quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Na Espera - Bon Iver (Disco)

Ainda que já tenha apresentado o seu novo disco - intitulado 22, A Million - na íntegra, durante apresentação no festival Eaux Claires Music Festival, o novo registro do músico Bon Iver, que será lançado no dia 30 de setembro pelo selo Jagjaguwar, é certamente um dos mais aguardados deste segundo semestre. Como forma de matar a curiosidade dos fãs mais ansiosos pelo novo trabalho, que chega após um hiato de cinco anos, o líder da banda, Justin Vernon, tem liberado também alguns teasers no formato lyric video. Após 22 (OVER S∞∞N) e 10 d E A T h b R E a s T ⊠ ⊠, nesta semana foi a vez de 33 "GOD" ser apresentada ao público.


De antemão, o que se pode depreender da análise das três canções, é o fato de que, muito provavelmente, Vernon apresentará um trabalho muito mais experimental, que flerta com a música eletrônica e até com o trip hop, se afastando um tanto do folk country do início da carreira. Evidentemente, as emanações invernais de seu vocal mantém o clima gélido em cada uma das músicas, mas a melancolia, agora, aparece travestida em outros formatos. E, certa esquisitice, é preciso que se diga, aparece até mesmo no nome das músicas e na capa do álbum, que pode ser vista acima. Independente deste contexto (e talvez até mesmo por causa dele), nem é preciso dizer: aqui no Picanha a expectativa é alta!


segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Disco da Semana - O Terno (Melhor do Que Parece)

Não deixa de impressionar a capacidade que têm os meninos d'O Terno para abordar as mesmas temáticas de outras bandas - as falhas nos relacionamentos amorosos, a inadvertida saudade de alguém, a crítica ao mercado ao qual eles mesmos são integrantes, ou mesmo as vicissitudes da vida e do cotidiano -, mas utilizando-se de um formato todo particular e cheio de personalidade. Não sei se é a ironia fina presente em cada verso, as emanações da Jovem Guarda, de Mutantes ou de outros grupos e vertentes daquele período e que nos deslocam lá para os anos 60, ou mesmo a graça onipresente em cada videoclipe apresentado - sério, se você ainda não viu o recente Culpa, façam AGORA! - mas o caso é que, a cada disco lançado, os paulistanos comandados por Tim Bernardes se apresentam como uma das mais inventivas, criativas e potencialmente inovadoras bandas brasileiras da recém surgida nova safra que, hoje, se convencionou chamar de "Nova MPB".

Funcionando como parte de um processo natural de amadurecimento dentro de sua ainda curta discografia, o terceiro registro da banda, intitulado Melhor do Que Parece, parece abandonar, ao menos em partes, o fraseado direto e até mesmo debochado, de seus trabalhos iniciais, para adotar um modelo um tanto mais sutil. Ainda que, é preciso que se diga, igualmente saboroso e amplo do ponto de vista dos significados. Se em canções como 66 e Zé Assassino Compulsivo do álbum 66 (2012), ou mesmo Vanguarda? e Brazil do homônimo trabalho de 2014 os "alvos" eram os mais variados, agora a guarda parece estar mais baixa, como se pode perceber já no começo do disco. Será que as coisas que eu faço / Penso que não têm problema / Na verdade são pecado / E é por isso que eu me sinto tão culpado? canta Bernardes na divertida e autoexplicativa Culpa, canção que abre o disco, funcionando como uma espécie de carta de apresentação do novo registro.



Como não poderia deixar de ser, as mudanças podem ser percebidas não apenas nas letras, mas no instrumental, que deixa um pouco de lado a fixação por influências das décadas de 60/70 - e de um rock um tanto mais direto - para investir em outros elementos, capazes de formar um todo um tanto mais "robusto". Não à toa, não é difícil encontrar não apenas o acréscimo de efeitos eletrônicos, mas também sopros (tocados por integrantes dos grupos Bixiga 70 e Charlie e Os Marretas), cordas (cortesia de Felipe Pacheco, do Baleia) e até mesmo harpa (tocada por Mariana Mello), capaz de transformar singelas canções como a ótima , em experiências ao mesmo tempo radiofônicas e espaciais, com uma boa dose de psicodelia em cada uma de suas curvas - admitida em entrevista a Revista Rolling Stone como uma clara influência ao Boogarins, que os acompanhou em algumas turnês.

O experimentalismo aparece em outros momentos, como na ótima Lua Cheia, que com sua métrica torta e clima concretista, representa claramente a capacidade do trio de ir para além da alcunha de "banda simpática" para demonstrar uma visceralidade que até já havia aparecido anteriormente, mas com uma dose menor de energia. E se O Orgulho e o Perdão consegue misturar vanguarda com música brega e letra ótima - Me desculpe, meu amor / Mas não posso te perdoar / Meu coração é grande até demais / Mas o que você me fez, não se faz -, a lisérgica Minas Gerais consegue fazer o ouvinte mergulhar no Estado cuja capital é Belo Horizonte, sem nunca lá ter pisado - algo parecido com aquilo que os baianos do Maglore já haviam feito com Salvador, na maravilhosa Avenida Sete.


"Acho que (o disco) tem as músicas mais pop e as mais malucas do que qualquer outra coisa que já fizemos", observou Bernardes, na mesma entrevista já citada a Rolling Stone, admitindo ainda a influência particular de Pet Sounds (1966) dos Beach Boys, no que diz respeito a uma certa exploração mais lúdica - o que não deixa de funcionar como um certo paradoxo no conjunto, especialmente pela inadvertida mescla de música comercial e experimental proposta pelo trio. Independentemente de definições ou da colocação da banda em uma caixinha, o fato é que, com Melhor do Que Parece e suas canções mais maduras e inventivas, - mas sem perder um certo espírito anárquico e juvenil - O Terno se consolida definitivamente como uma das grandes bandas de nosso cancioneiro, deixando o caminho para o futuro totalmente aberto para outras (e ainda maiores) possibilidades.

Nota: 9,3

sábado, 27 de agosto de 2016

Lançamento de Videoclipe - The Avalanches (Subways)

Com Wildflower, os australianos do The Avalanches lançaram, até o momento, um dos melhores discos de 2016 (e olha que o ano tá cheio de coisas boas)! E tão efervescente, multicultural e naturalmente psicodélico como o registro - capaz de beber das mais variadas fontes e estilos, de épocas diversas - é o videoclipe recém lançado para a ótima canção Subways, que integra o álbum. O vídeo foi criado pelos ilustradores franceses Mrzyk & Moriceau e mostra uma versão coloridíssima de uma Nova York em meio a uma viagem lisérgica. Tudo embalado pelo acachapante som recheado de samplers e efeitos, que misturam da maneira mais saborosa possível o hip hop, o R&B e a música eletrônica. Se você ainda não conhece a banda, esta pode ser uma bela porta de entrada. Clica e confere!

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Cine Baú - O Anjo Exterminador (El Angel Exterminador)

De: Luis Buñuel. Com Silvia Pinal, Tito Junco, Jaqueline Andere e Enrique Rambal. Fantasia / Drama, México, 1962, 93 minutos.

