeram isso conosco, Jair poderia ter dito: "oras, vocês apenas permitiram".



Ok, posso estar forçando a barra aqui nessa análise, enxergando alegoria e significado a mais onde talvez nem tenha. Sinceramente não fui atrás de entrevistas do diretor para saber de suas intenções, mas, interpretações no mundo das artes, são apenas isso, interpretações. E aqui estamos no Brasil e não na Europa. Aliás, na trama, uma família dinamarquesa de férias na Toscana faz amizade com uma família de holandeses que os convida para um final de semana em sua casa de campo. Mesmo tendo os conhecido a pouco tempo o casal Louise e Bjorn (vividos por Sidsem Siem Koch e Morten Burian) pondera sobre a possibilidade de aceitar um convite tão cordial - que é feito por Patrick (Fedja Van Huêt) e Karin (Karina Smulders). A tiracolo vai a filha Agnes (Liva Forsberg), que poderá fazer companhia ao filho dos anfitriões Abel (Marius Damslev). A tensão parece estar no ar a todo o momento e não é preciso ser nenhum adivinho pra saber que o entusiasmo inicial dará lugar, aos poucos, a uma angústia sem fim. E a ambientação criada, que ajuda a não prever muito bem o que vêm pela frente, é um mérito. No nosso íntimo a gente apenas sabe: tem algo errado.

Opostos em comportamento - Louise e Bjorn passam uma imagem mais conservadora, eventualmente tímida e que dialoga com uma espécie de "tédio burguês" ao passo que Patrick e Karin surgem como figuras enérgicas, envolventes -, aos poucos os dois casais se depararão com pequenos inconvenientes que ampliarão a sensação de tensão. No primeiro jantar, Patrick oferece um javali assado aos convidados, mesmo sabendo que Louise é vegetariana. Louise toma banho e vê sua privacidade invadida quando alguém entra no banheiro enquanto ela o ocupa. O filho dos anfitriões não fala, por conta de uma doença congênita que o fez nascer sem língua. O clima na casa vai se tornando mais e mais claustrofóbico dia após dia, conforme o tom vai subindo - o que é reforçado pela trilha sonora bem encaixada e pela fotografia sombria. Sentir que se está em um lugar que não se desejaria estar: taí um sentimento que é péssimo. Quem nunca? Mas o quê fazemos para reverter isso? Nos posicionamos? A lição do filme parece ser aprendida de forma dura. Mas o quê a gente percebe quando os créditos sobem é que os algozes apenas trouxeram à tona a inércia daqueles que eram os perseguidos. Eles permitiram tudo aquilo. Foram atrás de um coelho de pelúcia velho, encardido. E, em meio a tanta passividade, nada puderam fazer pra se salvar. Cruel. Mas, inegavelmente, faz pensar.
 
 

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Novidades em Streaming - Entre Dois Crepúsculos (Iki Safak Arasinda)

De: Selman Nacar. Com Mucahit Kocak, Burcu Gölgedar, Bedir Bedir e Mehmet Emin Kadihan. Drama, Turquia / Romênia / França / Espanha, 2021, 91 minutos.

Impressionante como, muitas vezes, um filme pode até ser pequeno, mas sem deixar por isso de ter instantes de grande potência. Particularmente há uma cena em Entre Dois Crepúsculos (Iki Safak Arasinda) - obra turca recém lançada e disponível na sempre ótima plataforma Mubi - que exemplifica essa situação. Nela, Kadir (Mucahit Kocak) participa de um jantar onde está conhecendo a família de sua noiva Esma (Burcu Gölgedar). O que deveria ser um momento de plena alegria - ainda que envolta pela ansiedade natural que costuma rondar esse tipo de situação -, se converte em um episódio absolutamente desconfortável, após o seu sogro o convida para tocar o saz, um tipo de instrumento musical típico da região. O problema não está na incapacidade de manejar o objeto e sim nos pensamentos de Kadir. Na sua mente. Com a cabeça longe ele consegue, apenas com o olhar e com o gestual sôfrego e constrangido, transmitir toda a angústia que invade a sua alma. A última coisa que ele desejaria ali, era ser meio que obrigado a tocar saz.

Mas, ok, o futuro sogro de Kadir não sabe do "pepino" que o sujeito está envolvido. Diretor de uma fábrica de produtos têxteis ao lado do irmão mais velho Halil (Bedir Bedir), o protagonista está tendo que lidar com um gravíssimo acidente de trabalho que ocorreu nas dependências da indústria, após uma pane em um limpador a vapor. Na tentativa de consertar o equipamento, o operário Murat (Mehmet Emin Kadihan) sofre severas queimaduras, tendo de ser levado às pressas ao hospital mais próximo. A ideia de analisar a responsabilidade dos empregadores com seus funcionários em casos do tipo não chega a ser exatamente uma novidade no cinema. Mas aqui a experiência proposta pelo diretor estreante Selman Nacar ganha tintas documentais, avançando ainda para os dilemas éticos e morais que emergem da situação. Tocar saz, passar a imagem de bom moço? Não, não rola. Não naquele momento.

 

 

Orientados pelo advogado Yasin (Erdem Senocak), os irmãos e mais o pai Ibrahim (Ünal Silver) tentam se antecipar a toda a tramitação judicial que poderá decorrer do episódio, propondo à esposa Serpil (Nezaket Erden) uma espécie de acordo financeiro que a compense. As informações no hospital são insuficientes. O ferido se recuperará? Voltará a trabalhar? Morrerá? Enquanto aguardam notícias, os familiares de Murat precisam lidar com a (aparente) falta de empatia, de sensibilidade daqueles que estão do outro lado do balcão. E que parecem interessados apenas em religar os equipamentos para que a produção - que já está ficando atrasada - seja retomada o quanto antes. Se morrer alguém no caminho? Fazer o quê, os patrões não são coveiros, né? E não é por acaso que a leitura do documento que busca acertar os detalhes do acordo é tão constrangedora. Especialmente quando os patrões dão a entender que o acidentado estaria cumprindo as suas funções alcoolizado. Ou será que estaria mesmo?

Bom, ainda que possua leis trabalhistas que respeitem o lado do funcionário, a situação na Turquia não é muito diferente da do Brasil. E no fim das contas a gente sabe qual o lado mais fragilizado em uma situação dessas. Para Halil, a maior punição parece vir de sua consciência. Em caso de tragédia maior do que aquela prevista ele poderá mudar de País. Fugir. Os equipamentos poderão ser religados sem problema algum. Ao redor do mundo os importadores pouco ou nada se preocuparão. Os clientes seguirão comprando. As tramas, os fios, se engendrarão, numa metáfora mais do que ajustada pra tudo aquilo. Mas o atoleiro moral, esse permanecerá. Reforçado pela fotografia melancólica, acinzentada. Pelos longos e sufocantes planos sequência, que amparam atuações naturalistas, orgânicas. E pelo saz que entoa uma bela melodia, mas que jamais abalará o abismo existente entre os dois extratos sociais que acompanhamos. 

Nota: 8,0


quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Grandes Filmes Nacionais - Cidade de Deus

De: Fernando Meirelles e Kátia Lund. Com Alexandre Rodrigues, Leandro Firmino, Phellipe Haagensen e Seu Jorge. Drama / Policial, Brasil / França / Alemanha, 2002, 129 minutos.

Em uma das tantas cenas impressionantes de Cidade de Deus, Zé Pequeno (Leandro Firmino) circula pela favela que dá nome ao filme, em uma caçada à gangue juvenil conhecida como "caixa baixa". Iniciantes no universo do crime, os caixa baixa não passam de um grupo de trombadinhas pré-adolescentes que efetuam furtos na comunidade - mas que anseiam por voos maiores. Zé Pequeno e seus asseclas encontram os meninos - sim, são meninos de no máximo dez, doze anos - em um beco. E os enquadra. Mais do que isso, tortura-os psicologicamente. Ameaça-os. Grita. Atira no pé de um. Mata outro. A sangue frio. Sem muita negociação. Um dos meninos que sobrevive, e que não deve ter mais do que oito anos, chora copiosamente. De forma comovente. Se havia ainda alguma dúvida a respeito da natureza violenta e assustadora de Zé Pequeno, ela está aqui resolvida. Não se salva ninguém. Adulto, criança, idoso. Playboy, mano, branco, rico, pobre. Qualquer um que ameaçar os seus negócios na Cidade de Deus, é bala.

