quarta-feira, 29 de junho de 2022

Grandes Filmes Nacionais - Bye Bye Brasil

De: Cacá Diegues. Com José Wilker, Betty Faria, Fábio Jr., Zaira Zambelli e Príncipe Nabor. Drama, Brasil, 1979, 102 minutos.

A última cena de Bye Bye Brasil, já na conclusão dos créditos finais, exibe uma frase tão prosaica quanto profética: "ao povo brasileiro do Século 21". Assim, o filme de Cacá Diegues apresenta uma espécie de dedicatória à população do futuro - algo bastante significativo em uma obra que parece elaborar algum tipo de ode à cultura nacional (suas trupes mambembes, os artistas itinerantes, o regionalismo efervescente e a luta pela sobrevivência, especialmente em lugares áridos como o sertão nordestino), ao passo que olha com certo desalento para os avanços tecnológicos e para uma certa tendência ao consumo fácil dos tempos modernos. Nesse sentido, talvez não seja por acaso o fato de os telhados cobertos com "espinhas de peixe" - como Lorde Cigano (o protagonista vivido por um magnético José Wilker) chama as antenas de TV -, gerarem tanto impacto. Afinal de contas, com as novelas chegando aos recantos do País no final dos anos 70, quem ainda se interessará por espetáculos itinerantes à moda de um vaudeville tropical?

Ao lado de Salomé (Betty Faria) e Andorinha (Príncipe Nabor), Cigano integra a caravana Rolidei - o nome aportuguesado também vem ao encontro dessa dicotomia que coloca a brasilidade do povo, dos índios, das florestas e das belezas naturais como um contraponto ao supostamente pretendido "País do futuro", moderno, utópico, evoluído (ou apenas colonizado, uma nação que agora "tem neve") - que leva às pequenas cidades bem longe das capitais um show de mágica, de danças e de outras atrações como o "homem mais forte do mundo". Em uma das primeiras paradas o jovem Ciço (Fábio Jr.) fica encantado com o grupo, juntando-se a eles e levando a tiracolo a esposa grávida Dasdô (Zaira Zambelli). Hábil sanfoneiro, Ciço acredita nessa quimera artística como uma possibilidade de deixar a seca e a falta de oportunidades para trás. Ao lado do trio principal, se apaixonará pela misteriosa Salomé, ao passo que terá de lidar com as investidas de Cigano, que se afeiçoa de Dasdô.



Mas muito mais do que um filme de amor, esse é um filme de ruptura. Uma obra que reflete sobre algo que fica para trás, pelo caminho, para que possamos olhar pra frente - e, sinceramente, é quase impossível não estabelecer um paralelo com o contexto político do Brasil, à época, que com cerca de 15 anos mergulhado em uma Ditadura Militar, começava aos poucos a olhar mais carinhosamente para frente, para a abertura que viria mais adiante. "Bye, bye Brasil / A última ficha caiu / Eu penso em vocês night'n day / Explica que tá tudo ok / Eu só ando dentro da Lei / Eu quero voltar podes crer / Eu vi um Brasil na TV / Peguei uma doença em Belém / Agora já tá tudo bem" canta Chico Buarque na canção que dá nome ao filme, como que estabelecendo esse contraponto, essas idas e vindas e até algum grau de incerteza sobre aquilo que está por vir. E que dependerá do "povo do Século 21" para que permaneça uma perspectiva racional em meio à forte influência estrangeira.

E assistir uma experiência tão brasileira em tempos tão assombrosos como os atuais - de destruição da Amazônia, de assassinato de povos indígenas, de supressão de direitos e de desmantelamento generalizado de tudo que diga respeito ao nosso patrimônio - é constatar como esse road movie felliniano de Diegues segue dolorosamente atual. Alternando momentos mais cômicos com outros melancólicos, o diretor converte o filme em uma espécie de homenagem ao povo, seu esforço diário na busca pela felicidade, pelo dinheiro, pela comida na mesa - pela Altamira que simbolizará os dias melhores. "Os europeus, especialmente os franceses, viram isso como um filme triste sobre o fim de um mundo. Para americanos e sul-americanos, por outro lado, era um filme esperançoso sobre um novo modo de vida, uma cultura que acabara de nascer" afirmou Diegues em entrevista ao site Teleráma, como que que avalizando justamente a complexidade de interpretações possíveis para obra que, mais tarde, se tornaria a 19ª melhor da história para os votantes da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Tá disponível no Mubi e vale resgatar.


terça-feira, 28 de junho de 2022

Novidades em Streaming - A Colmeia (Zgjoi)

De: Blerta Basholli. Com Yllka Gashi, Adriana Matoshi e Adam Karaga. Drama, Kosovo / Macedônia / Suiça, 2021, 84 minutos.

A Colmeia (Zgjoi) é mais um daqueles filmes que tem a guerra como pano de fundo, mas que não é sobre quem está (ou esteve) no combate e sim a respeito de quem fica. Mais especificamente sobre quem fica enquanto, desesperadamente, aguarda alguma notícia daqueles que foram, ao passo que tenta juntar os cacos para tocar a vida. A protagonista aqui é Fahrije (Yllka Gashi), uma apicultora de uma aldeia do Kosovo - País que foi bombardeado pela Sérvia em 1999, deixando dezenas de mortos e outros tantos feridos -, que convive ao mesmo tempo com a incerteza sobre o paradeiro de seu marido, que pode ter morrido no conflito, e com necessidade urgente de sustentar sua família, composta por dois filhos e o sogro cadeirante. A pequena renda vem da comercialização de mel com o reforço orçamentário podendo surgir a partir de uma ação cooperativa com outras mulheres que, juntas, passam a produzir uma espécie de antepasto de pimentão (conhecido como ajvar).

Só que para a comunidade local existe um problema nessa "independência" toda: onde já se viu, afinal, mulheres agirem de forma autônoma, tomando decisões, participando do mercado de trabalho, se agrupando de forma associativa, negociando, dirigindo, interagindo, num processo autossuficiente que deixa a vida de casada (agora viúva, vamos combinar) para trás? Como assim, em uma sociedade tão patriarcal, tão pautada pelas decisões de homens - e a mesmo tempo tão conservadora, tão misógina -, as mulheres poderiam ter esse grau de emancipação? Nesse sentido, não bastasse o sofrimento decorrente da falta de notícias sobre o paradeiro de seu marido, Fahrije e as demais mulheres ainda precisam lidar com a hostilidade dos moradores da região, insatisfeitos com esse comportamento tão livre. Os idosos da aldeia, mesmo outras mulheres, para estes o lugar delas é cuidando de casa, da família, em processo de apagamento e abnegação. E não participando da vida em sociedade.



De alguma forma, mais uma vez pode-se afirmar que esta é uma experiência sobre a importância da sororidade - e do apoio entre si, em um contexto tão machista. Permeado por simbolismos - a estrutura de uma colmeia, suas abelhas persistentemente organizadas e voluntariosas chega a ser quase óbvia -, o filme é sutil na abordagem do incômodo provocado por mulheres que apenas buscavam se consolar, ao mesmo tempo em que reuniam algum tipo de força para seguir em frente. Um bom exemplo desse diálogo com o espectador a respeito da importância dos temas que discute, envolve uma sequência em que o grupo está reunido e, em meio ao trabalho, se anima para uma espécie de dança coletiva, que dá conta da conexão e do senso de propósito delas. E isto justamente após o grupo ter sofrido um duro ataque - com a destruição de parte da produção na sede da associação improvisada.