Poucas vezes a futilidade da burguesia - bem como os seus modos absurdamente frívolos e carregados de boa dose de alienação - foi tão bem retratada, como no clássico O Anjo Exterminador (El Angel Exterminador), do espanhol Luis Buñuel. Na alegoria do diretor, lançada em 1962, um casal de elite da sociedade aristocrata convida um grupo de amigos para um jantar em sua luxuosa mansão. Mas, depois do evento, todos descobrem estar presos no local - ainda que não haja nenhuma barreira física ali, como grades, por exemplo. Com a impossibilidade de entrar ou sair, os moradores passam a se sentir, conforme passam os dias, como reféns, não demorando para que as máscaras de cada um comecem a cair. E que as vidas, recheadas de aparências, passem a contar com comportamentos puramente animalescos, pautados prioritariamente pelos instintos mais primitivos.

O caso de O Anjo Exterminador não foi o único em que Buñuel centrou a sua temática na crítica a sensação de torpor vivida pelas classes mais abastadas, muito mais preocupadas com o próprio umbigo, do que com o universo que as rodeia - o expediente seria repetido em outras grandes obras, como O Discreto Charme da Burguesia (1972), um dos favoritos da casa. E os momentos de "desespero" do grupo, enquanto aguardam pelo socorro externo que não parece chegar nunca, diante de uma ameaça que simplesmente não existe, não deixam de ser um excelente indicativo desse comportamento individualista e mesquinho daqueles que compõem o grupo. É a exacerbação dos problemas, por menores que eles sejam - e a existência de tumblrs como o, hoje já clássico, Classe Média Sofre, possibilita inferir que, mais de 50 anos após o lançamento do filme, pouco parece ter mudado em relação a isso.



Ainda que, aparentemente, a obra não seja de fácil "digestão", um olhar mais atento certamente possibilitará o encontro de significados em praticamente todas as cenas cuidadosamente encenadas por Buñuel, que, apelando para o clima onírico e fantasioso, tão típico do surrealismo, transforma o absurdo da situação, em algo plenamente palpável. E se o grupo, fechado em um cubículo, não deixa de ser uma bela metáfora para, novamente, a deficiência de se enxergar para além daquilo que os cerca, a existência de cenas envolvendo ovelhas andando em filas - e, sendo, brutalmente, sacrificadas - ou mesmo a grande quantidade de imagens santas e de outros elementos sagrados, não deixa de ser também uma "ponta" do ataque de Buñuel. Isto por estar atento ao fato de que as "famílias de bem", por mais devotas que sejam em relação as crenças religiosas, também tem os seus pecadinhos, os seus segredos e a sua moral duvidosa. Por mais que isto não apareça diante dos outros.

Criticando ainda a dificuldade que, muitas vezes, as classes ricas tem em modificar o status quo estabelecido - uma mudança, mínima que seja, pode ser o estopim para que seja desencadeado um cenário de depravação e a obscenidade - essa obra-prima do surrealismo nos mostra, ainda, que, no frigir dos ovos, rico ou pobre, alto ao baixo, todos são humanos. Aliás, demasiado humanos. Com fraquezas, doenças, medos, delírios e inseguranças - que podem se sobressair no formato da mais pura degradação de caráter diante de fatos extremos. (e, nesse sentido, é praticamente impossível não lembrarmos de filmes hollywoodianos modernos, como Beleza Americana e Pecados Íntimos, só pra citar dois, que certamente beberam desta fonte - ainda que não de maneira tão evocativa e extravagante)



Funcionando ainda como um divertido tour de force da luta de classes - a saída à francesa dos empregados, logo no início é um dos grandes momentos - o filme ainda mostra que, mesmo na decadência, a pose não é perdida, como deixam claro os maus tratos sofridos por Julio (Claudio Brook), o mordomo e único funcionário que permanece na casa. E se o final com explosão fascista - com direito a tiros para conter uma multidão alvoroçada - deixa um gosto amargo, a crítica mordaz a empáfia da aristocracia e a um cenário composto por uma sociedade débil e de diferenças sociais gritantes, são os pontos mais do que fortes. Ainda que figure em diversas listas de melhores, talvez O Anjo Exterminador não seja o filme mais importante de Buñuel - Um Cão Andaluz (1929), Os Esquecidos (1950) e Viridiana (1961), seguem entre os mais lembrados. Mas, certamente, é um dos mais pungentes. E, para nós do Picanha, mais do que merecedor do Cine Baú.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Picanha.doc - The Human Experiment

De: Dana Nachmann. Narração: Sean Penn, 2013, 92 minutos.

Beber, fumar, comer açúcar e gordura em excesso. Saltar de paraquedas, surfar uma onda enorme, fazer base jumping, torcer para o Grêmio. Todas essas ações demasiado humanas possuem aquilo que podemos chamar de "risco calculado" - espécie de trato que fazemos com o nosso destino. É óbvio que sabemos que podemos morrer saltando de paraquedas, caso o equipamento não funcione. Se fumarmos duas carteiras de cigarros por dia, bom, talvez tenhamos câncer de pulmão. Diabetes, insuficiência cardíaca, cirrose. Todas são doenças que podem ser desencadeadas pelos nossos hábitos alimentares, tendo nós a consciência e - pode-se dizer - um certo domínio das atitudes. Mas e quando os riscos a que estamos submetidos são escondidos por empresas - multinacionais, como não poderia deixar de ser - preocupadas somente com o lucro final? Empresas que nos forçam a nos contaminarmos - e a nossos filhos - com produtos perigosos para a nossa saúde todos os dias? É esse o tema do arrebatador documentário The Human Experiment, disponível na Netflix.

Desde 1975 as taxas de incidência de câncer de mama subiram mais de 30% em mulheres e também em homens, afetando inclusive jovens que nunca beberam, que não têm histórico familiar da doença, que não comem carne vermelha e ainda praticam exercícios. Mas de onde vem isso? O que o filme de Dana Nachmann tenta fazer - com sucesso, diga-se - é relacionar esses números estarrecedores com outros, como aquele que dá conta do elevado número de produtos químicos existentes hoje em dia, e que podem estar em qualquer lugar - nos nossos cosméticos, na garrafa plástica de água e até mesmo no sofá que a gente senta. Se no início daquilo que se conhece como Revolução Química Moderna, nos anos 60, havia cerca de 80 mil produtos químicos, hoje, esse número subiu inacreditáveis 2000%. Grande parte deles sem nenhuma regulamentação porque (pasme), nos Estados Unidos não são necessárias pesquisas prévias que possam alertar para riscos à saúde humana antes de algum produto chegar ao mercado - e quando estes eventualmente aparecem, o trabalho de lobistas com bolsos recheados por milhões de dólares é o de manipular a opinião pública, apelando para artimanhas relacionadas ao benefício da dúvida, ou mesmo ao patético argumento de "não te obriguei a usar".



É claro que os casos de câncer, sozinhos, talvez não fizessem verão. Mas são tantos os números absurdos relacionados ao aumento de casos de autismo em crianças, de mulheres com problemas para engravidar (ou na gestação), de elevação de episódios de asma em adolescentes ou mesmo de más formações genitais em meninos que parece ser praticamente impossível não relacionar esse mal moderno, ao excesso de formaldeídos, de cádmio, de arsênico, de cloreto de vinil, de chumbo e de outros milhares de produtos químicos existentes em nossas vidas. E que movimentam um mercado de inacreditáveis US$ 720 bilhões ao ano - tendo por trás fabricantes como Basf, Dow, Du Pont, Exxon Mobil e, claro, como não poderia deixar de ser, a Monsanto. Pesquisadores, representantes de organizações não governamentais, ativistas, senadores, professores, médicos e jornalistas são entrevistados nesse entristecedor documentário, que mostra que bebês americanos já nascem com mais de duas dezenas de produtos químicos em seus frágeis corpos - situação que talvez venha a comprometer as suas existências.