Baseado em fatos reais, o clássico de Fernando Meirelles e Kátia Lund se tornaria o segundo filme estrangeiro mais visto no mundo - atrás apenas de Intocáveis (2011), a simpática obra francesa. Receberia também quatro indicações ao Oscar. Os méritos, afinal, não são poucos. A começar pelo aparato técnico, que envolve o estilo de filmagem frenético, urgente - que faz lembrar um videoclipe -, passando pela montagem inventiva, trepidante e cheia de trucagens, até chegar ao elenco, composto em sua maioria por atores não profissionais. E este último elemento tem um motivo simples: o de que não havia atores negros no Brasil em número suficiente para esse tipo de filme. Sendo a solução a montagem de uma oficina de teatro no seio da comunidade, e que envolveria um grupo de cem amadores. O resultado? Bom, basta assistir a Leandro Firmino em cena, por exemplo, com sua caracterização furiosa de Zé Pequeno. Aliás, a sentença "Dadinho é o caralho, meu nome é Zé Pequeno porra!" entraria para o imaginário popular como uma das grandes frases do cinema. E não é para menos.

 
Sem ter necessariamente um protagonista - e eu quero evitar a obviedade de falar na própria favela como personagem principal -, a trama é narrada por Buscapé (Alexandre Rodrigues), fotógrafo amador que se vê em meio a uma confusão envolvendo uma galinha, ainda no começo do filme. Ali estamos em meio a uma Cidade de Deus já corrompida, com a ave simbolizando a luta desigual que fará a corda romper pro lado mais fraco. Voltando no tempo, para o começo dos anos 60, seremos apresentados ao conjunto habitacional como um lugar meio idílico, que servia como espaço para realocação de famílias pobres por parte do Estado. É nesse ambiente de partidas de futebol e de comércio informal que se formará o embrião da violência a que seremos apresentados duas décadas mais tarde. Da queda do Trio Ternura a ascensão de Zé Pequeno como chefe de quadrilha, tudo é narrado por Buscapé com olhar de um atento observador. Em meio a disputas de poder, o sangue jorra, ao passo em que os cartéis avançam. É tudo frenético, intenso, quente. O suor, o calor, parecem sempre palpáveis. Saltam da tela.

Orbitando ao redor de Zé Pequeno e Buscapé, outros personagens vão, aos poucos, ganhando espaço. A edição se reorganiza em torno de elipses em que o dito fica pelo não dito. Parceiro de Zé Pequeno, Bené (Phellipe Haagensen) tem personalidade oposta. Ainda que seja um criminoso possui um código de ética mais bem resolvido. Mais do que isso, é mais pacífico que o companheiro. As coisas podem desandar, como desandarão (e a inesquecível sequência do baile de despedida de Bené é mais um daqueles instantes que comovem e assustam). Por fim há ainda Mané Galinha (Seu Jorge), um simples cobrador de ônibus que entrará nesse ciclo de violência para uma tentativa de vingança. Se unindo para isso a Cenoura (Matheus Nachtergaaele), rival de Pequeno. Só que o problema é esse: quem entra, não sai. Quem tenta sair acaba preso. De forma redundante. As punições serão dignas de tragédia shakespereana urbana. Traições, surpresas, reviravoltas. Casos que pareciam resolvidos, mas não estavam. Abandono. Inércia. Ao cabo, o que vai, um dia volta. Comprovando o mais básico dos chavões: o de que violência gera mais violência. Indefinidamente.
 

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Novidades em Streaming - O Alfaiate (The Outfit)

De: Graham Moore. Com Mark Rylance, Zoey Deutch, Simon Russell Beale e Johnny Flynn. Drama / Policial, Reino Unido, 2021, 106 minutos.

O Alfaiate
(The Outfit) é um daqueles filmes que provam que nem sempre é necessário uma parafernália pra fazer uma obra acontecer. Tudo ocorre, afinal, em um mesmo e único ambiente: no caso a alfaiataria que é comandada pelo taciturno e metódico Leonard Burling (Mark Rylance). No local, se ocupa diuturnamente da produção de elegantes peças que servirão aos seus clientes. Só que tem aí um pequeno problema: na Chicago de 1956, período em que se desenrola a trama, Leonard tem como principais clientes um grupo de mafiosos da cidades. Mais do que isso, no interior de sua oficina, reserva um pequeno baú para que os integrantes do grupo possam trocar informações relativas à condução de seus negócios. Dessa forma, o profissional faz vistas grossas para as movimentações escusas que envolvem os criminosos. Enquanto ainda garante o seu sustento confeccionando trajes, paletós e outras indumentárias para o grupo.

Tudo vai indo mais ou menos bem no local. Em meio a conversas sobre sonhos e oportunidades de viagens ao redor do mundo com Mable (Zoey Deutch), a sua secretária, e a divagações envolvendo as escolhas pessoais de certos clientes, Leonard parece ter segredos relacionados ao passado que insistem em aparecer em suas memórias. Quando chegou em Chicago, Leonard tinha cruzado o Atlântico, deixando para trás a sua Inglaterra natal. "Fugia do nazismo?", alguém pergunta. "Pior do que isso, da calça jeans", debocha, exagerando ao destacar a importância da onipresente peça que reduziria as suas perspectivas financeiras em Londres. Já na América, Leonard seria apadrinhado por Roy Boyle (Simon Russel Beale), chefão da máfia irlandesa. O que tornaria sua loja um ponto de encontro dos gângsteres - mais especificamente do filho de Boyle, Richie (Dylan O'Brien) e de seu parceiro Francis (Johnny Flynn).



Só que as coisas começam a dar errado quando Richie e Francis recebem uma fita cassete que pode ser o indicativo de que há um espião na organização. As suspeitas recaem no colo de todos: de Leonard, de Mable, de outros integrantes. Quem afinal desejaria vender informações para os La Fontaine, uma gangue rival? E, mais do que isso, quem teria interesse em vazar a gravação para o FBI? As tensões ampliadas converterão O Alfaiate em um jogo de gato e rato que utiliza apenas o claustrofóbico espaço da alfaiataria como ambiente. Com a câmera indo pra lá e para cá, circulando em meio aos personagens, revelações serão feitas de forma tópica, sem muita pressa, em uma experiência que tem nos diálogos um de seus pontos fortes. O que não significa que não haverá surpresas e reviravoltas até o instante final. Ao cabo é uma trama em que é preciso ficar atento, já que nem tudo é o que parece!

Elegante e envolvente, a narrativa utiliza a própria fabricação de peças de roupa - um processo meticuloso, que envolve diversos cortes, tecidos e costuras - como uma metáfora para o quebra-cabeças que o espectador precisará montar em meio a tudo. É um processo refinado, que é ampliado pelo desenho de produção impecável e pela fotografia de tons marrons escurecidos que parecem apenas reforçar o sentimento de tensão. [A PARTIR DAQUI CONTÉM SPOILER] Teatral, intimista, e com referências a clássicos como Festim Diabólico (1948), de Alfred Hitchcock, e Jogo Mortal (1972), de Joseph L. Mankiewicz, o filme ainda tem Mark Rylance esbanjando boa forma na hora de encarnar Leonard. Misterioso, de comportamento ambíguo, mas educado e metódico ao extremo, ele se manterá inabalável, quebrando estereótipos e reforçando a ideia de que o "segredo está nos detalhes". 