Enviado do Kosovo para a edição do Oscar desse ano - chegou a ficar na pré-lista de 15 produções, não se classificando para a final - e premiado em Sundance, o filme, baseado em fatos reais, ainda evidencia as violências cotidianas, que emergem das frestas até mesmo de onde talvez não se esperasse (como no caso da tentativa de estupro com que Fahrije precisa lidar e que envolve o seu fornecedor de pimentões). Trata-se por fim de uma experiência dura, resignada, silenciosa, quase estoica em alguns instantes, que analisa o absurdo do comportamento reacionário, enquanto gruda a câmera em suas protagonistas - mulheres fortes, persistentes e que apelam a uma rebeldia sem qualquer tipo de belicismo e que vai, aos poucos, servindo para cavar espaços. É bastante tocante. E vale ser visto. Tá disponível na HBO Max.

Nota: 8,5


Pitaquinho Musical - Johnny Hooker (ØRGIA)

Se divertir, mas sem perder a capacidade de indignação. Dançar e refletir. Sentir ternura, amar, mas sem abandonar as questões que incomodam. É dessa dualidade que emerge um dos grandes discos nacionais do ano - no caso o maravilhoso ØRGIA, do Johnny Hooker. Em entrevista concedida ao UOL ainda em 2021, o artista afirmou que o Brasil precisava voltar a beijar na boca. "Voltar a ser feliz, ter desejo, se apaixonar, sofrer por amor. Voltar a viver, é isso. A minha música traz isso", resumiu. Pois essa espécie de expiação pedida pelo cantor, parece combinar ainda mais com esse 2022 tão duro, tão difícil, tão áspero - o que talvez explique a facilidade com que abrimos um largo sorriso diante de pequenas joias, como, Amante de Aluguel, Larga Esse Boy, Nos Braços de Um Estranho e Nhac!


Misturando estilo variados que vão do tecnobrega, passando pelo samba, até chegar ao pop alternativo, à música eletrônica e até ao sertanejo universitário, Hooker converte este terceiro registro em uma celebração à vida, que se apoia na tríade noite, sexo e política. Exemplo central desse expediente está na sinuosa CUBA, que joga o ouvinte para uma espécie de reggaetown improvisado e lânguido, enquanto o refrão pegajoso faz um convite que funciona tanto como como carta de amor, quanto como resposta ao ávido bolsominion que deseja enviar qualquer um que não apoie o seu projeto de presidente à ilha da América Central (Que só de te ver / Eu penso em largar tudo e fugir com você / Pra Cuba / Completamente, totalmente na tua). Ao cabo, é um disco debochado, cheio de calor humano, e que nos faz lembrar de que, em meio ao caos, a arte pode nos divertir e resistir em igual medida.

Nota: 9,0


segunda-feira, 27 de junho de 2022

Novidades em Streaming - Cha Cha Real Smooth: O Próximo Passo (Cha Cha Real Smooth)

De: Cooper Raiff. Com Cooper Raiff, Dakota Johnson, Vanessa Burghardt e Leslie Mann. Comédia / Drama, EUA, 2022, 107 minutos.

Poucas vezes um filme foi tão franco na abordagem do amadurecimento como um processo eventualmente doloroso, como no caso de Cha Cha Real Smooth: O Próximo Passo (Cha Cha Real Smooth) - pequena joia do cinema alternativo, que está disponível na plataforma da Apple TV. Quantas vezes, afinal, nos equivocamos em nossos julgamentos? Em quantos momentos não achávamos que parecia uma coisa, mas era outra? Quantas frustrações, quanta "cara batendo na parede", paixões não correspondidas, choros solitários, tentativas e erros. "Amadurecer não é fácil" afirma o protagonista Andrew (Cooper Raiff, que também dirige) enquanto comenta com sua mãe Lisa (Leslie Mann) sobre a sua namorada que está em um intercâmbio na Espanha e, simplesmente, apareceu DO NADA em fotos com um outro sujeito. Sim, em tempos de amores líquidos - esse conceito quase batido - e de completa ausência de responsabilidade afetiva não parece haver muito tempo para remoer sofrimentos. A vida segue. Tem que continuar. Aliás, vai continuar.

O que não significa que as lágrimas não sejam, com justiça, derramadas. Andrew é, afinal, um menino doce que, ainda no começo da história, sofre o seu primeiro revés amoroso: apaixonado por uma mulher muito mais velha (ele é apenas um garoto de cerca de 12 anos) recebe, naturalmente, uma negativa. Um salto no tempo faz com que sejamos apresentados ao Andrew agora adulto - esse mesmo cara que assiste sem ter muito o que fazer a namorada ir para Barcelona, ao passo que tenta tocar a vida em um subemprego em uma lanchonete, estilo McDonalds, após formado. A sorte muda um pouquinho para ele quando, de forma meio inesperada, ele se torna uma espécie de animador motivacional de festas de Bar Mitzvah na região. O que ocorre após ele tratar muito bem Lola (Vanessa Burghardt), filha autista de Domino (Dakota Johnson), uma das convidadas do evento. Aliás, dali, brota uma bela amizade entre Andrew, Lola e Domino. E que funcionará como uma espécie de fio condutor da trama.



Em linhas gerais a obra faz com que acompanhemos, nos olhares afetuosos de Andrew e em seus sorrisos tímidos de canto de boca, aquela etapa de nossas vidas que a gente não sabe muito bem o que vai ser do futuro. Somos adultos? Ou ainda adolescentes? O emprego modesto pouco ajuda. Há um excesso de inexperiência no todo. Que é compensando com muita vontade. Evidentemente não demorará para que Andrew sinta algo a mais por Domino - a sua relação com Lola se desenrola com naturalidade. Mas a mulher não apenas possui namorado, como está noiva - o casamento será em breve, com o advogado bem sucedido Joseph (Raúl Castillo), um hispano-americano que passa mais tempo em Chicago do que em casa. Isso poderia representar uma oportunidade? Poderia. Mas a equação que forma os relacionamentos - ou os possíveis relacionamentos - é complexa. São muitas as variáveis. E nem sempre seremos a pessoa certa naquele momento, que pode sr apenas o errado.

Com uma verdadeira coleção de grandes diálogos - há um sobre depressão e outro sobre almas gêmeas que são verdadeiras joias -, a obra é de uma honestidade comovente. Sim, porque a despeito do que ocorre muitas vezes em filmes "românticos", ou mesmo em comédias bobinhas, é que no final tudo parece dar certo, da forma mais plastificada possível. Só que aqui, as coisas não dão tão certo. Mas isso não significa que há algo errado. Talvez não fosse o momento, a hora, o instante. Mesmo a aparentemente conturbada (e complexa) relação com Lisa e seu padrasto Greg (Brad Garrett) é cheia de possibilidades, de idas e vindas, de trocas, de brigas, de afetos. Família, né, todos têm a sua. Ao cabo, trata-se de uma experiência que faz com que um rito de passagem juvenil que poderia ser apenas banal, ganhe outras camadas. Até surpreenda em alguns instantes, ao subverter expectativas e estereótipos. O prêmio da audiência no Festival de Sundance pode ser um indicativo do quanto a obra caiu nas graças do público. Vale aguardar pra ver se há potencial pra mais.

Nota: 8,5


sexta-feira, 24 de junho de 2022

Novidades em Streaming - Jerry e Marge Tiram a Sorte Grande (Jerry and Marge Go Large)

De: David Frankel. Com Bryan Cranston, Annette Bening, Rainn Wilson, Anna Campe Jake McDorman. Comédia / Drama, EUA, 2022, 96 minutos.