E o mais desolador é perceber o fato de não parecer haver, salvo algumas raras exceções, o mínimo de vontade política para que esse cenário seja modificado, com senadores, deputados e governantes deixando de votar em leis importantes para a saúde da população, apenas para agradar aqueles que injetam milhões em suas campanhas. (e nesse sentido é praticamente impossível não pensar no caso de Brasil, em que um deputado propõe que o termo agrotóxico seja substituído por "produto fitossanitário" nas embalagens - perpetuando a lógica já pré-estabelecida do veneno sendo encarado como um "defensivo agrícola". Isto, enquanto milhares de produtores rurais morrem ou enfrentam severos problemas de saúde por conta do manejo inadequado ou excessivo lavouras afora) Lembra do caso do amianto? Hoje ele não é permitido mais, na fabricação de telhas. Mas foi, durante muitos anos. E não fosse o ativismo, a luta, a BRIGA talvez o cenário permanecesse o mesmo.


Pra não dizer que a multipremiada obra - recheada de ótimas imagens, infográficos interessantes e entrevistas de impacto - mostra apenas o lado ruim, na última parte da película são mostradas diversas iniciativas de indústrias que trabalham com materiais mais limpos ou menos prejudiciais. E, o mais incrível - e natural, evidentemente -, as pessoas não se importam de pagar um pouco a mais, desde que saibam que haja zelo pelas suas vidas - e aqui vale a lógica da feira de produtos orgânicos, onde pagamos 50% a mais pela bandeja de morango, com gosto. Butane, isobutane, propane, aluminum clorohydrate, PPG-14 butyl ether, cyclomethicone. disteardimonium hectorite, C12-15 alkyl benzoate, BHT, dimethiconol, propylene carbonate, citronellol, coumarin.... esses são alguns ingredientes do desodorante que eu uso - tudo em english, pra não ter pra quem chorar. Sério, acho melhor não pesquisar os efeitos de cada um desses produtos no nosso corpo. Ou começar a procurar alternativas mais sustentáveis mesmo. Alguém aí conhece algum desodorante natural?

Na Espera - A Chegada (Filme)

Quando seres interplanetários deixam marcas na Terra, a doutora Louise Banks, uma linguista especialista no assunto, é procurada por militares para traduzir os sinais e desvendar se os alienígenas representam uma ameaça ou não. No entanto, a resposta para todas as perguntas e mistérios pode ameaçar a vida de Louise e a existência de toda a humanidade. Uma primeira leitura na sinopse do filme A Chegada (Arrival) - previsto para estrear no Brasil no dia 09 de fevereiro de 2017 - poderia nos passar a impressão de estarmos diante de mais uma obra convencional e esquemática sobre o eterno "sonho" humano de estabelecer contato com os extraterrestres. Poderia, não fosse os nomes por trás do projeto, a começar pelo do diretor Denis Villeneuve - de filmes que estão entre os favoritos da casa, como Incêndios (2010), Os Suspeitos (2013) e Sicario: Terra de Ninguém (2015).



Pois Villeneuve recrutou os indicados ao Oscar Amy Adams e Jeremy Renner, além do premiado Forest Whitaker para contar essa história que, se de saída não parece inovadora, ao menos dá a impressão de representar com propriedade o cinema seguro do canadense, um dos diretores mais badalados (na falta de outra palavra) e inventivos da atualidade. O trailer, com aquele clima meio Sinais meio Distrito 9, apresenta uma boa dose de tensão, drama e suspense, em meio a debates político-diplomáticos sobre como como lidar com a questão - algo que faz aumentar a expectativa dos fãs do gênero ficção científica. Se nas bolsas de apostas para a estatueta dourada nas premiações do ano que vem o filme aparece como uma espécie de azarão, por aqui, não podemos negar: já estamos Na Espera!

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Novidades em DVD - 99 Casas (99 Homes)

De: Ramin Bahrani. Com Andrew Garfield, Michael Shannon e Laura Dern. Drama, EUA, 2014, 112 minutos.

O colapso do mercado imobiliário americano e a crise econômica sem precedentes que afetou os Estados Unidos no ano de 2008 segue sendo terreno fértil para produções hollywoodianas - caso, por exemplo, deste 99 Casas (99 Homes) que chega agora em DVD, após exibição em circuito nacional discretíssimo. Se o roteiro não chega a ser tão instigante, inovador e até mesmo divertido quanto o recente - e oscarizado - A Grande Aposta (aquele com Ryan Gosling e Christian Bale) -, ao menos o filme do (ainda desconhecido) diretor Ramin Bahrani apresenta um bom e tocante drama, que consegue falar ao mesmo tempo do impacto dos problemas financeiros para famílias menos abastadas - e de como as eventuais dificuldades afetam a vida de todos os seus integrantes -, mas sem esquecer da importância de se erguer a cabeça para tentar fazer o melhor nos casos adversos.

A trama segue a história de Dennis Nash (Andrew Garfield), um jovem que atua como uma espécie de "marido de aluguel" - como atualmente são conhecidos os profissionais autônomos que realizam trabalhos de encanador, eletricista, marceneiro e pedreiro, entre outros -, por meio de contratos temporários com empreiteiras. As dificuldades típicas do período de crise fazem com que, em meio a atividades pré-agendadas, contratos sejam cancelados, e investidores, empresários e corretores não consigam honrar os seus compromissos. Como não poderia deixar de ser, a bola de neve "explode" justamente na ponta mais frágil dessa cadeia (literalmente) alimentar: sem poder pagar a hipoteca da casa que divide com a mãe (Laura Dern) e com o filho, o rapaz é despejado pelo inescrupuloso agente imobiliário Rick Carver (Michael Shannon, nominado ao Globo de Ouro pelo papel).



Enquanto Dennis e a sua família tentam se acostumar a ideia de morar em uma espécie de pousada cedida pela prefeitura, o jovem passa a fazer investidas que possibilitem a recuperação de sua casa. Em um desses encontros fortuitos com Carver, o homem resolve contratá-lo para a realização de pequenos reparos em suas residências. Não demora para que o rapaz passe a ajudar o imoral agente a realizar as ações de despejo. Se por um lado a entrada de uma mascada nunca antes vista na vida será motivo de alegria, por outro o ingresso por vias tortas no tão conhecido sonho americano - representado justamente pela falência total do sistema capitalista em que poucos ganham MUITO e muitos perdem TUDO - resultará em uma profunda crise de consciência no jovem (quase uma espécie de Crime e Castigo do ponto de vista financeiro).

