Editora: Companhia das Letras. Brasil, 2023, 146 páginas.
"Se tinha má fama, a gente não sabe, nem deu tempo de assentar. E agora isso. Essa desgraça! Lourença e Ismênio ficaram cegos com as palavras do pastor. Isso é o que é. Perderam o tino. E não foi só eles, não, muita gente acreditou. Um homem santo, é o que dizem, né doutor? Desculpe, eu sei que o senhor é da Congregação, não tenho a intenção de afrontar. Mas pra mim tanta santidade nunca agradou, não, porque, no começo, eram promessas e mais promessas, testemunhos de vida, pobres que ficaram ricos, desenganados que se curaram, sermões sobre o povo escolhido, o jugo do demônio que foi sendo vencido, mas logo, veja só o senhor, tudo virou pecado, as rodas de dança de São Gonçalo, e muito costume nosso, a cavalhada, as coisas que o padre mesmo, que já vive aqui há muito tempo, nunca ignorou nem tratou com desprezo. Eu não sei dizer se aqui na cidade o pastor tinha palavra mais branda, mas por lá, em Tapuio, em Pacapi, no Poço Guiné e nos sítios por onde andava, era só clamor contra tudo."
Uma história sobre intolerância religiosa - e de como o discurso institucional extremista pode estragar não apenas a vida de uma pessoa, mas de um povoado inteiro. Às vezes por muitas gerações. Mais ou menos assim é possível resumir a experiência com o atualíssimo Caminhando com os Mortos, mais recente obra de Micheliny Verunschk - que foi muito premiada recentemente, com O Som do Rugido da Onça, que conquistou o Jabuti de Melhor Romance Literário. Em um Brasil que tem um congresso capaz de tomar decisões mais com a Bíblia debaixo do braço do que com a Constituição Federal - acenando para o retrocesso em temas que já deveriam ter avançado -, a história de uma jovem queimada vida pela própria família, na intenção de expurgar os demônios, o pecado e a bruxaria não chega exatamente a surpreender. Aliás, em entrevista ao site Quatro Cinco Um, ela afirma ter se inspirado justamente em notícias do tipo.
"Brinco que esse livro é uma história de zumbis, pessoas seguindo alguns preceitos até virarem walking deads", afirmaria na mesma entrevista. E, em alguma medida, é exatamente assim que dona Lourença, mãe de Letinha, a jovem assassinada - alguém cheia de vida, independente, que sairia do povoado de Tapuio, para retornar mais tarde com comportamento diferente daqueles previamente ensinados, de recato, de respeito, de temor à Deus - e seu marido Ismênio passam a se comportar, após a chegada ao local de um pastor evangélico que trabalhará para suprimir a ancestralidade do local, sua cultura e suas tradições indígenas e negras, seus terreiros, suas plantas. Evangelizar é preciso - e ao aderir a tal Congregação dos Justos, os pais de Letinha se converterão em figuras alienadas, que passarão a vigiar o comportamento alheio e suas práticas, enxergando pecado talvez onde nem tenha. Encanrando a própria filha como alguém desavergonhada, excessivamente livre, de hábitos mundanos.
Ao cabo, vocês já viram essa cena: a jovem que sai para o mundo, para estudar, para trabalhar, adquire outros hábitos, retornando à sua comunidade como alguém completamente modificada. O que piorará com o combustível - quase literal - do fundamentalismo religioso, e sua sanha punitivista, de limpeza social e moral, mais ainda contra as mulheres. E, muitas vezes, perpetrada com o apoio de outras mulheres, especialmente quando a lavagem cerebral avança para outros campos, como o da legislação sobre o corpo alheio. "É muito risível: essas pessoas se arvorando em determinar o que os outros são, esses nomes de igrejas que estão no livro: igreja Automotiva ou do Perfume de Jesus são nomes reais de congregações", salienta a autora na entrevista, evidenciando a hipocrisia. Na trama de Michelini outras tragédias se cruzam, outras mulheres sofrem, como no caso da perita narradora, que testemunha a brutalidade se convertendo em uma inesperada algoz que contribui para a perpetuação do suplício. É um livro forte, poderoso, às vezes até difícil em sua prosa atmosférica, bucólica. Mas é imperdível.