Nota: 7,5


segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Novidades em Streaming - Os Primeiros Soldados

De: Rodrigo de Oliveira. Com Johnny Massaro, Renata Carvalho, Victor Camilo e Clara Choveaux. Drama, Brasil, 2021, 105 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM SPOILERS]

Em uma das tantas cenas comoventes de Os Primeiros Soldados, um homem magro, pálido, de aparência enfraquecida, entra na boate Genet, em Vitória, Espírito Santo, com um punhado de fotografias na mão. Ao fundo, a canção Linda Juventude, do 14 Bis, embala os sonhos coloridos da comunidade LGBTQIA+ em meio a danças, beijos e sorrisos. É um paradoxo assistir aquele sujeito fragilizado - ele tosse muito e se locomove com dificuldade no ambiente -, enquanto os versos primaveris, bucólicos, de Flávio Venturini (Nossa linda juventude / Página de um livro bom / Canta, que te quero gás e calor / Claro como o sol raiou) ecoam pelo inferninho. É um momento tenso, triste. O personagem das fotos - retratos de si próprio com manchas na pele típicas de quem está com a imunidade baixa - é Suzano (Johnny Massaro), que estava há oito meses desaparecido. E que retorna ao ambiente de festa como uma medida desesperada. É lá que ele tem um último contato com seu sobrinho Muriel (Alex Bonini).

E por mais melancólico que seja esse instante, isso não significa que o filme de Rodrigo de Oliveira seja totalmente pessimista. Claro, não há necessariamente espaço para a euforia exacerbada em uma obra que volta no tempo - mais precisamente para o período que vai de 1982 a 1984 -, para tratar dos primeiros casos de contaminação pelo vírus da AIDS, no Brasil. Mas ainda assim o realizador evita a pieguice óbvia que poderia vir à tiracolo do sofrimento para, de alguma maneira, empoderar as primeiras pessoas que tiveram de enfrentar a doença desconhecida. Em uma época em que a informação era pouca, a AIDS chegou a ser tratada como a "peste gay" naqueles tempos. O que estigmatizaria o público LGBTQIA+ - aliás, algo que permanece até hoje em certos estratos. Nesse sentido, Oliveira propõe uma espécie de resgate dessas pessoas, desses corpos, desses indivíduos, conferindo-lhes autonomia.  Sim, não é tarefa fácil um filme sobre esse tema sem uma cena sequer de hospital. Ou da transmissão da doença em si. Oliveira consegue.



Dessa maneira, o diretor opta pelo processo silencioso e de sutilezas. Suzano é um estudante que mora na França e está de volta ao Brasil para visitar a irmã (Clara Choveaux) e o já citado sobrinho na véspera da virada do ano, de 1982 para 1983. É nesse contexto que a gente consegue perceber que há alguma coisa "no ar", seja no olhar melancólico, seja na incerteza quanto ao futuro. Sua irmã informa sobre Rose (Renata Carvalho), uma travesti amiga de Suzano, que se apresentará naquela noite. O trio central é completado por Humberto (Victor Camilo), cinegrafista amador que acompanha Rose para a produção de um filme. A madrugada de Ano Novo se pretende feliz - um período de esperança, de renovação, de amor e de fuga (ainda mais em um contexto de Ditadura Militar, que finalmente se aproximava do fim). Um salto no tempo nos levará para os oito meses mais tarde, onde os personagens se encontrarão em outro cenário, em uma casa isolada no meio do mato. Nem todo mundo saberá do paradeiro daquelas pessoas.

"A experiência que eu tive com o HIV/AIDS quando estava crescendo tinha a ver com o desaparecimento. Já era no meio dos anos 1990, mas você ia à boate num dia, e dois meses depois, a pessoa não estava mais ali, e você sabia o que tinha acontecido. A história da crise da AIDS envolve uma crise de nomenclatura. O governo brasileiro falou a palavra AIDS pela primeira vez em 1986, mas a AIDS matava pessoas há quatro anos", destacou Oliveira em entrevista ao site Papo de Cinema. Assim, na construção da obra, o diretor aposta no componente afetivo, de "abraçar a doença" - o que vem a reboque dos próprios registros feitos pelos personagens enquanto encaram as consequências desta. Há dor mas há acolhimento em igual medida. Com ótimas interpretações, especialmente de Renata Carvalho, o filme conta com um sem fim de referências culturais cruzadas - de Jean Genet à Um Bonde Chamado Desejo. Já a obra dentro da obra - no caso a filmagem de Humberto - utiliza a própria metalinguagem para fortalecer o discurso. "Eles tentam nos matar desde que o mundo é mundo" lembra Rose em certa altura. Sim, o debate político surge pelas frestas. E é mais do que bem-vindo.

Nota: 8,5


Pitaquinho Musical - Rina Sawayama (Hold The Girl)

Ok, pessoal, o mundo anda complicado mas aqui está a Rina Sawayama para nos lembrar que, juntos, talvez possamos dar a volta por cima. Enfrentar o que quer que seja. A mensagem pode soar meio óbvia, mas, de alguma forma, parece ser parte do conceito central de Hold The Girl, segundo trabalho da artista nipo-britânica. Abandonando, ao menos em partes, a fúria nü metal do disco de estreia - nosso nono colocado nos Melhores Internacionais de 2020 - Rina abraça com carinho o europop e a dance music, mesclando-o com o rock alternativo, o hyperpop e outros gêneros. O que resulta em uma coleção de canções heterogêneas e cheias de personalidade. "É um disco muito adulto, porque só é totalmente compreendido quando você se torna um adulto e pode relembrar as experiências que teve quando criança", comentou em entrevista à Rolling Stone.


Nesse sentido, é interessante notar como temas diversos que vão desde à opressão religiosa (Holy), passando pelo abismo entre gerações (Your Age), pela homofobia (Send My Love to John) até chegar a importância da autoaceitação (Frankestein) vão se descortinando em letras que fluem como uma verdadeira montanha-russa emocional - sempre amparadas por arranjos envolventes e melodias luminosas. Um outro bom exemplo vem da faixa-título, que Rina afirma ter sido uma espécie de insight pós sessão de terapia. "Foi a música que me desbloqueou e me deixou animada para escrever novamente", explicou. Cheio de contrastes, de idas e vindas, de encaixes nunca óbvios e ainda assim saborosamente acessíveis, Hold The Girl confirma Rina Sawayama como uma das grandes artistas de nosso tempo. Daquelas que olha pro futuro, ao mesmo tempo em que reverencia o passado. 

Nota: 9,0

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Novidades em Streaming - Red Rocket

De: Sean Baker. Com Simon Rex, Bree Elrod, Suzanna Son e Brenda Deiss. Comédia dramática, EUA, 2021, 131 minutos.

Pelo visto o sonho de uma América "grande de novo" não deu muito certo - e eu admito ainda não saber se essa metáfora no filme Red Rocket foi proposital ou não. A obra, afinal, nos joga para o ano de 2016 onde, na industriária Texas City, a cidadezinha respira a fantasia alaranjada e megalomaníaca de Donald Trump. Na TV, o futuro presidente norte-americano - agora já ex - bravateia aquele discurso que mistura nacionalismo utópico com promessas de fortalecimento econômico. O que foi a desculpa perfeita para o exercício da xenofobia, do racismo e de outras violências. Aliás, a respeito dos preconceitos, o protagonista Mikey (Simon Rex) está retornando para a sua cidade natal após uma mais ou menos bem sucedida carreira como astro pornô em Los Angeles. Só que ele está em decadência e os problemas financeiros e com figuras não muito amistosas do meio estão batendo à porta. A América para Mikey já foi grande, se é que me entendem. Hoje, talvez só com viagra.

Só que o problema de ser uma estrela em um meio que ainda gera certa antipatia das "famílias de bem" - especialmente em uma cidadela conservadora do Texas - é que não será possível retornar ao que era antes. Mikey chega afobado à casa da ex-mulher Lexi (Bree Elrod) e da antiga sogra Lil (a falecida Brenda Deiss) clamando por um lugar para dormir que seja. Lexi foi sua antiga parceira no ramo da pornografia e acaba aceitando a condição, desde que o sujeito pague uma parte do aluguel e as auxilie nas lidas domésticas - como cuidar do jardim, cortar a grama e outros afazeres. Arrumar emprego, nem que seja em uma das tantas lanchonetes de fast food locais? Bom, essa não será tarefa fácil. Pra conseguir alguma grana ele se aproxima de uma traficante veterana (Judy Hill), iniciando um negócio de distribuição de maconha junto à uma pequena empresa que comercializa donuts. Seus clientes preferidos? Os operários das refinarias de petróleo da região.