Um filme com uma história simpática, um elenco cheio de carisma e uma mensagem ok sobre a importância da coletividade. Assim é Jerry e Marge Tiram a Sorte Grande (Jerry and Marge Go Large), obra dirigida por David Frankel - de O Diabo Veste Prada (2006) - que está disponível no catálogo da Paramount+. Na trama, inspirada en eventos reais, acompanhamos o casal Jerry (Bryan Cranston, nosso eterno Walter White de Breaking Bad) e Marge (Annette Bening), que moram em uma daquelas cidadezinhas do interior do Michigan, em que uma boa parte dos habitantes trabalha na indústria local (no caso aqui, uma fábrica de cereais). Às portas da aposentadoria, Jerry parece ser invadido por uma certa melancolia após mais de 40 anos dedicados ao seu ofício - muitos deles como gerente de operações, algo que tem a ver com a sua aptidão para a matemática. Na primeira noite afastado de suas atividades, recebe da esposa e dos filhos um barco para que possa pescar - uma espécie de símbolo dos dias mais folgados que virão. Mas, e o que mais?

Na expressão abatida de Jerry parece emergir um sentimento de tristeza. É isso que reserva a vida? Pescar até o fim dos dias? Marge tenta animá-lo com frases sobre agora serem "apenas eles" e sobre a oportunidade de descobrir novos propósitos. Mas por onde? Quando mais novo, Jerry costumava entreter o filho Ben (Jake McDorman) em um exercício sobre tentar encontrar moedas de valor (raras) em meio a outras convencionais. O tédio daquela época virou apenas distância nos dias de hoje - e não deixam de ser sutilmente comoventes as sequências em que Jerry recorda instantes da adolescência do rapaz, quando ele tentava pedir algum suporte emocional para o pai, que se via absorto em outros interesses. Bom, não demora para que o protagonista se sinta revigorado ao conferir os números da loteria estadual, fazer alguns cálculos de probabilidade, e descobrir a possível existência de uma brecha que lhe permite ter ganhos praticamente ilimitados.

Sim, o filme basicamente é isso: sobre um casal de sessenta e tantos anos se sentindo reanimado para a vida, vendo seu próprio relacionamento ser oxigenado pela oportunidade de, a cada punhado de semanas, burlar o sistema dos jogos, ampliando seus rendimentos. Mas se engana quem pensa que essa é apenas uma comédia bobinha sobre como a ganância pode ser uma desgraça. Sim, esse componente até aparece lá pelas tantas, a partir do momento em que um grupo "rival" de astutos e ambiciosos jovens estudantes de Harvard também descobrirem a falha - o que renderá uma ótima coleção de piadas sobre o abismo geracional entre os antagonistas. Mas o principal ponto aqui é o que Jerry e Marge fazem com o dinheiro, reestruturando empreendimentos, apoiando uns aos outros financeiramente e distribuindo as riquezas entre toda a comunidade (que se vê estimulada até a fazer um grande festival de jazz local, como uma espécie de símbolo dessa união improvisada).

É claro que nem tudo dará tão certinho assim. Há, por exemplo, uma jornalista empenhada em trazer o assunto à tona - e a denúncia da fraude poderá representar um fim para o esquema. E existe também a própria entidade que comanda o sistema de loterias do Estado, que poderia complicar tudo. Só que tudo flui de forma muito leve, agradável, com o elenco claramente se divertindo em meio a inesperados comentários sociais sobre assuntos como sexo na terceira idade, provincianismo dos moradores de pequenas cidades, tédio na aposentadoria, e tentativas aleatórias de algum tipo de sentimentalismo mais acolhedor que, sinceramente, em tempos tão brutos, tão duros como os que vivemos, também não faz mal. A propósito dos atores, Rainn Wilson (o Dwight de The Office) está naturalmente engraçado como o "dono da bodega" que ajuda a dupla em suas tramoias, ao passo que Anna Camp e Larry Wilmore - que é o contador e também o agente de viagens local - cumprem seus papeis a contento. Jerry e Marge Tiram a Sorte Grande é simples, direto, sem grandes conflitos e, talvez por isso, meio esquecível. Mas pra uma noite de sexta-feira em que se queira apenas relaxar, pode ser uma boa pedida.

Nota: 7.0


quinta-feira, 23 de junho de 2022

Novidades em Streaming - Pleasure

De: Ninja Thyberg. Com Sofia Kappel, Alice Gray e Axel Braun. Drama, Suécia / Holanda / França, 2021, 109 minutos.

Um filme sobre os bastidores da indústria dos filmes adultos - mas que não dá nenhum tesão. Assim é Pleasure, obra de estreia da diretora sueca Ninja Thyberg, que expande as ideias que a própria já havia apresentado em um curta-metragem de 2013. Na trama acompanhamos Linnéa (a ótima Sofia Kappel), uma jovem de apenas 19 anos que chega à Los Angeles disposta a ser uma grande estrela pornô. Assumindo o pseudônimo de Bella Cherry ela se mostra inicialmente à vontade diante de produtores e astros do setor, se apresentando como alguém bastante segura de seus objetivos - a despeito da eventual timidez das primeiras tomadas. Mas, para se destacar, será necessário fazer mais do que o simples beabá - ou o "papai e mamãe": o sucesso, ao cabo, terá um custo. Um custo psicológico, físico, que a fará mergulhar cada vez mais fundo em um universo muitas vezes misógino, machista, cheio de preconceitos.

Nesse sentido, é possível afirmar que a experiência pode ser bastante incômoda para alguns paladares. Afinal, se por um lado, não deixa de ser curioso saber do que ocorre com a câmera ainda desligada - há um caráter quase documental nessa preparação, os diálogos entre os atores, os movimentos, as tentativas de deixar todos à vontade -, por outros há uma espécie de violência que vai escorrendo pelos cantos, nas entrelinhas, o que sufoca as atrizes que não se mostram capazes de se adequar a um cinema de fetiches bizarros, excêntricos, exagerados (e não quero aqui parecer moralista já que o problema não está no fetiche em si, mas sim no caminho percorrido pelas jovens atrizes para que estes sejam contemplados). Um bom exemplo disso está na excruciante sequência em que Bella aceita um trabalho desagradável e violento, com dois atores que a humilham, obrigando-a a submissão (pra não dizer estupro).



É doloroso, eventualmente desagradável, mas também serve para evidenciar que, por trás de uma atriz que faz caras e bocas de prazer em meio a um sexo mecânico, há toda uma indústria movida por homens brancos e de meia idade - que detém o dinheiro - e que destituem as suas estrelas do direito ao próprio corpo (diferentemente do suposto empoderamento que o universo poderia sugerir). Lá pelas tantas, Bella percebe que terá mais sucesso no ramo se investir em fetiches mais extravagantes - de bondage à dupla penetração, entre outros. E é aí que a coisa complica um tanto. Sim, estamos falando de um segmento de trabalho estigmatizado, mas o que o filme busca nos dizer o tempo todo parece ser sobre o quanto essas meninas precisam ser fortes para embarcar nessa jornada. E como amadurecer não vai ser fácil sem alguma boa dose de presença de espírito, inteligência e autenticidade.