Ao mostrar Dennis escondendo da família o fato de estar trabalhando justamente com o seu algoz, Bahrani constrói um dos arcos dramáticos mais interessantes da trama. E, por mais revoltante que a situação naturalmente seja, o diretor jamais demoniza seus personagens, tornando-os simplesmente o reflexo de uma sociedade doente em que, na maioria dos casos, a ambição fala mais alto, fazendo esmorecer instantaneamente qualquer senso de fraternidade, de empatia ou de espírito filantrópico - especialmente quando está em jogo a conquista da independência financeira. (e conforme assistimos a ascensão de Dennis, é possível lembrar do que ocorre com outros personagens da ficção, como por exemplo, o onipresente Walter White, de Breaking Bad que, com a sua ganância desmedida, simplesmente arruína o mundo a sua volta)


Não, não estou comparando esse filme - que se consiste apenas em uma boa sessão dramática, até mesmo um tanto convencional - com Breaking Bad. Mas não deixa de ser um bom trabalho, com boas atuações - e devo admitir que foi justamente a presença do trio central de protagonistas, algo que mais me atraiu para este projeto, já que gosto de filmes distintos com cada um dos atores (e Shannon, com sua cara de poucos amigos, nem preciso dizer: é o destaque). Apostando ainda em boas sacadas metafóricas que servem para esquadrinhar a situação de caos vivida pelas personagens - como no caso dos meninos que, diante de um globo terrestre encontram o mapa dos Estados Unidos apenas para concluir que ele está de "cabeça para baixo" - essa pequena obra ainda termina com um gosto amargo na boca, já que não é difícil imaginar quem sai (realmente) perdendo em meio a esse conjunto de acontecimentos.

Nota: 7,3

domingo, 14 de agosto de 2016

09 Considerações Sobre o Show d'A Banda Mais Bonita da Cidade em Porto Alegre

Na última quinta-feira (11/08), o cast do Picanha teve a oportunidade de prestigiar a apresentação de lançamento do DVD Ao Vivo no Cine Joia d'A Banda Mais Bonita da Cidade, no Teatro São Pedro, em Porto Alegre. Nem precisamos dizer o quão especial foi esse momento, com o público sempre fiel cantando junto cada uma das 14 canções executadas durante o show. Na tentativa de resumir o que foi a noite, elaboramos um a listinha com 09 Considerações Sobre a Apresentação dos curitibanos.

01) A abertura com Uma Atriz não poderia ser mais impactante. Inspiradíssima, a vocalista Uyara Torrente interpretou a canção com a paixão de sempre, equilibrando bem o gestual e as expressões, em uma das canções mais "performáticas" do grupo. O apoio da banda, com arranjos robustos e execução técnica perfeita - cortesia de Vinicius Nisi (teclado), Marano (baixo), Thiago Ramalho (guitarra) e nosso brother Luís Bourscheidt (bateria) -,contribuíram para que o início do show já se consistisse em um dos melhores momentos da noite.

02) A propósito da Uyara, ela estava maravilhosa como sempre. Linda, carismática, talentosa, ela parecia - assim como toda a banda - estar se divertindo com cada instante da apresentação. Não era difícil percebê-la "rindo à toa" - aquela risada gostosa de quem está curtindo MUITO - conforme as canções iam sendo executadas. Algo que deixou o espetáculo ainda mais bacana. E tudo isso sem perder um fio sequer do profissionalismo de sempre.

03) O fato de o teatro estar lotado também foi um dos motivos de clara alegria para o quinteto - e para todos, na real. O público retribuiu, como de praxe: enviando emanações positivas, cantando junto, assoviando, gritando e aplaudindo cada instante ou acontecimento.



04) A participação do gaúcho Ian Ramil em duas canções compostas por ele, que devem estar no próximo trabalho dos curitibanos, também foi um dos momentos marcantes da noite. Em uma delas, a ótima Souvenir, Ramil dividiu os vocais com Uyara, em uma das partes mais divertidas da noite. A outra música, chamada Ela e O Dela, contou com o acréscimo do guitarrista Lorenzo Flach - figura conhecidíssima da cena roqueira de Porto, o que conferiu um peso a mais para a sua execução. Ambas as canções serviram para mostrar que, daqui para frente, talvez o grupo invista em outras vertentes, eventualmente mais psicodélicas e com algum peso - mas muito provavelmente sem perder a ternura. E nós já aqui, no aguardo.

05) Para quem nunca tinha visto a banda ao vivo, impressionou os novos arranjos feitos para canções conhecidíssimas, como a Balada da Bailarina Torta. As guitarras cheias de fuzz - também com a presença de Flach -, a bateria cadenciada, o baixão certeiro e os teclados climáticos, somados a um soberbo jogo de luzes sobre o palco - davam a impressão, em alguns momentos - e sem exagero - de estarmos diante de alguma exibição do Sonic Youth ou alguma outra daquelas que esteve por aqui, nas épocas em que ainda havia o Free Jazz Festival.

06) Coisa mais simpática o palquinho. Momento em que a banda se aproxima do público e toca duas canções no formato "rodinha de violão", bem próximos do público. Energia desse momento foi palpável, ainda mais para nós, que estávamos na terceira fila.

07) No repertório muitas das músicas favoritas: Solitária, Se Eu Corro (grande como sempre), Deixa Eu Dormir Na Sua Casa (com arranjo "fantasmagórico" delicioso), A Balada da Contramão, Oração (que fechou a noite, com todo o povo de pé, cantando junto). Mas não posso deixar de registrar o quanto fez falta Boa Pessoa. Muito provável que seria bonito DEMAIS ver todo o povo cantando junto essa. Esse é o problema do repertório com tanta música massa.

08) Particularmente, poder reencontrar o amigo Luís Bourscheidt - que equilibrou vigor e ternura na mesma medida, em seu trabalho como baterista - foi muito legal. O Luís (ou Geleia como é conhecido pelos das antigas) é de Lajeado e sempre acho uma pena o fato de a cidade ignorar completamente a presença do grupo em terra gaúchas. Vamos combinar que tá caindo de maduro uma exibição por aqui. Poder rever os "tios" Silvestre e Natália e o brother Lucas, toda da famiglia, foi algo que tornou a noite ainda melhor.

09) No mais, só nos resta agradecer por tudo. Foi uma noite muito tri! Voltem, assim que puderem.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Grandes Cenas do Cinema - O Sexto Sentido (The Sixth Sense)

Filme: O Sexto Sentido
Cena: I see dead people...

Sobre a produção atual do diretor indiano M. Night Shyamalan pode-se falar muita coisa: que seus filmes não são impactantes como os do início da carreira, que os roteiros deixam a desejar em uma série de aspectos, que ele repete ideias e, ainda por cima, é mal sucedido na condução de atores. Mas, quando o assunto é O Sexto Sentido (The Sixth Sense), segundo filme do indiano, pode-se dizer que há certa unanimidade na avaliação desta como uma obra absolutamente criativa, surpreendente, com ótimas interpretações e uma série de detalhes capazes de enriquecer a narrativa.



Lançado em 1999, o filme se beneficiou da completa inexistência das redes sociais - e da internet como um todo - para promover uma verdadeira comoção coletiva, sem spoilers instantâneos, quando da descoberta por parte dos espectadores do que acontecia verdadeiramente, na trama, com o psicólogo infantil Malcom Crowe, interpretado de maneira tocante por Bruce Willis. Com habilidade ímpar para enganar o espectador, Shyamalan mostra a "morte" de Crowe já na primeira sequência, quando um de seus pacientes, num surto de esquizofrenia, invade a sua residência com o objetivo de o assassinar. Mesmo VENDO a cena, acreditamos no fato de ele ainda estar vivo e recuperado, quando o filme promove um salto no tempo, para mostrá-lo em um novo momento, em que se dedica ao caso de um garoto de oito anos (o incrível Haley Joel Osment), que tem dificuldades de entrosamento no colégio, parecendo guardar, ainda, algum tipo de segredo.