Filmado por Sean Baker - de Projeto Flórida (2017) - naquele estilo de fotografia meio granulada, empalidecida, lo-fi - algo que meio que já se tornou a sua marca registrada -, a experiência transparece certa decadência e um tanto de desolação a cada frame. Circulando pela desértica e melancólica Texas City - com sua paisagem um tanto grotesca de distopia de ficção científica, ocupada chaminés, cabos de luz e prédios acinzentados - Mikey é o sujeito que mantém o sonho de retornar ao seu meio em grande estilo, depois de conhecer a jovem Strawberry (Suzanna Son), de apenas 17 anos. Iniciando um relacionamento meio inadequado com a adolescente, o homem adota um comportamento que beira o delírio psicótico, equilibrando certa insegurança diante de sua nova condição (não passa, afinal, de um ferrado) com a crença em uma dinâmica de poder embasada em uma (falsa) perspectiva de sucesso para além daquele ambiente.

Divertido e trágico, o filme equilibra instantes absurdamente engraçados, como aquele em que Mikey briga com o namorado de Strawberry usando como argumento o fato de ser "ator pornô", com outros que são puro escracho a respeito do momento político dos Estados Unidos, que busca juntar os cacos após a desvairada Era Trump. E, nesse sentido, não há nada melhor para evidenciar a hipocrisia de uma cidadezinha provinciana do que a cena da família que fuma maconha unida, enquanto entoa um canto bíblico. E o melhor: com a seda para enrolar o "crivo" tendo como estampa a própria bandeira dos Estados Unidos ("sou um patriota" lembra Mikey, quando adquire o material na loja). E como se não bastassem todos esses predicados, ainda há o componente nostálgico, que envolve repetidas aparições da música Bye, Bye, Bye, do N'Sync. A América queria ser grande de novo. Mikey foi grande, a sua maneira, em algum momento. Agora é hora de se reerguer em meio aos escombros. Sabe-se lá como.

Nota: 8,0


quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Cine Baú - Week-End à Francesa (Weekend)

De: Jean-Luc Godard. Com Mirelle Darc e Jean Yanne. Comédia dramática, França / Itália, 1967, 105 minutos.

"Cinema é a fraude mais bonita do mundo." Jean-Luc Godard

Ah, a civilização. Esse conjunto de valores próprios que integram a vida política, cultural, econômica e religiosa de um determinado local e que possibilitam a convivência ordeira em sociedade. Poucas vezes essa falácia - a de que somos capazes de ser pacíficos, corteses, afáveis, amistosos - foi tão bem desmontada em um filme como no clássico Week-End à Francesa (Weekend), do recém-falecido Jean-Luc Godard. Caos no trânsito, gritaria, acidentes, traições, discussões, estupros, perversões sexuais. Tiro, bomba, sangue, morte. Ódio, preconceito, intolerância. A buzina interminável. O tempo todo. Tudo aquilo que forma a paisagem, inclusive atual, do nosso cotidiano, está lá. Por que para Godard não bastava criticar por criticar, já que o diretor utilizava a arte e suas possibilidades simbólicas, de quebra de lógica de sua própria linguagem, para um exame mais profundo das nossas mazelas. A viagem feita pelos protagonistas Corinne e Roland Durand (Mirelle Darc e Jean Yanne) é, ao cabo, apenas uma boa desculpa.

Em uma das tantas sequências inesquecíveis, o casal enfrenta um longo engarrafamento, que é filmado de forma bem coreografada em um longo plano de poucos cortes. A balbúrdia e a confusão são ampliadas pelo barulho que vem de todos os lados. Enquanto cruzam a estrada, se deparam com crianças que correm, idosos que jogam xadrez, caminhões de combustíveis, carros batidos, veículos que parecem conduzir animais ao circo, carroças. Discussões e mais discussões. Revólveres que são sacados, ameaças que são feitas. Ao final, vencidos os obstáculos, trata-se "apenas" de um grave acidente. Com vários mortos. Fazer o quê, né? Ninguém é coveiro e a vida continua. Mais adiante, a dupla se depara com uma nova confusão. Nela, uma ricaça discute com o motorista de um trator - provavelmente um agricultor da região. Ela argumenta de forma elitista, evidenciando a diferença de classes como uma forma de apontar onde está a ponta mais fraca (a que de depende do Governo, de associações, de cooperativas). 


No cerne do filme de Godard, assim como em muitos outros, está o apontamento desses contrastes. Especialmente o de que nas aparências de uma convivência ordeira, está um subsolo cheio de feridas, de fraturas estruturais, de paradoxos. E que não tardarão a emergir à superfície. Ao cabo Roland e Corinne são anti-herois irritantes, burgueses mesquinhos. Cada qual com seu amante que mantém em segredo - conspirando para matar o outro. E como assassinato pouco é bobagem, ainda tramam entre si para colocar em prática um plano que visa a dar cabo da vida do moribundo pai de Corinne. O que lhes garantirá uma polpuda herança. Eles estão agitados, claro. E não é por acaso. Quando se acidentam no meio do caminho, a preocupação da mulher é com a sua bolsa: um artigo de luxo perdido no incêndio. O restante da trajetória, num ambiente rural, bucólico e inóspito, terá de ser feito a pé. Onde se depararão com um sem fim de figuras excêntricas, bizarras, que parecem saídas de algum lugar da literatura fantástica, do teatro mágico. Ou, vá lá, de um sonho felliniano que se mistura com os delírios de Buñuel (todos eram contemporâneos, afinal).

E tomando-se por base Weekend À Francesa, talvez não seja por acaso que a obra de Godard permaneça tão atual, tão vívida, tão contemporânea. Refletindo esses nossos tempos - de extremismo de direita, de pandemia, de guerra, de vazio das relações e de incapacidade de compreender o outro - como nunca. Quando um vizinho saca o revólver para tentar atirar no outro por causa de uma batida de carro ainda no começo do filme, é simplesmente impossível não pensar nos malucos que preferem tirar a vida de alguém que nem conhecem em uma uma briga de trânsito, do que optar pela conciliação. A civilização falhou e o diretor francês era mestre em ir nas vísceras dessa análise (a divisão por classes de antigamente, apenas se converteria na divisão por classes atual). Hiperbólica. Surrealista. Histriônica. Picaresca. Metalinguística. Política. Filosófica. A experiência com o filme pode soar exagerada e pouco amistosa para alguns paladares. Talvez direta demais. Mas o encontro da selvageria da vida real, em colisão com a busca da compreensão do mundo - especialmente por meio das artes - segue incontestável em última análise. O legado de Godard é enorme. E Weekend é só um de seus tantos clássicos. 


terça-feira, 13 de setembro de 2022

Curta Um Curta - Wasp

Vencedor de quase uma dezena de prêmios - entre eles o Oscar de Melhor Curta-Metragem Live Action na cerimônia de 2005 - Wasp, de Andrea Arnold, é daqueles projetos que coloca o espectador numa espécie de "sinuca". Na trama, acompanhamos a jovem Zoe (Natalie Press), mãe solo que parece bastante ocupada na tentativa de fornecer o mínimo para seus quatro filhos pequenos - e a briga com uma vizinha já no começo da projeção é uma mostra de que as coisas não andam bem. Voltando pra casa ela é interpelada por Dave (Danny Dyer), uma paixão da juventude que está de volta à cidade e a convida para sair. Mas como conciliar a rotina sufocante com as crianças com o desejo de também viver a própria, ter um romance, transar, ser amada? Fazendo um verdadeiro malabarismo, Zoe se empenha em conciliar tudo - e a vespa que circula, buscando uma espécie de liberdade, surge como a metáfora óbvia que dá nome ao curta. Liberdade, responsabilidade, anseios, sonhos, dúvidas, angústias, tudo ocorre enquanto torcemos pra que todos se conciliem de alguma forma. É otimista, poético, naturalista. Talvez quase utópico. Mas não custa sonhar.