E Sofia Kappel traz tudo isso, misturando olhares vulneráveis e até desesperados com um comportamento que sugere força e persistência em igual medida. Acompanhada de atores e atrizes que realmente integram esse universo, o filme amplia o caráter realista, quase naturalista, como se a câmera que vai pra lá e pra cá funcionasse como um observador, uma espécie de voyeur em meio a homens circulando com seus pênis eretos e a mulheres em trajes fetichistas. Todo esse contexto dá profundidade aquilo que acompanhamos, enquanto temas como sororidade, papel da mulher, julgamentos morais, estruturas de poder, consentimento, tabus sexuais e outros emergem em cena. É um trabalho complexo, instigante e realista, cheio de camadas, mas também simples, direto. E que nos faz lembrar o tempo todo de que, para cada busca que fazemos no xvideos, há um sem fim de pessoas trabalhando no sentido de atender esses anseios. Sim, trabalhando. Parece estranho admitir isso. Mas é a verdade.

Nota: 8,0


terça-feira, 21 de junho de 2022

Novidades em Streaming - Fruto da Memória (Mila)

De: Christos Nikou. Com Aris Servetalis e Sofia Georgovassili. Drama / Comédia, Grécia / Eslovênia / Polônia, 2021, 91 minutos.

A premissa de Fruto da Memória (Mila) - que está disponível para aluguel na Amazon e na Apple TV - é curiosa e atual: em meio a uma espécie de pandemia mundial que causa amnésia repentina na população, uma empresa de tecnologia desenvolve um sistema que visa a construir novas memórias em seus pacientes. Nesse contexto acompanhamos o taciturno Aris (Aris Servetalis), um homem de meia idade que se locomove pela cidade de forma silenciosa, se alimentando persistentemente de maçãs. Enquanto o mundo padece desse novo mal, que faz com que as pessoas abandonem seus carros em meio a rua sem saber exatamente o que estão fazendo, Aris vai mantendo uma rotina melancólica, com o espectador tendo poucas informações a seu respeito. Um certo dia, em uma viagem de ônibus, Aris vai até o final da linha sendo despertado de um sono profundo pelo motorista: ele não lembra mais de nada. Não há um parente que lhe reivindique. Um irmão, filhos, os pais. 

O protagonista resolve então ir até a clínica com a intenção de entrar no programa de recuperação. No local, ele recebe instruções em fitas cassete - aliás, dado o desenho de produção e a ausência de equipamentos mais modernos, a trama parece se situar nos anos 80 -, estimulando-o para atividades prosaicas como andar de bicicleta, ir ao cinema, a algum bar ou festa, namorar, transar. A comunicação é bastante básica, devendo o sujeito registrar (por meio de fotografias feitas em uma polaroid) todas as metas que ele alcança na busca de ser esse "novo sujeito". A estranheza é meio geral, tudo parece meio robótico, frio. Tal qual a existência em tempos atuais - onde a formação de novas memórias se dá por meio de selfies egocêntricas de tudo e de todos, mesmo das ações mais estúpidas -, a vida com esse componente digital parece meio desprovida de um significado mais profundo. De um sentido qualquer.

E talvez aí esteja a chave para que compreendamos o que pretende o diretor Christos Nikou com essa obra: ao olhar para o passado, ele analisa o vazio do presente, a mesquinharia dos atos, dos gestos. É claro que não é assim tão simples, já que claramente há mais camadas por baixo: Aris guarda alguns segredos, entre eles o que envolve uma dolorosa perda. E ter de lidar com o luto e a necessidade de desapegar e de seguir em frente, como se nada houvesse acontecido, pode ter a ver com a forma como a narrativa é conduzida. E até mesmo de como o protagonista se comporta. Há uma cena bastante expositiva em que Aris está comprando as suas maçãs, quando é alertado pelo dono do mercado de que "é muito bom comer maçãs porque elas fazem bem a memória". Imediatamente o homem substitui as maçãs por laranjas, afinal, quais memórias ele efetivamente quer guardar? Ou suprimir? O que deve ficar para trás ou ressurgir?

É um universo complexo, que emula desde o cinema alegórico de Charlie Kaufman, até clássicos sobre "novos mundos" como O Show de Truman (1998). Tendo recebido ótimas críticas no Festival de Veneza, o filme foi o selecionado da Grécia na mais recente edição do Oscar - e, ainda que não tenha chegado entre os finalistas, fez relativo burburinho na temporada. Ainda assim, talvez não seja uma obra para todos os paladares, já que se trata de uma experiência cheia de sutilezas, de ambiguidades e de informações que estão por baixo da fachada de normalidade que parece evocar de Aris. Em entrevistas de divulgação Nikou mencionou a facilidade com que as pessoas esquecem facilmente as coisas que lhes causam dor. "E isso que somos apenas uma coleção de memórias, de coisas que não esquecemos". Freud teria dito que a "cura não vem do esquecer. Vem do lembrar sem sentir dor". A frase, de alguma forma, resume aquilo que acompanhamos em Fruto da Memória. E o simples pensar sobre tudo isso, faz a jornada valer a pena.

Nota: 8,5

 

Pitaquinho Musical - Tim Bernardes (Mil Coisas Invisíveis)

Vamos combinar que, se depender da reação dos fãs do trabalho do Tim Bernardes, é possível afirmar que o compositor talvez tenha inaugurado algum tipo de subvertente musical, talvez uma espécie de "indie filosófico", que mescla sofrimento, afeto e otimismo em iguais medidas. Mas esse combo de sensações é muito menos turbulento e muito mais resignado - onde se reconhecem as dores, os lutos e as aflições da alma, mas também se reaprende a amadurecer, a prosseguir, a encontrar motivo para algum tipo de contemplação diante do mundo. Nem que seja uma reação a algo mais prosaico. Nesse sentido, a mescla de melodias homogêneas, econômicas e pontualmente ensolaradas não gerariam nenhum tipo de estranhamento se este segundo trabalho solo do vocalista d'O Terno se chamasse Recomeçar 2 - e não Mil Coisas Invisíveis

Em entrevista ao site Papel Pop, o artista afirmou que desde <atrás/além> - último projeto com O Terno - se permitiu "fazer algumas canções com letras mais longas, em que eu ia desabafando e discorrendo sobre coisas de maneira meio ensaística, meio poética, meio objetiva, meio abstrata". Assim, Mil Coisas Invisíveis se apresenta como mais um daqueles trabalhos que requerem uma apreciação mais calma, onde se possa assimilar detalhes, encaixes, referências e orquestrações que se desdobram entre a economia e a expansão, a verborragia e a sutileza. Um bom exemplo desse expediente pode ser observado na graciosa e primaveril A Balada de Tim Bernardes, que alterna versos sofisticados (Quanto mais o tempo passa / Mais eu acho graça nessa enganação / Chamada virar adulto / O tempo é todo junto, sem separação), com um refrão amplamente pegajoso. Mas há mais, muito mais. Basta explorar.


segunda-feira, 20 de junho de 2022

Cinema - Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (Everything Everywhere All At Once)

De: Daniel Kwan e Daniel Scheinert. Com Michelle Yeoh, Jamie Lee Curtis, Stephanie Hsu e Ke Huy Quan. Comédia / Fantasia / Ficção Científica, EUA, 2022, 140 minutos.