O "segredo" é revelado em uma das cenas mais conhecidas, imitadas, parodiadas, inesquecíveis (e aterrorizantes, claro!) do cinema moderno: o momento em que o menino revela, para o seu psicólogo o fato de ver "pessoas mortas" - no caso, a famosa frase i see dead people. Reassistir o filme, já com o mistério solucionado, e constatar que a sentença é direcionada a um sujeito que está morto sem saber, é daqueles momentos que nos fazem sorrir de orelha a orelha - reconhecendo nesse instante a capacidade do cinema de não apenas entreter, mas de envolver, de nos conectar emocionalmente, de nos fazer crer em verdades que não existem pela simples magia de uma construção fílmica absolutamente perfeita. E, nesse sentido, a cena final, quando ocorre a queda da aliança e Malcom entende a sua condição, também permanece inesquecível para qualquer cinéfilo. Após O Sexto Sentido, Shyamalan dirigiu uma série de filmes bons - Corpo Fechado (2000), A Vila (2004) e a Dama na Água (2006) -, outros médios - Sinais (2001), A Visita (2015) - e alguns lamentáveis - Depois da Terra (2013), Fim dos Tempos (2008). Mas a magia provocado pela obra com o garotinho que via gente morta - que, numa espécie de paradoxo, se tornou a sina do indiano -, jamais seria repetida novamente.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Picanha em Série / Pérolas do Netflix - Black Mirror

O serviço de streaming Netflix possui em seu catálogo uma infinidade de séries, tanto originais quanto de outras produtoras, tornando árdua a tarefa de escolher qual delas assistir, visto que a imersão neste tipo de produção demanda tempo e interesse do espectador. Para prender a nossa atenção é importante, além do conteúdo de qualidade, que os episódios possuam ritmo e saibam entreter, fazendo com que queiramos assistir o próximo capítulo assim que possível. E este é definitivamente o caso da série britânica Black Mirror. Lançada em 2012, a série narra, em cada episódio, uma história diferente encenada por atores diversificados. Atualmente, são duas temporadas disponibilizadas, com 3 episódios cada, além de um especial de Natal. O tema? O quanto as inovações tecnológicas podem vir a modificar nosso dia-a-dia de uma maneira nem sempre bem-vinda, com consequências aterrorizantes as quais provavelmente não estaremos preparados para lidar.

Passada num futuro não muito distante, a obra traz questionamentos profundos sobre ética, relacionamentos interpessoais, política, busca pela fama, entretenimento, tudo com uma pontada de desesperança para com a humanidade e um humor muitas vezes chocante e perturbador. Num paralelo com os dias atuais, a perda da humanidade pode ser representada pela substituição do convívio social pela artificialidade da comunicação: seja por WhatsApp, Facebook, Instagram, vivemos um paradoxo no qual a informação está disponível praticamente em tempo real mas os afetos muitas vezes se revelam praticamente através de telas de computadores ou telefones celulares. E ao levar este conceito às últimas consequências é que a série revela todo o brilhantismo de seus criadores, o que fez figuras como o escritor Stephen King a idolatrar e recomendar a obra.


Não é a toa que o conceito de Black Mirror ("espelho negro", em inglês) significa, segundo o roteirista Charlie Brooker, o espelho no qual podemos nos enxergar quando observamos uma tela de televisão ou smartphone desligada. É a imagem do ser humano refletida por dispositivos que dominamos e acabam por nos dominar dia após dia - é só perceber o quanto de tempo passamos em contato com estes produtos tecnológicos. Lembro de ter ficado sem sinal de celular e computador por praticamente uma semana e isto ter me causado um incômodo descomunal, e é justamente este efeito de "drogadição" que faz com que nos tornemos dependentes e capazes de atitudes até então improváveis frente a algo que até pouco tempo atrás não nos era disponível - e saber lidar com isso é um desafio a ser enfrentado.

Se no primeiro e sensacional episódio The National Anthem vemos o primeiro ministro britânico ter sua intimidade exposta, em uma teoria sobre voyeurismo perfeitamente demonstrada de forma chocante, em outros capítulos vemos a crítica aos reality shows (Fifteen Milion Merits), a perda da privacidade e a importância da memória nos relacionamentos (nas DR's, mais especificamente, no episódio The Entire History of You), o senso de justiça e vilania que pode brotar em cada um de nós como forma de entretenimento (White Bear, um dos melhores), a perda de um ente querido e maneiras de enfrentar o luto (Be Right Back), bem como a descrença no sistema político e seus candidatos (The Waldo Moment).


É óbvio que cada episódio guarda muitas camadas a serem desvendadas por quem se aventurar por estas histórias intensas e perturbadoras. Confesso que há tempos não via uma crítica tão mordaz ao sistema que insiste em transformar tudo em um produto a ser vendido e consumido. E justamente por simular seu impacto nas relações humanas em um futuro perfeitamente possível de ser realizado é o que torna a experiência ainda mais visceral e aterrorizante. Uma baita descoberta e uma verdadeira pérola a ser garimpada por quem admira entretenimento com alto teor filosófico e reflexivo.

Lançamento de Videoclipe - Maglore (Dança Diferente)

Quem acompanha o Picanha de perto sabe de nossa apreciação pelo Maglore - uma das bandas mais bacanas da atualidade. Pois no ano passado, os baianos lançaram o disco III, terceiro registro de inéditas de sua carreira, e que figurou no pódio da nossa lista de 25 Melhores Álbuns Nacionais de 2015. Para divulgar o registro - que equilibra bem o o vocal melancólico com os arranjos multicoloridos e de fácil "digestão" - o trio capitaneado pelo vocalista Teago Oliveira lançou, na última semana, um clipe para a canção Dança Diferente. No vídeo, gravado em um único plano-sequência, a atriz Pamela Alves aparece dançando em meio a um amplo apartamento, enquanto os músicos se revezam em aparições nos ambientes do imóvel. Sobre o desafio proposto pelo diretor André Peniche, Oliveira disse, em entrevista a revista Rolling Stone, ser uma "ideia simples, porém desafiadora". "No making of dá pra ver a loucura que foi aparecer no clipe e fugir da câmera", sorri. Nem é preciso dizer: adoramos o resultado!






segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Cine Baú - Taxi Driver (Taxi Driver)

De: Martin Scorsese. Com Robert De Niro, Jodie Foster, Cybil Shepherd e Harvey Keitel. Drama / Policial, EUA, 1976, 115 minutos.

Poucas vezes a transformação de um desajustado social em um sujeito reacionário, intolerante e fascista foi tão marcante - e, de alguma forma, sutil - como no caso de Taxi Driver, primeiro grande filme do diretor Martin Scorsese. O homem em questão é um veterano da Guerra do Vietnã, que responde pelo nome de Travis Bickle (Robert De Niro). Sofrendo de uma intermitente insônia, Travis, um sujeito solitário em meio a grande metrópole, consegue trabalho como taxista no turno da madrugada nova-iorquina - atividade que possibilitará um contato maior com prostitutas, drag queens, bichas, maconheiros, viciados, cafetões, sodomitas, insanos, corruptos e toda a sorte de sujeitos que vivem a margem da sociedade. E que compõem a fervilhante vida noturna da cidade - a qual ele considera, em suas palavras, a escória, ou mesmo o esgoto a céu aberto, que deveria ser limpo pelas "famílias de bem" ou mesmo pelos governantes.