Cinema - O Chef (Boiling Point)

DE: Philip Barantini. Com Stephen Graham, Vinette Robinson, Alice Feetham e Jason Flemying. Drama, Reino Unido, 2021, 95 minutos.

O ambiente confinado de um restaurante luxuoso se torna (ainda mais) sufocante nessa pequena joia do cinema alternativo chamada O Chef (Boiling Point). Como se já não bastasse o mérito de ser magistralmente filmada em apenas um plano-sequência, a obra ainda utiliza um ambiente de trabalho costumeiramente de grande pressão como um microcosmo realista onde frustrações, desejos, sonhos, dores, medos e alegrias se misturarão. Nesse sentido, guardadas todas as proporções, é simplesmente impossível não pensar nas nossas próprias existências e de como articulamos a necessidade diária de trabalhar, independente de nosso estado de espírito. Quantas vezes já não fomos pra labuta sendo que tudo o que gostaríamos era de ficar em silêncio, em casa, sem precisar pensar em mais nada? Emulando a exaustão da sociedade do cansaço, o diretor Philip Barantini nos lembra o tempo toda da crueldade que é imposta pela rotina. As pessoas precisam comer. Um restaurante não pode parar.

Só que o problema é que o chef Andy Jones (Stephen Graham em caracterização impressionante) tá cheio de problemas em casa. Algumas ligações ao telefone fazem com que percebamos que ele recém se separou. E, mais do que isso, de alguma forma ele tenta amenizar o turbilhão de sentimentos que envolve ainda um filho. É preciso respirar fundo, afinal, há uma noite de restaurante lotado pela frente. Na chegada ao local - o sofisticado Jones & Son -, Andy se depara com um servidor da vigilância sanitária que, após uma vistoria, aponta uma série de adequações que serão necessárias nos próximos três meses (o que faz com que a pontuação do ambiente seja momentaneamente reduzida). Só que este é apenas o primeiro problema, já que o protagonista precisará lidar ainda com problemas de logística envolvendo o fornecimento de matérias-primas, funcionários insatisfeitos além do coletivo de clientes que parecem prontos para complicar as coisas ainda mais.




É o caso por exemplo de um certo Alastair Skye (Jason Flemyng), um famoso chef de um programa de TV que, de quebra, ainda carrega a tiracolo uma temível crítica gastronômica (Lourdes Faberes). Com a câmera indo pra lá e pra cá por corredores, cômodos, espaços externos e pequenos refúgios exteriores, o diretor Philip Barantini converte O Chef em uma experiência claustrofóbica sobre um homem no limite, tentando manter a sanidade (e o equilíbrio). É o que explica por exemplo o seu ambíguo comportamento quase típico de quem sofre de algum transtorno bipolar - num instante ele está passando uma carraspana em um empregado que está com dificuldade para cortas os frutos do mar de forma satisfatória para, no momento seguinte, afagá-lo enquanto pede desculpas. Contando ainda com uma gerente nada amistosa e que pouco ajuda (Alice Feetham) e uma suis chef cheia de personalidade que está louca pra meter o louco e pedir as contas (Vinette Robinson), a noite avançará com aquela sensação de que uma tragédia estará pronta pra acontecer a qualquer momento.

Nesse sentido, o filme, baseado num curta de Barantini, tem o vigor de uma peça de teatro e o apuro técnico absurdamente naturalista de uma obra estrutura para ser filmada toda em um só take. E, de forma admirável, tudo está no lugar. Dos pratos que saem da cozinha para as mesas, dos garçons que circulam de forma calculada pelo ambiente, até chegar aos acidentes que são tão realistas que nem parecem forjados (como na hora em que Andy deixa uma panela cair). É u filme diferente, tenso em certa medida e que, ainda discute alguns temas bastante atuais, como é o caso do racismo - que parte de um cliente -, das tentativas de suicídio de um jovem empregado ou dos influenciadores digitais irritantes, que parecem prontos pra se aproveitar da situação. É tudo muito bem coreografado, controlado quase como a temperatura de cozimento de um prato requintado. O resultado é saboroso demais.

Nota: 8,5


segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Livro do Mês - A Metade Fantasma (Alan Pauls)

Savoy, o protagonista de A Metade Fantasma, novo romance do argentino Alan Pauls, possui um hábito excêntrico: visitar casas e apartamentos para alugar pelo simples prazer de adentrar o espaço alheio. A intenção não é de, efetivamente, fechar algum negócio: ao conhecer corretores e negociar encontros, esse cinquentão anacrônico que sequer possui um aparelho celular decente, funciona como um intruso fugaz da vida dos outros, enquanto contempla a singularidade dos moradores da capital Buenos Aires. O caos dos objetos, as quinquilharias que se amontoam, os odores esquisitos, as manchas nas paredes, o componente febril das relações, a intimidade devassada, enfim, qualquer coisa que possa contribuir para que ele desvende, nem que seja em partes, algo da existência daqueles que visita, oferece um fiapo de voyeurismo que, vá lá, não durará mais do que vinte minutos - mas que atenderá essa curiosa necessidade de sua vidinha tão errática quanto ordinária.

Em meio a entradas aleatórias no chatroulette e às perdas de tempo sucessivas em sites de compras de objetos meio inúteis - que ele amontoa em um canto da casa e que serão a desculpa perfeita para parte dessas visitas à terceiros (os lugares habitados, afinal, parecem ainda mais curiosos, mais interessantes, menos previsíveis) - ele conhecerá Carla, uma mulher mais jovem que, se comparada a Savoy, parece saída de outra dimensão. Carla é o completo oposto: conectada, tecnológica, participante ativa de uma geração em que a internet move a vida, as relações, os hábitos e os comportamentos. Trabalhando como house sitter - que é a pessoa que cuida das casas, dos animais, das plantas e da organização dos ambiente enquanto os demandantes viajam -, a jovem é a Geração Z desenhada. Não cria laços. Não estabelece vínculos afetivos intensos. Suas "raízes" são o mundo, que é o local a que ela pertence. Assim como ela está em Buenos Aires nessa semana, pode estar em Paris semana que vem. Em Tóquio na outra.



Só que um romance um tanto fugaz com a jovem servirá para bagunçar a vidinha mundana de Savoy. Sumindo de sua vida sem muita explicação, Carla lhe deixa apenas uma touca e um óculos de natação - o exercício o ajuda a extravasar, ao menos em partes, os seus impulsos - e o seu contato para que ele possa se conectar a ela via skype. O que ela fará na medida do possível, em horários marcados, entre uma viagem e outra (mas desde que o jet lag não atrapalhe). Para Savoy essa relação cibernética, pixelada, em meio a conexões difíceis, delays insuportáveis, mensagens fragmentadas e instabilidades na transmissão serão apenas angustiantes, sufocantes. Como, afinal, substituir o calor da presença amorosa, do abraço aconchegante, do acolhimento que é condição básica de um relacionamento, pela necessidade da virtualidade na hora de sustentar uma história de amor? É possível superar as diferenças geracionais e a paixão mediada pelas máquinas?

Com uma narrativa vigorosa, repleta de frases longas, separadas por vírgulas, em sentenças intermináveis, Pauls parece brincar, inclusive com os limites da linguagem digital, formando uma leitura hipertextual de idas e vindas, de fluxos de consciência e de ideias encadeadas com um ordenamento tão poético quanto eloquente. Intercalando instantes mais divertidos, com um senso de humor debochado e nonsense - a parte em que o protagonista detalha situações cotidianas do ambiente da piscina ("o ódio que lhe dava, ao sair do banho, que a regata lhe opusesse resistência, que os pés lutassem com as pernas da calça, que as meias nunca calçassem por completo") é ótima -, com outros mais melancólicos e sufocantes, como naqueles em que ele vai se deparando com a raiva que emerge pela displicência de Carla, tornam a leitura do livro uma experiência moderna, que discute relações na contemporaneidade e mesmo imaterialidade da existência no Século 21 de forma inteligente, hipnótica e imprescindível. Talvez a melhor leitura do ano. E uma das melhores da vida.