E se fôssemos mais gentis? Mais amáveis? E se fôssemos mais afetuosos, mais amistosos, mais compreensivos? E se levássemos a vida com mais leveza, com mais graça? E se o mundo fosse um lugar melhor? E se tivéssemos decidido por isso e não por aquilo? Tomado este e não aquele caminho? E se? Quem nunca se pegou pensando em como seria se houvéssemos agido diferente em determinada circunstância? Uma escolha que suprimiu outra. Uma tomada de decisão que deixou algo pelo caminho. Vim pra cá e não fui pra lá. Relacionamentos, trabalho, estudos. O que comi, o que bebi. O show que fui, a viagem que curti. O cinema, os livros, as artes. O que forma a nossa bagagem. Como socializamos. Com quem vivemos, transamos, dividimos a vida - ou uma taça de vinho. Há algum sentido nisso tudo? Naquilo que fizemos meio que no piloto automático cotidianamente? Estamos sozinhos? Não? O que diz a ciência? E a religião? As decisões políticas?

São muitas as perguntas. E poucas as respostas oferecidas por Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (Everything Everywhere All At Once). Mas o objetivo na obra dirigida pelos Daniels - Kwan e Scheinert que, anteriormente, haviam feito o horroroso Um Cadáver Para Sobreviver (2016) -, não é necessariamente esclarecer. E sim oferecer uma experiência em que, sob a desculpa da existência de um multiverso em que cada decisão tomada forma uma nova ramificação em nossos destinos, possamos refletir sobre tudo isso. Sobre esse conjunto de aspectos filosóficos, metafísicos, transcendentais. Ao cabo, a obra pode parecer complexa em uma primeiro olhar - ainda que ali pelas tantas ela pareça apenas brincar com o conceito de realidades paralelas. Se elas existem, de fato, muito provavelmente funcionam como um grande diagrama em formato ramificado em que no plano existencial podemos ser quem efetivamente somos, ao passo em que em outros seremos outras personas, dotadas de outras habilidades, outras competências, outras escolhas e vidas.



E é justamente esse o caso da protagonista Evelyn Wang (Michelle Yeoh), uma proprietária de lavanderia da Califórnia, que se vê enredada em meio a papelada que deve ser entregue para que seja regularizada a situação do empreendimento junto à Receita Federal. Em um casamento que já está mais pra lá do que pra cá - com o permanentemente amável marido Waymond (Ke Huy Quan) -, a protagonista está para receber uma visita do pai (James Hong), um daqueles idosos meio conservadores, tendo ainda de lidar com a filha temperamental Joy (Stephanie Hsu) que trouxe, para desgosto da amargurada mãe, a sua namorada Becky (Tallie Medel). No momento da auditoria com a burocrata Deirdre (Jamie Lee Curtis), Evelyn fica a ponto de explodir, surgindo em sua vida uma espécie de Waymond do multiverso, para lhe alertar que ela será a chave para que a realidade em que todos estão seja salva, já que alguém dessa realidade alternativa parece disposto a embaralhar tudo, gerando o caos.

Parece complicado. E é. Mas também é extremamente divertido, anárquico, filosófico, existencialista. Sendo uma espécie de "pior versão de si própria" Evelyn deverá utilizar as habilidades das outras milhares dela mesma - que podem  ser desde uma atriz que estrela filmes de artes marciais, passando por uma chef de cozinha, até uma cantora de ópera -, para tentar restabelecer algum tipo de ordem. Enquanto a narrativa avança, com seu roteiro imprevisível, somos brindados com um sem fim de colagens, imagens em animação, sequências surrealistas e outras trucagens que, adicionadas a uma vigorosa trilha sonora e a uma fotografia riquíssima, convertem este em um projeto tecnicamente impecável (e desde já dá pra afirmar que se Paul Rogers não for nominado ao Oscar na categoria Edição, esta será uma das maiores injustiças da temporada). Definir Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo não é tarefa fácil. É uma mistura de sentimentos poucas vezes vista e, seguramente, ninguém sai da sessão da mesma forma. É um tipo de expansão contínua, criativa e quase infindável, como se estivéssemos em uma versão estendida de um filme do Michel Gondry. O que faz valer cada segundo.

Nota: 9,5


sexta-feira, 17 de junho de 2022

Grandes Cenas do Cinema - ET: O Extraterrestre (ET: The Extraterrestrial)

De: Steven Spielberg. Com Henry Thomas, Dee Wallace, Robert MacNaughton e Drew Barrymore. Aventura / Ficção Científica, EUA, 1982, 115 minutos.

É quase no final de ET: O Extraterrestre (ET: The Extraterrestrial) que ocorre uma das maiores sequências de perseguição da história do cinema. Ou talvez a maior. Nela, um grupo de adolescentes a bordo de bicicletas foge da polícia, dos militares, do FBI, da Nasa e de todo o resto, percorrendo um bairro residencial por entre casas, terrenos baldios, subindo e descendo morros como se estivessem em uma competição meio improvisada de BMX. Na carona de um dos meninos, o ET que dá nome ao filme - que acaba de "ressuscitar", após ser capturado pelo Governo e ser dado como morto. A cena avança para uma situação em que não parece mais haver pra onde fugir: os carros da polícia fizeram uma barreira. O improvável acontece: com os poderes do extraterrestre a todo o vapor os meninos alçam voo por sobre os policiais. Cruzam a cidade enquanto a trilha composta por John Williams sobe, passam pelo sol e chegam à clareira do início do filme, local em que o ser de outro planeta havia se perdido. O ET finalmente poderá ir para casa. Enquanto nós permanecemos em um mar de lágrimas em nossos sofás.

Existem experiências cinematográficas tão completas que, em um suposto dicionário ilustrado, não seria exagero colocar uma foto do filme ao lado da palavra obra-prima, por exemplo. E esse é o caso do clássico de Steven Spielberg. Pra mim que apaixonei por cinema no final dos anos 80 e no começo dos 90, obras como esta foram fundamentais. Quando criança costumava ver ET no Natal - o filme fora lançado no Brasil em dezembro de 1982 e passava frequentemente na TV aberta (era o nosso A Felicidade Não Se Compra). Na época, do alto da minha ingenuidade, ficava maravilhado com tudo, especialmente com o poder daquela história sobre amizade - não apenas entre Elliot (Henry Thomas) e o ET, mas também entre o menino e seu irmão mais velho Michael (Robert Macnaughtor). Mais adulto, consegui perceber o poder do subtexto na abordagem de temas relacionados ao respeito às diferenças e também ao meio ambiente (a cena em que Elliot liberta as rãs na escola, é quase explícita), além de haver am algumas camadas o questionamento de eventuais abusos de autoridade.


E, nesse sentido, mais do que uma aventura comovente sobre um menino ajudando um ET a voltar pra casa, temos uma experiência vigorosa sobre empatia, sobre compaixão, sobre afeto, sobre aceitação. E admito que fico ainda mais triste quando vejo um filme como esse, por perceber que estamos em um Brasil (e em um mundo, na real) que parece a cada dia caminhar para o oposto disso. O que abre espaço para um processo infindável de intolerância, de preconceitos, de ódio, de racismo, de xenofobia. Um governo de morte é daqueles que se empenha em fazer uma limpeza étnica. Em se livrar do diferente. Se o ET caísse em um morro do Brasil atual precisaria de uma centena de Elliots pra se salvar. E muita bicicleta voando. Sim, porque assistir a esse filme mexe com a gente. Ficamos nostálgicos, reflexivos, pensativos. É tanta dureza, é tudo tão torpe, que (re)assistir àqueles meninos flanando em suas bikes funciona quase como uma espécie de refúgio de tudo. Spielberg, te venero.