Conforme os dias vão passando e o contato com todo o tipo de miséria humana, de vício e de violência vai aumentando, também o sentimento de revolta e de conflito interno se intensifica a cada nova curva moribunda ou claustrofóbica feita pelo taxista. Os encontros com os colegas de profissão em um restaurante 24 horas da periferia, ou mesmo os dias de solidão em que o sujeito rabisca as suas vivências em uma espécie de diário, jamais servem para que a ansiedade seja amenizada. Não à toa, em uma das mais famosas cenas dessa verdadeira obra-prima, Bickle pede um sal de frutas, para que as disfunções do sistema digestivo - tão diretamente ligadas a problemas emocionais - possam ser controladas. A tomada em close do copo, enquanto a pastilha borbulha pelo contato com a água, nada pode representar de diferente, do ponto de vista da metáfora, do que o sentimento do taxista diante daquilo que ele presencia em cada uma de suas imprevisíveis noites de trabalho.



A situação piora quando Travis conhece - e se apaixona - pela bela Betsy (Cybill Shepherd), que trabalha na campanha de um senador que pretende concorrer para o cargo de presidente. Um convite desastroso para uma sessão de cinema pornô logo no primeiro encontro é o gatilho para que venha à tona, também, toda a raiva, o ódio, a misoginia e o machismo do sujeito - incapaz de lidar com a negativa de uma mulher, por mais óbvia que esta fosse, diante de sua proposta um tanto quanto desqualificada. Sozinho, sem amigos de verdade, ou com uma namorada para chamar de sua, o homem, a beira do delírio e da esquizofrenia, resolve fazer o que qualquer pessoa (a)normal faria numa situação dessas: comprar quatro armas na América livre. Sim, Travis está de saco cheio do mundo - e com os sujeitos erráticos que nele vivem e o cercam - e resolve criar um "grupo de extermínio de um homem só", para tentar limpar a cidade.

Diga-se de passagem, a cena em que De Niro aparece transformado nesse "novo sujeito" - utilizando um cabelo moicano, aliado a roupa de militar (ao estilo "futuro adepto de Donald Trump") e ao comportamento obviamente tomado pela perturbação mental - está, desde sempre, entre as mais famosas do cinema. A propósito, a famosa sequência do you talking to me?, tão parodiada e imitada, foi totalmente improvisada pelo ator - em mais um dos pequenos momentos de grandeza em sua caracterização, capaz de equilibrar energia e insanidade, torpor e violência. Mesmo nas horas em que Travis resolve fazer "justiça com as próprias mãos", tentando resgatar uma jovem prostituta (Jodie Foster, aos 13 anos de idade) das mãos de um cafetão (Harvey Keitel), o ato de heroísmo (!) é feito de maneira torta, insensata e extremista - e que deixará um rastro de sangue por onde quer que passe o sujeito. (e não deixa de ser interessante o ponto de vista dado ao ato pela mídia, quase ao final do filme, o que dá uma dimensão de como pensam os veículos de comunicação que compactuam com a lógica do "bandido bom é bandido morto", tão presente até os dias de hoje)



Pra quem gosta de filmes que tenham um certo charme-retrô não deixa de ser fascinante assistir, ainda, as andanças de Travis pela madrugada, em que o seu silêncio (e seu rosto taciturno mostrado em close pelo espelho retrovisor) funciona como um contraponto ao barulho e a balbúrdia das movimentadas noites da cidade - com seus bares, cinemas, casas noturnas e livrarias. E a se a fotografia amarela e granulada contribui para esse sentimento, também a trilha sonora de Bernard Hermann - em seu último trabalho, antes de falecer em dezembro daquele ano - funciona, com suas notas onipresentes e abafadas, que conferem vida a cada instante da existência caótica de Travis. Scorsese, que mais tarde viria a filmar uma série de obras-primas - entre elas Touro Indovável (1980), Os Bons Companheiros (1990) e Cassino (1995) - faturaria com Taxi Driver - e seu estilo cru e cheio de personalidade - a Palma de Ouro na categoria Melhor Diretor, pavimentando o caminho para uma das mais sólidas e duradouras carreiras do universo cinematográfico. Já o filme, segue sendo um dos mais queridos não apenas pelo público, mas também pela crítica, com presença em listas diversas, como a da Sight and Sound Magazine ou mesmo entre os 100 Filmes Fundamentais do American Film Institute (AFI). Um verdadeiro Cine Baú!

sábado, 6 de agosto de 2016

Disco da Semana - Eduardo da Silva (Abre Alas)

Na hora de escrever uma resenha de disco aqui pro Picanha - ainda que não seja nem músico e nem profissional da área - tenho lá as minhas metodologias. A primeira delas, é ouvir o trabalho em questão pelo menos umas cinco vezes, para que haja uma apropriação dos elementos que compõem aquele registro. Caso a banda ou artista já tenha álbuns lançados anteriormente, procuro anotar em um caderninho as diferenças encontradas entre um lançamento e outro e que possam denunciar a evolução (ou não) do analisado. Se o registro for a estreia, busco as influências, inovações ou contribuições que o material possa apresentar. Tudo feito de preferência com as letras das canções a tiracolo, que denunciarão também a qualidade poética para além da análise do virtuosismo instrumental - que, diga-se, nem de longe é o meu forte. Enfim, mesmo o site sendo pequeno, procuro - e não apenas eu, mas o companheiro Henrique também - extrair todos os elementos que possibilitem uma resenha justa, honesta e puramente racional - nunca tomada pelas emoções. (e nunca é demais lembrar que não recebemos jabá de ninguém, então não teríamos motivo algum para ficar de babação de ovo)

Mas, como fazer quando o disco em questão consiste-se no primeiro registro de inéditas em carreira solo de um amigo de longa data? Oras, analisa-se da mesma forma, com responsabilidade e atenção redobrada - mas sem deixar de ser invadido por um sentimento de plena satisfação (e até de euforia, não vou negar) pelo material escutado e por aquilo que representa. Conheço o Eduardo da Silva - os amigos mais chegados sabem do apelido carinhosíssimo entre os das antigas - há cerca de 15 anos. Entre parcerias de faculdade, bebedeiras e trocas de ideias do período, o mundo, com aquele seu curso normal de sempre, tratou de nos aproximar e afastar na mesma medida. E poder retomar o contato mais "próximo" justamente quando da entrega ao público de um registro tão robusto e recheado de boas surpresas como este Abre Alas, é pra deixar a gente com o sorriso de orelha a orelha.



Silva, como qualquer artista procurando seu espaço nisso que chamamos de "mercado", já tocou cover em barzinho, já fez música em rodinhas de amigos durante a faculdade - sério, parece-me quase palpável a lembrança da gurizada cantando a plenos pulmões o "clássico" gaúcho Fim de Tarde Com Você, dos sempre simpáticos Acústicos e Valvulados, tentando imitar a voz esganiçada do Rafael Malenotti -, viajou, experimentou outros lugares, outras culturas e assimilou sonoridades oriundas dos mais variados pontos. E, nesse sentido, não deixa de ser legar acompanhar um cantor alcançando a maturidade musical com o lançamento de um disco completo e autoral. E que o retira, em partes, desse esquema mais amador, que acaba resultando em escolhas previsíveis para reinterpretações - não me entendam mal, amigos, mas já ouvimos que chega as versões de Não Sei, do TNT -, para apresentar um trabalho não apenas rico em relação ao referencial sonoro, mas também recheado de elementos nunca óbvios e de letras elaboradas e cheias de personalidade.