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Pérolas da Netflix - O Empregado e o Patrão (El Empleado y El Patrón)

De Manolo Nieto. Com Nahuel Pérez Biscayart, Cristian Borges e Justina Bustos. Drama, Uruguai / Brasil / Argentina / França, 2021, 107 minutos.

Muito mais do que um filme de teor político sobre questões que envolvem o universo do trabalho, O Empregado e o Patrão (El Empleado y el Patrón) é uma obra sobre relações humanas e suas sutilezas. Isso não quer dizer que os contrastes sociais que colocam em lados opostos as duas famílias que acompanhamos em cena não estejam lá. Basta ver a moradia opulenta dos proprietários das lavouras de soja em contraponto a casa de pau a pique da família daquele que será contratado para trabalhar na safra. De um lado o maquinário agrícola que, em muitos casos, avaliza a riqueza. De outro, o cavalo solitário que simboliza um pouco de tudo ao mesmo tempo. O cenário é o Norte do Uruguai, na divisa com o Brasil - um local tão bucólico quanto inóspito. É nele que o jovem Rodrigo (Nahuel Pérez Biscayart) procurará alguém que possa auxiliar a família na colheita de grãos - a mão-de-obra parece meio escassa e o excesso de chuvas pode colocar a perder parte de lavoura.

Mais do que isso, Rodrigo precisa de alguém que saiba dirigir uma colheitadeira - o que ele conseguirá ao contatar Carlos (Cristian Borges), um rapaz de 18 anos que é filho de um antigo funcionário de seu pai. Assim como Rodrigo, Carlos é um jovem casado e pai de um bebê pequeno. Ao cabo, ele precisa trabalhar - ainda que, em seu íntimo, sonhe mesmo com as corridas de cavalos (o seu desejo nem tão secreto é participar de uma espécie de maratona eqüestre, que acontecerá dali algumas semanas). Carlos coloca essa como a única condição para aceitar o emprego. Tudo começa mais ou menos bem e, num universo de tanta precariedade como é o do trabalho no campo, Rodrigo até parece ser um patrão razoável. Ou ao menos não é aquele carrasco que poderia parecer uma figura maniqueísta óbvia - uma solução que o roteiro evita. Mas num dia como outro qualquer, o jovem empregado sofre um grave acidente com o trator que dirigia, com consequências terríveis para todos os envolvidos.



Costurada pelo diretor Manolo Nieto como uma experiência fílmica sobre tragédias e busca de superação, a obra também aposta em uma análise mais estrutural e menos direta na hora de discutir as diferenças de classe. Um bom exemplo disso envolve o fato de o filho de Rodrigo padecer, aparentemente, de uma grave doença que fragiliza sua saúde. O que poderá ser controlado (e contornado) mais adiante, com o tratamento médico adequado. O que decorre, claro, de um bom acesso ao sistema de saúde - o que pode ser obtido com mais facilidade pra quem tem dinheiro. Da mesma forma, será o mesmo dinheiro que moverá as tentativas desesperadas da família de empregadores de tentar apaziguar os traumas do acidente, propondo acordo financeiros ou mesmo outras chantagens quando o sindicato que apoia os trabalhadores entrar na jogada. É quase como um jogo de xadrez sendo jogado lentamente, com cada pequeno gesto podendo vir carregado de sentido.

Um bom exemplo desse expediente está no almoço em que Federica (Justina Bustos), a esposa de Rodrigo vai conversar com Carlos para oferecer ajuda. Seu gestual, sua conversa mansa sugere muito mais uma obrigação que está sendo cumprida - como um protocolo que busca tentar amenizar as dores da consciência - do que algo sincero, honesto. Aliás, não demora para que ela sugira ao marido de que a família de trabalhadores seja dispensada do local. Em meio a tudo, a corrida de cavalos surge como uma moeda de troca que poderá auxiliar a todos: se vencer, Carlos faturará uma boa grana. Às custas de um saudável e valioso cavalo da família de Rodrigo. Os holofotes se voltam ao evento num contexto naturalista, que quase ganha ares documentais. Um empregado que cavalga para o chefe que embolsará o dinheiro. Uma simbologia nem tão discreta. A troca de olhares diz muito. Mais até do que devia. É como se aquelas vidas existissem de fato. Com sua lógica existencial própria. Com sua organicidade vívida. É um filme pequeno, distinto, incômodo, cheio de camadas. E que foi o enviado do Uruguai para o próximo Oscar. Fica a torcida.


quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Na Espera - Glass Onion: Um Mistério Knives Out (Filme)

Antes de qualquer coisa é preciso parabenizar o responsável pela tradução do título da sequência de Entre Facas e Segredos (2019), afinal, Glass Onion: Um Mistério Knives Out (Glass Onion: A Knives Out Mistery) ficou meio que naquela vibe "juntos e shallow now" de misturar inglês e português meio aleatoriamente. Bom, posto isso, o filme de Rian Johnson lançado três anos atrás foi uma ótima surpresa da temporada, com um elenco carismático - de nomes como Daniel Craig, Jamie Lee Curtis e Toni Colette - e uma trama à moda Agatha Christie com senso de humor. O resultado foi tão bom que até indicação ao Oscar na categoria Roteiro Original rolou.



Naturalmente essa continuação (na verdade Johnson explicou que se trata de uma história do zero), que tem estreia prevista para o dia 23 de dezembro na Netflix - que investiu mais de US$ 400 milhões para ter os direitos de produção das sequências -, vem cercada de expectativa. Pelo trailer dá pra perceber que Daniel Craig retorna ao papel do detetive Benoit Blanc, se vendo diante de um novo e misterioso crime (desta vez com ambientação na Grécia). No elenco, ainda estão nomes de peso como Edward Norton, Kathryn Hahn, Leslie Odom Jr., Kate Hudson, Janelle Monáe e Dave Bautista. Sinceramente esperamos não nos decepcionar.


terça-feira, 6 de setembro de 2022

Grandes Cenas do Cinema - Traídos Pelo Desejo (The Crying Game)

De: Neil Jordan. Com Stephen Rea, Jaye Davidson, Forest Whitaker, Miranda Richardson. Drama / Romance / Suspense, Reino Unido, 1992, 112 minutos.

Foi em 2007 que a revista norte-americana Premiére elaborou uma lista com as 25 cenas mais chocantes da história do cinema. Estavam lá momentos memoráveis, como aquele da criatura alienígena destroçando o corpo de um dos passageiros da nave Nostromo, em Alien: O Oitavo Passageiro (1979), a famosa sequência do chuveiro, de Psicose (1960), ou o final impactante de O Sexto Sentido (1999), entre outras. Em um inesperado primeiro lugar, um instante de Traídos Pelo Desejo (The Crying Game) que, talvez nos dias de hoje, não escandalizasse tanto assim. Mas que em 1992 impactaria e geraria estranhamento nas plateias mundo afora. Na sequência em questão o guerrilheiro do IRA Fergus (Stephen Rea) vai atrás da enigmática Dil (Jaye Davidson), namorada do soldado inglês Jody (Forest Whitaker) que é sequestrado e morto pelo exército irlandês. Ele passa a persegui-la, vigiá-la, e se apaixona por ela. Mas quando eles vão ter a primeira noite...