E muito desse sentimento tem a ver com o carisma dos personagens - especialmente do ET, que surge em cena como figura inicialmente exótica e tímida, que vai dando lugar a um alienígena de olhos curiosos e gestos afáveis - o que é completado por uma vocalização meio robótica, cortesia do ator Pat Welsh. Indicada ao Oscar em diversas categorias - como Filme, Roteiro Original, Direção, Edição e Montagem -, a obra sairia com os prêmios de Efeitos Visuais, Efeitos Sonoros, Edição de Som, Som e Trilha Sonora Original, o que faria justiça ao soberbo aparato técnico utilizado à época para dar vida a produção. Anos mais tarde, o trabalho seria reconhecido pelos votantes do American Film Institute (AFI) que, na relação de 100 Melhores Filmes Americanos de Todos os Tempos de 2007, incluiria o filme em uma honrosa 24ª produção. Um número impressionante para uma ficção científica estilo Sessão da Tarde. O público agradece.

Pitaquinho Musical - Perfume Genius (Ugly Season)

Quem acreditava que a obra do Perfume Genius caminharia em direção a uma sonoridade cada vez mais acessível, após o climático e delicado Set My Heart On Fire Immediately - nosso oitavo melhor disco internacional de 2020 -, talvez se surpreenda com o caráter um tanto hermético, quase de difícil digestão de Ugly Season, o sexto trabalho de estúdio de Mike Hadreas com o projeto. Aqui, resta pouco do espírito nostálgico, adocicado de canções calorosas como On The Floor e Without You. Como se desse um passo atrás nessa "evolução", o artista se reaproxima de suas origens, apresentando uma coleção de canções pontuadas por sutilezas, fragmentos, experimentos e estruturas pouco óbvias, ou que são marcadas por elementos melodiosos que o afastam de seu repertório recente.

Claro, há exceções ali no meio - caso das pegajosas Pop Song (com seu título autoexplicativo) e a própria faixa-título, que convida o ouvinte a algum tipo de movimento semi-regueiro. Mas em linhas gerais o trabalho é muito mais denso, inquietante, claustrofóbico e até sombrio - como sugere a evocativa Eye in the Wall que, com seus mais de oito minutos percorridos entre orquestrações sinistras, quase funciona como uma versão estendida do tipo de composição que Thom Yorke realizaria em Amnesiac (2001). Diante disso, o disco é chato? Excessivamente difícil? Não, é apenas mais desafiador. Mas certamente aqueles que se aventurarem a mergulhar nas ideias propostas pelo artista, encontrarão uma obra que, a seu jeito, reverbera ao mesmo tempo o caos atual (das guerras, dos preconceitos, do ódio e das doenças), ao passo que celebra de forma quase ritualística a natureza, o sexo, a personificação queer e a atmosfera luminosa que se sobressai em meio a névoa. Não dá pra ficar alheio.

 

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Pitaquinho Musical - Vitor Ramil (Avenida Angélica)

O estilo invernal do sempre ótimo Vitor Ramil ganha uma roupagem ainda mais poética com Avenida Angélica, seu décimo segundo trabalho de "estúdio". E o estúdio nesse caso é realmente entre aspas, já que o registro é resultado de duas noites de gravação realizadas em agosto do ano passado, no Teatro Sete de Abril em Pelotas. Para o disco, o artista utilizou como base dois livros escritos pela conterrânea Angélica Freitas - no caso, Rilke Shake e Um Útero É do Tamanho de um Punho - extraindo de seus versos uma coleção de canções envolventes, pontuadas pelo sempre presente violão de Ramil. "A poesia da Angélica é cult, é pop, é tocante, é divertida, é crítica, é amorosa e, acima de tudo, é muito musical", salientou o músico no material de divulgação do álbum.

Nesse sentido, poemas como Rilke Shake recebem uma roupagem intimista, capaz de transformar versos enigmáticos em uma experiência semicatártica que mistura cotidiano, referência culturais diversas e sentimentos palpáveis e abstratos em igual medida (Nada bate um Rilke shake / No quesito anti-heartache / Nada supera a batida / De um Rilke com sorvete). O expediente se repete em outros tantos momentos primorosos, casos de Uma Mulher Insanamente Bonita, R.C, Mulher de Rollers e Família Vende Tudo (Família vende tudo / Um avô com muito uso / Um limoeiro / Um cachorro cego de um olho), que comprovam que poemas musicados podem ter ritmo, serem melodiosos e até conter refrões pegajosos. "Nas primeiras leituras eu já senti música nos versos de Angélica", resumiu o artista em entrevista ao Matinal Jornalismo.


Novidades em Streaming - Árvores da Paz (Trees of Peace)

De: Alanna Brown. Com Eliane Umuhire, Charmaine Bingwa, Bola Koleosho e Ella Cannon. Drama, EUA, 2022, 97 minutos.

Os filmes da Netflix podem até soar meio parecidos entre si - aquele estilo de produção feita a toque de caixa, em escala um tanto industrial -, mas uma coisa não se pode negar: muitas vezes cumprem seu papel na hora de jogar luz sobre eventos históricos. Ou sobre questões políticas, culturais e religiosas de outros países que não apenas os Estados Unidos. Há todo um mercado do cinema turco, por exemplo, que tem tido ótimo apelo junto ao público. Obras que partem de recortes para analisar o todo, trazendo contrastes sociais e dramas novelescos feitas com grande apuro técnico. E quando Árvores da Paz (Trees of Peace) chegou, fiquei meio desconfiado: o tema é relevante - retorna ao período que ficou marcado pelo genocídio em Ruanda, episódio que chocou o mundo em 1994, resultando em quase um milhão de mortos -, mas parecia ser mais um filmezinho caça-níqueis, que força a barra na busca de emocionar o espectador, ao passo que esvazia a importância daquilo que discute. Mas admito que gostei.

Aqui não se tem aquela obra expansiva, com grandes planos ou que apresenta os vários ângulos do conflito. Sim, o filme de estreia da diretora Alanna Brown até tem como pano de fundo o massacre promovido por extremistas hutus - que assassinaram milhares de integrantes da minoria tutsi, em uma campanha de ódio que contou com o suporte do próprio governo, dos meios de comunicação e de milícias fortemente organizadas. Só que, nesse caso, a realizadora opta por centrar a ação no porão de uma casa, local em que quatro mulheres permanecem escondidas (presas mesmo), enquanto aguardam o fim do período de instabilidade. Diferentemente do que ocorre com outros, como Hotel Ruanda (2004), aqui não há muito espaço para explicações a respeito da lógica da política interna de Ruanda. Ela é apenas absurda. E, às protagonistas, resta esperar. Num exercício quase interminável de paciência, por mais de 80 dias. Com pouco acesso a alimento ou água e um banheiro improvisado.

Mesmo assim são muitos os instantes de tensão. Tendo acesso à rua apenas por uma janelinha gradeada ao nível da rua, as quatro conseguem não apenas enxergar parte da truculência que ocorre para além da parede, do lado de fora, como também ouvir. Ouvir tudo. Gritos, facadas, tiros, cachorros latindo, pessoas sendo atacadas, estupradas, mortas. É uma obra claustrofóbica, sufocante, porque às mulheres que ali se encontram sequer é permitido extravasar. É preciso persistir em meio a conversas sussurradas, em um comovente exercício de paciência. Especialmente pelo fato de as quatro serem completament diferentes entre si.  A começar por Annick (Eliane Umuhire), mulher hutu moderada, que está grávida e que é a proprietária da casa em que todos estão. Jeanette (Charmaine Bingwa) é a freira que parece ter a sua fé testada o tempo inteiro. Já Mutesi (Bola Koleosho) é uma tutsi que carrega uma grande raiva interior - que a faz culpar os hutus por toda a violência. E por fim há Peyton (Ella Cannon), uma americana que integra uma Organização Não Governamental que atua no local.