O cantor - que também compõe - passou uma temporada litorânea em Garopaba, mas isso não significa que a vida é apenas sol, mar, mulherada e locuragem. Promovendo uma mistura sonora em que é possível encontrar, aqui e ali, ecos do rock dos anos 80, de Los Hermanos e de Quentin Tarantino, além de uma pitada de blues e de samba, Silva canta sobre conflitos internos (Dentro de Mim), traumas (Tempos de Guerra), pequenos momentos de alegria (É Tão Fácil) e saudade do que passou aliada a expectativa pelo futuro (Vou Viajar). Sem apelar para refrões fáceis que poderiam garantir a execução segura em rádios locais, o artista da mostras da plena compreensão a respeito do consumo de música nacional na atualidade - em que os interessados buscam muito mais os artistas por aquilo que eles têm a dizer, do que por uma voz plenamente afinada, redondinha ou potente. O que, muito provavelmente, também explique o fato de a maioria dos versos serem cantados em um tom mais baixo ou mesmo sussurrado. O que de maneira alguma reduz o impacto - como podemos perceber na já clássica Estado Laico, que critica, em seus versos, o modus operandi do DEMO praticado por figuras grotescas da política atual, como é o caso do pastor Marco Feliciano.



Ainda que os instrumentos tenham sido gravados todos de forma caseira, jamais o resultado final, que contou com a parceria do estúdio Top Records, parece excessivamente lo-fi ou mesmo "sujo" em excesso. A propósito disso, a segurança para o lançamento do material próprio partiu de conversas e exibições feitas a amigos e conhecidos que iam dando o feedback a Silva. Parceiros próximos como Tobias Kipper (bateria), Matheus Stoll (teclado), Natasha Bouvier (back vocal) e Guilherme Priebe (na letra de Dentro de Mim), também foram fundamentais, de acordo com o material de divulgação do artista, para a constituição do trabalho - que pode ser encontrado gratuitamente aqui. Daqui para a frente é difícil saber que caminho tomará a carreira de Silva. Mas, se levarmos em conta essa amostra inicial, é possível acreditar em voos ainda mais altos.

Nota: 8,3

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Espaço do Leitor - O Pop Opulento do Broods (por Lucas Wendt)

Georgia e Caleb Nott, irmãos, compõem o que, musicalmente, conhecemos como Broods. A dupla, de Nelson, na Nova Zelândia, vem de um lugar que surpreendeu o mundo na história recente do pop: basta lembrar que Kimbra e Lorde também são de lá. Broods, pra quem não conhece, é bastante semelhante a uma banda que caiu no gosto de quem curte essa vertente mais alternativa e heterogênea do pop: faço da escocesa CHVRCHES.



Neste segundo material, os irmãos Nott entregam um disco diferente do primeiro registro da banda, lançado há dois anos. Atuando desde 2013, após o reconhecimento internacional com o primeiro disco, a dupla já esteve em tour com Sam Smith, Ellie Goulding e as irmãs Haim, além de ter ganhado diversos prêmios da cena musical. Antes do primeiro álbum completo de estúdio, a dupla lançou um EP homônimo no qual trabalhou com Joel Little, produtor da já citada Lorde. O material foi lançado no início de 2014. Mais recentemente, com o Broods, Joel Little se envolveu na canção 100x do australiano Jarryd James. Os vocais claros e leves de Georgia estão bem evidenciados neste featuring.



Evergreen é o nome do debut, que chegou ao público mais tarde naquele mesmo ano, trazendo canções muito conhecidas de quem curte o streaming e extremamente populares em plataformas como Spotify e o Youtube. Entre os registros de destaque desse primeiro material, temos Bridges e Never Gonna Change. Em Conscious, o segundo álbum, a melancolia dos composições do material de 2014 fica para trás e somos surpreendidos com músicas mais enérgicas, de batidas radiofônicas, feitas aparentemente sob medida para conquistar a audição. O material conta novamente com a produção de Joel Little, do trio Captain Cuts (que já trabalhou com Grouplove e Halsey) e de Alex Hope (envolvida com o Blue Neighborhood, do Troye Sivan). O único featuring do álbum é Freak of Nature, na qual os Nott dividem as estrofes com a sueca Tove Lo.

Muito bem equilibrada nos vocais, no Broods, Georgia empresta a voz principal às canções e Caleb, multinstrumentista, faz os vocais de apoio. Os timbres agudo e grave, sobrepostos, criam uma atmosfera épica para as canções que, não raro, explodem em refrões agitados. Letras fáceis e refrões grudentos fazem com que o material caia facilmente no gosto dos fãs de música pop. Os elementos de indietrônica (música eletrônica independente) e de eletropop são muito bem misturados em cada uma das 13 faixas do Conscious. Free, Couldn’t Believe e Heartlines (co­escrita pela Lorde) foram os singles do álbum antes do lançamento oficial, no último dia 24 de junho. Neste material os destaques ficam por conta de Full Blown Love, Are You Home e as já citadas Couldn’t Believe e Heartlines: talvez as músicas mais radiofônicas

Pra que gosta de: CHVRCHES, Troye Sivan, Banks, MØ, Oh Wonder e Betty Who.


Texto: Lucas George Wendt

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Novidades em DVD - Rua Cloverfield 10 (10 Cloverfield Lane)

De: Dan Trachtenberg. Com Mary Elizabeth Winstead, John Goodman, John Gallagher Jr. e Bradley Cooper. Suspense / Ficção Científica, EUA, 2016, 143 minutos.

Especialmente após os eventos que culminaram na queda das Torres Gêmeas, no fatídico 11 de setembro de 2001, os americanos parecem ter intensificado a paranoia no que diz respeito a guerra ao terror - e ao permanente receio em relação a ataques terroristas, investidas do Oriente ou mesmo invasões alienígenas. Não à toa, a lógica belicista, xenófoba, racista e preconceituosa dos discursos inflamados do candidato a presidência norte-americana Donald Trump tomam por base, em pleno 2016, o clamor pelo retorno dos Estados Unidos respeitados pelos outros países - algo, pode-se dizer, Barack Obama alcançou à sua maneira. No caso de Trump por "respeitados", leia-se amedrontados e receosos com as ideias estapafúrdias do milionário - que envolvem, entre outras, a construção de um muro na fronteira com o México, a deportação em massa de imigrantes ilegais e mesquitas vigiadas com vistas a combater a "radicalização de muçulmanos".

Esse comportamento não apenas de alguns integrantes da classe política, mas também de parte da população, já rendeu bons filmes, entre eles Zona Verde (2010), Guerra ao Terror (2008) e Rede de Mentiras (2008) e outros nem tanto, como o confuso Syriana (2005). Ainda que o contexto e o cenário sejam outros, no recém lançado em DVD Rua Cloverfield 10 (10 Cloverfield Lane), do diretor Dan Trachtenberg, é possível afirmar que o roteiro toma emprestado parte dessa paranoia para compor a sua trama - e um dos personagens, em especial. No início do filme acompanhamos uma jovem (Winstead), que parece estar saindo de casa após uma discussão com o marido/namorado  (Bradley Cooper, atuando apenas com a voz). Em meio a "fuga", ela sofre um grave acidente de carro, despertando, presa, no porão de um desconhecido (Goodman). O homem, de nome Howard, diz ser impossível sair do bunker, pois, no meio tempo entre o acidente e seu resgate, um ataque químico tornou o mundo um local inabitável. Parece bizarro, né? E é.