Eu lembro até hoje o quanto eu fui surpreendido quando assisti ao filme de Neil Jordan pela primeira vez, alguns anos depois de seu lançamento. E o mais legal da obra é como, em uma época em que não existiam redes sociais, ela te enganava bonito! Hoje, 30 anos depois, todo mundo sabe que Dil era na realidade uma transexual - e a cena em que ela aparece nua de corpo inteiro, pela primeira vez, exibindo seu pênis, é de um impacto meio inesperado. A gente realmente não imagina, dada a feminilidade da personagem, sempre elegante e sexy em vestidos e botas de salto, que realçam seu corpo esguio. Ainda assim, em retrospectiva, é interessante notar como Jordan parece dar várias pistas do que está por vir - e que vão desde os traços levemente andróginos de Dil, passando pelo fato de ela ser cantora em uma boate gay nas horas vagas, até chegar ao fato de ela demorar bastante tempo pra se revelar mais plenamente, por assim dizer.


E há ainda um ótimo momento em que o afável atendente do bar da boate - seu nome é Col (Jim Broadbent) - parece ter a intenção de "alertar" Fergus sobre algum segredo de Dil, sendo interrompido em um momento determinante. Estava tudo lá, mas essa é, de alguma forma, a mágica do cinema. Assim como no citado O Sexto Sentido - que catapultou todos os espectadores das poltronas em direção à estratosfera com sua revelação final - aqui, o inesperado vem do prosaico, do cotidiano, que confronta de alguma forma a sexualidade heteronormativa, avançando para uma excelente reflexão sobre a paixão (e o amor) acima de tudo. E independente de gênero. Em entrevistas, Rea destacaria mais tarde a ousadia de Jordan em colocar um nu frontal do tipo, em uma época em que isso era raríssimo - sim, é bem diferente das séries da HBO Max nos dias de hoje. "Devo dizer que acho que nunca tinha visto um pênis em tela antes", comentou para a Vulture em 2014.

Penso que outra questão que torna tudo bastante inesperado é a obra iniciar como um thriller político sobre disputas internas na Irlanda. Por cerca de 40 minutos a inesperada amizade entre Fergus e Jody se estabelece - por mais que o primeiro mantenha o segundo como refém. E é justamente o sentimento de culpa pela morte do prisioneiro - que, vale lembrar, é atropelado por um tanque de guerra enquanto tenta fugir - que faz com que nós, como espectadores, também torçamos para que as coisas saiam a contento. E o fato de Dil ser uma figura misteriosa, sexy e determinada torna tudo ainda melhor, nessa virada em direção ao drama romântico que a obra dá (aliás, um tipo de mistura típica dos anos 90). Traídos Pelo Desejo, pela sua coragem e pelo seu atrevimento receberia, com justiça, o Oscar de Melhor Roteiro Original na cerimônia de 1993, sendo nominado ainda em uma série de outras categorias (inclusive Melhor Filme). Hoje, a nudez desse tipo já está bem mais naturalizada. E, muito provavelmente, não renderia tanto falatório como na época.

[Não encontramos a sequência no Youtube, então colocamos essa, da cena do bar]


Novidades em Streaming - Elvis (Elvis)

De: Baz Luhrmann. Com Austin Butler, Tom Hanks, Olivia DeJonge e Dacre Montgomery. Drama / Musical, EUA, 2022, 159 minutos.

"Ela estava tendo sentimentos que não tinha certeza se deveria gostar. Ele era um gosto de fruta proibida e ela poderia tê-lo comido vivo."

"Caímos em uma armadilha. Não posso escapar". Em uma das tantas grandes sequências de Elvis (Elvis), superprodução de Baz Luhrmann que acaba de estrear na HBO Max, o Rei do Rock está em uma espécie de recomeço musical no início dos anos 70, após a sua fracassada incursão por Hollywood. Na ocasião, todo um aparato foi montado para uma apresentação no International Hotel, em Las Vegas, com a presença de um público seleto e uma banda de apoio de altíssima qualidade - o que incluía os grupos gospel The Imperials e Sweet Inspirations. Enquanto o artista entoa os sinuosos versos de Suspicious Minds, o Coronel Tom Parker (Tom Hanks) se ocupa de fechar um contrato de cinco anos para que o astro se apresente no local, com um salário milionário - e, muito provavelmente, um esgotamento físico e mental que decorreria dos mais de 500 shows no período. Encarnado de forma magnética por Austin Butler, Elvis Presley caía em (mais) uma armadilha. Da qual não podia escapar.

E, sim, muito mais do que uma obra sobre a ascensão e a queda de um dos grandes artistas da nossa história, Elvis é uma obra sobre o controverso relacionamento de Parker com o cantor. Até mesmo porque, se por um lado o coronel foi um dos responsáveis por conduzi-lo a um estrelato meteórico quando, ao observa-lo em ação - com seu frenético, sexy e envolvente rebolado, que levava a platéia à loucura -, o incluiria na turnê do cantor country Hank Snow (David Wenham), por outro ele também seria o mentor de um sem fim de decisões erradas que, de alguma forma, atrasariam a carreira de Elvis. E, a bem da verdade, é possível perceber na trama como as suas personalidades poderiam ser diametralmente opostas. Elvis era transgressor, iconoclasta, selvagem em uma alguma medida, e até inconsequente em outra, ao passo que Parker adotava uma postura comportada, conservadora, submissa às convenções, mas que escondia a sua perversão (e a sua ambição) atrás de sorrisos e de promessas de sucesso fácil.


Nesse sentido seria óbvio que, lá pelas tantas, eles bateriam de frente - e aqui está uma das grandes mágicas da produção. Muito mais do que o mito ou do que a lenda maior do que tudo, nos deparamos aqui com o Elvis ao menos um pouquinho, que seja, "gente como a gente" - ainda que dono de um talento único que viria a ser o seu ônus e o seu bônus, com a fama vindo à reboque do uso de medicamentos para conseguir aguentar a agenda insuportável, ao mesmo tempo em que luta para sustentar sua família, alcançar seus sonhos, persistir. Tudo enquanto a máquina trituradora de astros e estrelas passa, prontinha pra apresentar a seus jovens uma nova atração - que podem ser os Beatles ou os Stones ou mesmo Little Richard ou Fats Domino (o rock surgia, afinal). Já Parker é o vilão onipresente que participa de praticamente todos os negócios que envolvem sua maior estrela - e o seu faro desenfreado para os negócios, que poderia ser uma de suas grandes virtudes, também o conduzirá a uma derrocada motivada por uma ganância quase infinita.

Mesmo sendo menos Baz Luhrmann do que os filmes do Baz Luhrmann, Elvis é uma obra tecnicamente impecável - e será praticamente impossível não ver o filme indicado ao Oscar em categorias como Desenho de Produção, Maquiagem e Penteados, Figurino, Edição e talvez até Roteiro Original (com a cereja do bolo podendo ser uma nominação à Filme). É tudo muito bem costurado, com cada sequência da cronologia estabelecendo diálogo com eventos políticos, culturais e sociais históricos - casos dos assassinatos de Martin Luther King e Bob Kennedy. Aliás, como não ser absorvido pela sequência em que Elvis quebra o protocolo e enfrenta a polícia, que pretendia prendê-lo caso ele cantasse e dançasse de forma lasciva em um show voltado apenas ao público branco (com um político a alguns quarteirões de distância proferindo um discurso de exaltação higienista aos confederados)? É esses instantes que transformam a obra em uma experiência elétrica, fisicamente palpável, cheia de entusiasmo, de significado e de licenças poéticas mais do que justas, que englobam da juventude de Elvis na pequena Tupelo até o ocaso em circunstâncias pouco claras. E tudo embalado pelo melhor do repertório do ídolo - indo de Hound Dog, passando por Blue Suede Shoes até chegar à Jailhouse Rock. É um filme grandioso. Que merece demais a nossa atenção.

Nota: 8,5

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Cinema - Não! Não Olhe! (Nope)

De: Jordan Peele. Com Daniel Kaluuya, Keke Palmer, Steven Yeun e Brandon Perea. Ficção Científica / Suspense / Drama, EUA / Japão / Canadá / 2022, 130 minutos.

"Você sabia que a primeira imagem registrada em celuloide da história nos Estados Unidos é de um homem negro montado a cavalo?"