Mesmo sendo tão diamentralmente opostas - o que renderá um sem fim de sequências de desentendimentos entre elas -, é possível afirmar que elas formariam, metaforicamente, uma espécie de embrião para o tipo de política que seria adotada em Ruanda, ao final do genocídio. Hoje, Ruanda é uma das nações que mais conta com mulheres ocupando cargos públicos no mundo. Isso significa algum aceno para a possibilidade de pacificação? Não necessariamente, mas alguns indicadores mostram que a ampliação do debate de pautas que envolvem os direitos da mulher podem estar contribuindo para a reconstrução do País pós-genocídio (claro, há o fato de que 70% da população de Ruanda é composto por mulheres). No filme, esse engajamento que rompe o escudo do machismo e do patriarcalismo, surge em meio a sequências em que as quatro mulheres se apoiam, agem com empatia, ensinam umas as outras (inclusive a ler) e formam uma espécie de rede de proteção, que será fundamental para que consigam superar a adversidade. Trata-se, ao cabo, de uma obra ao mesmo tempo desalentadora e otimista, mas que não ignora o desatino da xenofobia e a importância da manutenção da democracia.

Nota: 8,0


terça-feira, 14 de junho de 2022

Novidades em Streaming - Blue Bayou

De: Justin Chon. Com Justin Chon, Alicia Vikander, Sydney Kowalske e Mark O'Brien. Drama, EUA, 2021, 119 minutos.

Ok, a gente até sabe que indicação ao Oscar não depende apenas da qualidade de um filme, já que é preciso uma ampla campanha de marketing por trás da produção. Mas ao final da projeção de Blue Bayou, considerei meio inacreditável o fato de a obra dirigida e estrelada por Justin Chon ter passado completamente batida na principal premiação do cinema. O projeto, afinal, tem todos os elementos que costumam agradar a Academia - indo desde o drama dilacerante, passando pela temática relevante, até chegar às incríveis interpretações do elenco principal, inclusive da pequena Sydney Kowalske, que tem uma entrega comovente. A trama versa sobre o processo de deportação tardio que é vivido por milhares de estrangeiros adotados nos anos 80 e 90 por famílias americanas, que descobrem não possuir cidadania. Uma situação dramática, que deixa vulnerável uma boa parcela da população de outros países que cresceu nos Estados Unidos - muitos inclusive sequer sabendo do fato de não serem cidadãos da nação em que vivem.

Bom, não é preciso ser tão ligado em política internacional para saber que um governo xenófobo como o do recente Donald Trump torna tudo ainda pior. Uma matéria da BBC dá conta de que a Campanha pelos Direitos dos Adotados (ARC, na sigla em inglês), estima que até 2033 mais de 60 mil estrangeiros possam estar em risco de deportação, por conta de alguma irregularidade em sua documentação. Ou por mera burocracia mesmo - e não deixa de ser meio bizarro pensar que em um mundo tão supostamente globalizado, ainda haja tantos casos de pessoas precisando comprovar não serem "apenas" imigrantes, com o risco de serem separados de suas famílias e enviados para um País que sequer conhecem. Em Blue Bayou esse é o caso de Antonio (Justin Chon), coreano adotado por uma família americana aos três anos de idade e que, por conta de um episódio de abuso de autoridade envolvendo a polícia, passa a correr riscos de deportação.

Trabalhador de um estúdio de tatuagem, Antonio está empenhado em conseguir um segundo emprego para que possa dar conta do sustento da família, que é integrada pela namorada Kathy (Alicia Vikander), e pela pequena enteada Jessie (Sydney Kowalske) com quem mantém, meio aos trancos e barrancos, uma amorosa relação. Diante de tantas negativas - Antonio já esteve na prisão por duas vezes por conta de assaltos com roubo de motos -, o protagonista vê a sua situação piorar, quando se envolve em uma confusão com uma dupla de policiais mal intencionados - um deles Ace (Mark O'Brien), que é o pai biológico de Jessie e que também luta para poder conviver com a criança. De mãos atadas, Antonio, Jessie e Kathy precisarão contar com a boa vontade de advogados caríssimos e do próprio Estado, que não parece lá muito interessado em preservar os seus estrangeiros em solo americano. Ah, detalhe importante: Kathy está grávida.

Excruciante, a obra utiliza grande parte de seu aparato técnico em favor da narrativa - ele pode até ser modesto (é um filme de baixo orçamento, afinal), mas é muito efetivo. Um bom exemplo disso está nos eventuais longos planos sequência, sendo aquele que envolve a discussão do casal protagonista, após Kathy descobrir que Antonio voltou a praticar furtos (no intuito de obter dinheiro para custear os honorários jurídicos), um dos mais marcantes. Mas há ainda a trilha sonora - a aparição de um Bon Iver lá no meio é mais do que perfeita, além da própria canção de Roy Orbison, que nomeia o filme - e um certo apelo ao onírico na fotografia, especialmente nas sequências que mostram cenas da juventude da desesperada mãe de Antônio. E isso sem falar nas interpretações, e, sério, Academia, dar um prêmio pro Will Smith e ignorar o Justin Chon na temporada se configura quase em um crime. E Alicia e Sydney, é bom que se diga, não ficam atrás. Você, fã de bom cinema, faça justiça a essa joia que está disponível para aluguel na Apple TV e na Amazon. Assista. Pra ontem.

Nota: 9,5


segunda-feira, 13 de junho de 2022

Tesouros Cinéfilos - As Maravilhas (Le Meraviglie)

De: Alice Rohrwacher. Com Alexandra Lungu, Alba Rohrwacher, Monica Bellucci e Sam Louwyck. Drama, Alemanha / Itália / Suiça, 2014, 111 minutos.

O choque geracional no meio rural pode, em muitos casos, formar um verdadeiro abismo entre pais e filhos. Em geral para jovens e crianças a lida no campo não é fácil: a juventude é subtraída, a individualidade e o senso de independência, dependendo a situação, inexistem. A inocência se perde em meio a uma rotina de trabalhos, de lidas - muitas delas pesadas - que se iniciam cedo e terminam tarde. O mundo nesse contexto é uma bolha que, se não for bem administrada, pode ampliar um desejo íntimo de êxodo por parte dos adolescentes. De fugir daquilo tudo. De se emancipar, de ter autonomia. De uma forma meio torta, é possível afirmar que todas essas questões aparecem no bucólico As Maravilhas (Le Meraviglie), curiosa experiência da diretora Alice Rohrwacher, sobre uma família de apicultores do interior da Itália, que tem a sua rotina modificada com a chegada de uma equipe de TV interessada em gravar um reality show com os agricultores do local.