Não é necessário dizer que a moça, de nome Michelle, desconfiará dessa revelação. A busca por pistas que possam conduzi-la a verdade sobre os fatos, a aproximará do jovem Emmett (Gallagher Jr.), uma espécie de empregado de Howard que, também preso ao local, garante ter implorado a ele para que pudesse entrar no abrigo, quando os ataques iniciaram. Os insistentes barulhos abafados de veículos e de helicópteros do lado de fora, somados alguns sinais no interior do abrigo e ao comportamento mentalmente instável de Howard, tornarão a temporada da jovem no local uma experiência claustrofóbica e sufocante - sentimento ampliado pela sensação de que toda a história possa não passar de uma mentira. E, mesmo que fosse verdade, quem não "pagaria" para ver?

A montanha-russa emocional do personagem de Goodman (em um de seus grandes papeis da carreira), capaz de alternar entre momentos de doçura - como quando fala da filha provavelmente morta -, com outros de autoritarismo - como quando passa a desconfiar das ações de seus prisioneiros -, torna todo o conjunto ainda mais angustiante. As dúvidas em relação àquilo que vemos são ampliadas, ainda, pela própria arquitetura do bunker que, ainda que possua quartos e ambientes com paredes frias e cinzentas, é capaz, por outro lado, de garantir o conforto de todos os moradores, com estoque de comida, jogos, filmes, músicas e água encanada. Já as únicas janelas para o exterior parecem reservar segredos - que garantem o suspense muito mais do ponto de vista psicológico do que por meio de sustos no modelo "bigorna caindo". Se a absolutamente dispensável ligação com o Cloverfield - Monstro (2008) quase estraga parte da "surpresa", pode-se dizer que a reviravolta do terço final garante momentos de tensão e diversão na mesma medida.

Nota: 8,0

Lançamento de Videoclipe - O Terno (Culpa)

Ainda que não tenha nem título e nem data de lançamento definidos, já está no "forno" um novo disco do trio paulistano O Terno - uma das mais inventivas e divertidas bandas nacionais da atualidade! E, como forma de iniciar a divulgação do registro - o terceiro da carreira - a banda lançou na terça-feira (02/08), um clipe para o single Culpa. Como já é de praxe, o vídeo - protagonizado pela própria banda - carrega no bom humor, que acompanha a letrinha sarcástica e o ritmo absolutamente viciante! Sobre o novo disco, a banda afirmou em entrevista à revista Rolling Stone Brasil, que ele será influenciado por, entre outros, o clássico Pet Sounds, do Beach Boys. "Acho que tem músicas mais pop e outras mais malucas do que qualquer coisa que já fizemos", revelou o vocalista e guitarrista Tim Bernardes. Por aqui, nem precisamos dizer que a expectativa é grande!

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Cinema - Agnus Dei (Les Innocentes)

São tantos os temas considerados tabu em Agnus Dei (Les Innocentes) - aborto, estupro, ciência em contraponto a religião - que a chance de o filme de Anne Fontaine (de Coco Antes de Chanel) soar excessivamente panfletário poderia ser a condição para que a obra naufragasse. Mas, pra sorte, não é o que ocorre. Especialmente pelo fato de a película respeitar as mais variadas percepções (ou mesmo ideologias e crenças) sobre os temas em questão - algo que valoriza o debate sem tomar partido e, principalmente, sem enfraquecer a narrativa.

Baseada em fatos reais, a trama se passa durante o fim da Segunda Guerra Mundial, na Polônia. No local, a enfermeira Mathilde (Lou de Laâge) trabalha na Cruz Vermelha, com o objetivo de atender os feridos franceses envolvidos no conflito - que integravam, ao lado de União Soviética, Estados Unidos e Reino Unido, a campanha que visava a derrubar o nazismo e o fascismo de Hitler e Mussolini, que avançava pela Europa. Em um dia de trabalho, Mathilde é procurada por uma freira de um convento vizinho para atender a uma jovem que está tendo complicações no parto. A jovem, para surpresa da enfermeira é uma freira. Assim como ela, outras tantas freiras e madres estão grávidas, pelo fato de terem sido estupradas por soldados invasores.



Anda que Mathilde esteja orientada a atender apenas pacientes franceses, o contexto tenebroso encontrado no convento - com freiras e madres envergonhadas por terem tido o seu corpo violado, bem como o voto de castidade quebrado, a partir de um ato cruel - fará com que a enfermeira passe a atender, secretamente, as moradoras do local. As diferenças culturais e ideológicas entre Mathilde - uma jovem cética da classe trabalhadora e de espírito comunista - e as religiosas tementes à Deus e estritamente respeitosas aos dogmas da Igreja Católica, resultará em um contraponto interessante, conforme a aproximação entre todos aumenta. E não é por acaso que, em uma das sequências mais tocantes, Mathilde ajuda a salvar o grupo de um novo ataque de soldados, utilizando seus conhecimentos sobre ciência e medicina, como forma de assustar e afastar os invasores. Recebendo, no instante seguinte, todo o carinho das irmãs pelo gesto.

Nesse sentido, o absurdo da guerra também é retratado pelo fato de serem justamente os soldados russos - que deveriam estar na Polônia para ajudar o povo de lá - os responsáveis pelos ataques. O que também pode servir para demonstrar a lógica de que agressões desse tipo nada tem a ver com a roupa usada pelas mulheres, por como elas se comportam ou pelo permanente (e absurdo) processo de culpabilização da vítima, vivido nos dias de hoje. E o fato de freiras e madres - por mais que acreditem estar sendo guiadas pela vontade de Deus - estarem dispostas a rejeitar o "fruto" de um relacionamento pautado apenas pela agressão e pelo abuso de poder, como mostra o filme, é mais um indicativo da dificuldade em se conciliar a fé com a realidade brutal. Ainda que, em contrapartida, não devamos ignorar o fato de muitas das mulheres estarem dispostas a assumir o papel de mãe, mesmo nessas circunstâncias - caso seja esse o desejo d'Ele. (algo impensável, por exemplo, para os que defendem o aborto nesses casos)


Abusando dos silêncios - e das cenas eventualmente contemplativas - e da fotografia acinzentada, que acentua o clima gélido da película - sensação ampliada pela presença permanente da neve - a obra ainda conta com excelentes interpretações de todo o elenco, com destaque para Agata Kulesza, como a madre superiora reticente e compreensiva e Ágata Buzek, que traz na irmã Maria um misto de vulnerabilidade e ímpeto. Ainda que, aqui e ali, alguns temas pudessem ter sido melhor explorados (entre eles os traumas das mulheres estupradas, que passam meio "batido"), há que se salientar o arrojo da realizadora, por se desafiar a abordar tantos assuntos espinhosos (ou mesmo polêmicos) em uma mesma obra. Em uma época em que discursos de ódio, ou mesmo comportamentos misóginos e machistas ainda ocupam páginas e páginas das redes sociais, Agnus Dei joga alguma luz a esse debate, mostrando que, independentemente da época, da crença religiosa, ou dos princípios ideológicos há que se combater, antes de mais nada, a violência contra a mulher.

Nota: 8,2