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO CONTÉM SPOILERS]

Uma obra sobre a natureza exploratória da indústria do entretenimento? Uma alegoria sobre apagamento de vidas negras e outras questões raciais? Uma análise social sobre o voyeurismo em tempos tecnológicos? Ou apenas um filme clássico de invasão alienígena? Definir Não! Não Olhe! (Nope) não é tarefa fácil e, vamos combinar, está tudo bem - até mesmo porque eu duvido muito que alguém termine o novo projeto de Jordan Peele (Corra!) e pense "bah, acho que eu sei exatamente o que o diretor quis dizer". Aqui nada é definitivo mas, tudo é envolvente, sensorial. E bastam os primeiros dez minutos para que já saibamos haver mais camadas por baixo da superfície. E outras, e mais outras. Como já se tornou uma tradição em sua curta filmografia, Peele discute uma série de temas, mas sempre apostando no dito pelo não dito, naquilo que fica nas entrelinhas, nas bordas, nas frestas. A sutileza é o que nos pega, nos amarra, nos absorve.

E, mais do que tudo, mesmo sendo um projeto relativamente enigmático em suas discussões, o roteiro como um todo é simples - ainda que tudo seja pra lá de instigante. Nesse sentido, Peele faz com que a gente se movimente daqui pra lá na poltrona porque parece haver uma espécie de desconforto permanente, algo que ali adiante vá quebrar a lógica. Em uma das primeiras sequências, por exemplo, temos as imagens de arquivo de uma tragédia ocorrida durante as filmagens de uma sitcom fictícia chamada Gordy's Home. Nela, um chimpanzé que integrava o elenco surta e tem um ataque de fúria. Há um contraste entre a cenografia e os figurinos hipercoloridos que compõem o set de filmagem e que fazem um contraponto ao sangue (e aos corpos) que se espalham pelo cenário. Um tênis, exoticamente, permanece de pé - um tipo de evento meio aleatório. Quais os limites afinal do uso dos animais na indústria? É por aí que a narrativa nos levará? Talvez.

Corta para um rancho onde vivem os irmãos James e Jill Haywood (Daniel Kaluuya e Keke Palmer), que tentam tocar o trabalho como adestradores de cavalos após o trágico falecimento do pai em circunstâncias pouco claras (ele é atingido por um objeto em meio a uma chuva de quinquilharias do céu). Responsável pela Haywood Hollywood Horses, James fornece animais para figuração na indústria do cinema. Só que a falta de carisma do protagonista, aliada ao racismo estrutural subjacente, tornam uma tentativa de negócio meio frustrada - e basta ver o olhar de desprezo de uma certa Bonnie Clayton (Donna Mills), a dondoca que protagoniza a obra dentro da obra, para que já saibamos o que ela está pensando. Preconceito racial? É esse o caminho? Também. Incapaz de levar os negócios adiante, os irmãos passam a negociar cada um dos eqüinos a um tal de Jupe (Steven Yeun), um dono de circo das redondezas e que é o único sobrevivente do ataque do chimpanzé Gordy.

Só que em certa noite um dos cavalos foge e, ao tentar resgatá-lo, James se depara com o rancho de Jupe iluminado para uma apresentação, ele está posicionado em um topo de morro (a cena é um tanto hipnótica). Após, há o susto com o que parece ser um objeto voador não identificado. É isso mesmo? Há alienígenas no local? Por quê diabos aquela nuvem do fundo do cenário não se mexe? E por quê os cavalos desaparecem? É possível criticar alguns elementos do próprio universo do cinema e utilizar desses mesmos elementos em um filme? São muitas as perguntas e poucas respostas. No decorrer, Peele aposta na alegoria, na metáfora como elemento norteador (o que vai da citação bíblica à conclusão que beira o delírio e o fascínio midiático). Luzes que apagam e acendem sem explicação, pequenos ETs que aparecem nos estábulos, uma música exageradamente alta, um agrupamento de bonecos de posto que causam estranheza - e que geram mais um paradoxo de cores. Os limites entre a razão e a imprudência, entre a calmaria e a fúria, parecem sempre próximos de serem ultrapassados aqui. A gente vai ficar intrigado até o final. Fascinado em alguma medida. E é isso que o cinema de Peele faz conosco. Vai pelos cantos, nos envolve e nos derruba. E, no fim, resta o sorriro (e até as lágrimas) no rosto.

Nota: 9,0


quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Cine Baú - Veludo Azul (Blue Velvet)

De: David Lynch. Com Kyle MacLachlan, Laura Dern, Isabella Rossellini e Dennis Hopper. Drama / Suspense, EUA, 2022

Uma rua tranquila de uma cidadezinha de interior. As cercas de madeira brancas de uma casa. As rosas no jardim. Um vizinho que molha o gramado verdíssimo. A tranquilidade provinciana que sugere certa calma. Nada parece abalar aquele universo tão inocente, tão sereno em que um cachorro bebe água diretamente de uma mangueira. Mas será mesmo? Na história do cinema não foram poucas as obras que jogaram alguma luz sobre a hipocrisia da classe média que, em muitos casos, joga pra baixo do tapete os seus segredos - muitos deles comprometedores. Em Veludo Azul (Blue Velvet), de David Lynch, o senso de normalidade é quebrado quando Jeffrey Beaumont (Kyle MacLachlan) retorna à pequena Lumberton para visitar seu pai que está hospitalizado. Só que em meio a uma prosaica caminhada em um terreno baldio o rapaz encontra uma orelha humana decepada e em processo de decomposição.

Intrigado, Jeffrey procura o delegado local para relatar o ocorrido. Claramente há algo por baixo dessa superfície tão certinha - e que a alegórica imagem de um grupo de formigas revolvendo a terra evidencia de uma forma nem tão sutil. No caminho para casa, o protagonista é interpelado pela jovem Sandy Williams (Laura Dern) que afirma que o mistério tem algo a ver com uma certa cantora de cabaré chamada Dorothy Valens (Isabella Rosselini), o que desperta a curiosidade do rapaz. Como se fossem uma dupla de detetives sem nenhuma experiência, ambos resolvem investigar o caso por conta própria - o que envolverá a invasão do apartamento de Dorothy. As descobertas serão aterradoras, a partir da entrada em cena de um perverso psicopata de nome Frank Booth (Dennis Hopper) que mantém o marido e o filho da cantora em cativeiro, enquanto a utiliza para satisfazer as suas sádicas perversões sexuais.



Onírico, perturbador, eventualmente grotesco, Veludo Azul é daqueles filmes que geram desconforto nos espectadores mais impressionáveis. A sequência em que Booth violenta Dorothy por longos minutos, enquanto Jeffrey os observa, paralisado, do armário, é brutal e excêntrica em igual medida. De posse de um equipamento de gás do riso - do qual é viciado - o atormentado psicopata age como um predador do submundo, gargalhando na hora errada, enquanto abusa da cantora. Como espectadores somos confrontados por esse voyeurismo bizarro que emerge da união entre sexo e violência, com tudo se tornando ainda mais estranho a cada vez que a singela canção título, de autoria de Bobby Vinton, aparece, com sua melodia de romance dilacerante e letra de paixão comovente (Ela vestia veludo azul / Mais azul que o veludo só a noite / Mais suave que o cetim só a luz das estrelas).

Tecnicamente vibrante, a obra utiliza a sua fotografia, o desenho de produção e os elementos do cenário para evidenciar os contrastes que envolvem aqueles que acompanhamos. O apartamento de paredes vermelhíssimas de Dorothy, por exemplo, evoca a paixão e a dor que decorrerão do sangue derramado nesse universo de abusos - um paradoxo aos tons cinzas de neo noir evocados pelas noites sombrias. A sensação eventualmente parece ser a de sonho - mas um sonho bizarro que se assemelha a um pesadelo (e que se tornaria, de alguma forma, a marca registrada de boa parte da filmografia de Lynch). As soluções não serão fáceis, há toda uma tensão no ar. Mas a construção do suspense é sinuosa, indo no limite da esquisitice como matéria-prima pra esse "mundo estranho" em que todos se encontram, como lembra Sandy em mais de uma oportunidade. Vale revisitar na Amazon Prime.