Aliás, esse universo de contrastes parece ser uma espécie de linha mestra da narrativa: os campesinos que se encontram com figuras excentricamente urbanas - caso da apresentadora Milly Catena (Monica Bellucci) -, os rios, cascatas e cachoeiras, em choque com o aparato técnico da TV, seus microfones, câmeras e outros, a produção rural familiar versus o agronegócio operado com o abuso de agrotóxicos. A pauta de costumes em confronto com o progressismo. A liberdade do mundo ao redor colidindo com a "prisão" da terra, da lama, do mel grudento e das picadas de abelhas. Ao cabo é um filme que mistura muitos assuntos colocando-os em uma espécie de liquidificador simbólico que fará emergir uma série de tensões entre os integrantes da numerosa família de apicultores - especialmente da jovem Gelsomina (Alexandra Lungu), a filha mais velha, que mantém um olhar tão curioso quanto resignado em relação ao contexto em que está inserida. 


E esse sentimento divisivo se ampliará ainda mais com a chegada do jovem Martin (Luis Huilca), que integra uma espécie de programa de reabilitação local. Ao lado de Gelsomina, Martin será incumbido de uma série de atividades junto às colmeias, seja no manejo dos enxames ou na coleta e na centrifugação do mel, passando a ser uma espécie de "filho" que Wolfgang (Sam Louwyck) nunca teve. Por sinal, aí está mais um tema que entra em discussão durante a narrativa e que envolve a perpetuação de tradições em meio a uma família patriarcal. E essa necessidade permanente de se manter fiel às raízes, por mais arcaicas que essas sejam. O que amplia o interesse em torno do embate central, quando Gelsomina se inscreve no programa de TV sem que o pai saiba, retirando praticamente toda a família de sua zona de conforto. Lazer? Música? Diversão? Em um mundo que se nasce e se cresce para o trabalho não parece haver espaço para isso. E o processo de desobstrução poderá ser doloroso.

Filmada com inacreditável naturalismo - com a câmera muito próxima dos atores, trafegando em meio a banalidade cotidiana, quase funcionando como uma espécie de observadora que não participa -, a obra se assemelha a uma espécie de documentário involuntário sobre a vida no campo, suas dificuldades, rotinas, conquistas. A fotografia levemente granulada, pendendo para os tons esmaecidos, reforça o caráter meio gélido do ambiente. Não há espaço para raios de sol vigorosos ou cores em tons mais primaveris, o que contribui para um estado de espírito evocativo da vida de poucas perspectivas que pode emergir do campo (especialmente na visão dos jovens, que podem se ver pouco estimulados à permanência a partir da atitude vigilante dos pais). Lá pelas tantas, assim como faria mais adiante com o irresistível Feliz Como Lazzaro (2018), Rohrwacher quase pende para o realismo mágico, abusando de metáforas e de um certo clima onírico para evocar sensações e até inquietações. Na internet há vários textos que afirmam que o trabalho, disponível na plataforma Filme Filme, foi aplaudido por mais de dez minutos no Festival de Cannes - de onde saiu com o Prêmio do Júri. É daqueles que permanecem conosco por muitos dias. O que não deixa de ser um grande mérito.


sexta-feira, 10 de junho de 2022

Cine Baú - Umberto D. (Umberto D.)

De: Vittorio de Sica. Com Carlo Battisti, Maria-Pia Casilio e Lina Gennari. Drama, Itália, 1952, 89 minutos.

Acho que um dos aspectos mais marcantes da obra de Vittorio De Sica - e talvez do Neorrealismo Italiano como um todo - seja a sua atemporalidade. O seu caráter permanente na abordagem dos contrastes sociais em um mundo tão desigual. Já era assim em Ladrões de Bicicleta (1948), obra-prima sobre um sujeito que realiza um verdadeiro périplo por Roma, com a intenção de tentar reaver a sua bicicleta roubada (que consiste em seu instrumento de trabalho). Não é diferente em Umberto D. (Umberto D.) onde mergulhamos em uma Itália em processo de reconstrução no pós-guerra e que parte novamente de um recorte mais "doméstico", como forma de analisar o todo. Aqui, o tema central é o descaso com os aposentados que, com suas irrisórias pensões, mal conseguem manter as contas em dia - e a obra já abre em tom panfletário, com um grupo de idosos em marcha, com cartazes em punho, reivindicando aumentos na aposentadoria e mais respeito a um grupo que trabalhou a vida toda.

Aposentadorias que só encolhem e o completo descaso com quem necessitaria uma atenção maior do Estado. A Itália dos anos 50 não difere muito do Brasil de 2022 e talvez seja por isso que nos sintamos tão compadecidos com a jornada do Umberto D. do título (vivido por Carlo Battisti), um homem de idade avançada que mora em uma precária pensão - que é mantida com dificuldades. Mesmo sendo aposentado do setor público - ele trabalhou por mais de 30 nos no próprio Ministério do Trabalho (numa daquelas ironias próprias do diretor) -, Umberto mal consegue ter dinheiro para comer. Não é por acaso que a própria comida oferecida no bandejão do bairro, é dividida com o simpático cãozinho Flike, que é a sua única companhia. Quando o protagonista passa a sofrer com a ameaça de despejo por parte de sua senhoria - uma figura inacreditavelmente insensível, encarnada por Lina Gennari -, ele é forçado a uma série de atos desesperados na tentativa de conseguir honrar seus compromissos (com direito a penhora de livros e de outros objetos).



Nesse sentido, uma das sequências mais dolorosas da obra envolve o instante em que, de forma relutante, Umberto percebe que, talvez, o único caminho para a salvação seja o de pedir esmolas (como muitos senhores de idade já estavam fazendo). A cena humilhante em que pessoas conhecidas passam por ele na rua, enquanto timidamente ele coloca a mão para frente, em concha, é uma das mais comoventes da história do cinema - e só não é pior porque, de forma meio paradoxal, o trecho se encerra com um gracioso momento em que Flike "ajuda" o sujeito na tarefa, ao segurar o chapéu com a sua boca, estendendo-o para os transeuntes. Aliás, os diversos momentos de interação entre Umberto e seu animalzinho de estimação são daqueles que dão um calor no coração - e talvez por isso seja tão tensa a cena em que o homem tenta desesperadamente encontrar Flike após o seu sumiço.

Sem muito espaço para o otimismo o filme não busca soluções fáceis, escancarando de forma contundente seus pontos de vista. As ruas movimentadas em Roma, seus operários fazendo uma pausa para o almoço, o vai e vem das pessoas parece tornar esse cotidiano ainda mais opressivo, especialmente diante da invisibilidade experimentada por Umberto - e ele só terá algum tipo de atenção quando forçar a barra para ir parar no hospital (onde poderá ter acesso a algum tipo mínimo de dignidade). Da mesma forma o contraste entre as elites e as camadas mais vulneráveis é evidenciado em uma constrangedora sequência em que a dona da pensão promove uma festa que impedirá o protagonista, que arde em febre, de dormir. Ao cabo trata-se de uma experiência tocante, intensa, espontânea e naturalista, com direito a utilização de atores não profissionais. E que permanece irretocável em sua discussão, jamais soando datada.

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Cinema - Miss França (Miss)

De: Ruben Alves. Com Alexandre Vetter, Thibault de Montalembert, Pascalle Arbilot e Isabelle Nanty. Comédia, França, 2020, 107 minutos.

Foi em 2018 que a espanhola Angela Ponce fez história ao se tornar a primeira candidata trans a disputar o Miss Universo. O que, vamos combinar, representa um avanço em um meio tão conservador, quase parado no tempo, como é o de alguns concursos de beleza. Pois o assunto que costuma dividir opiniões ressurge no ótimo Miss França (Miss), filme sobre um jovem garoto que sonha em disputar o concurso. Aliás, a obra de Ruben Alves já abre com uma daquelas sequências de escola, onde um grupo de crianças expressa o que "deseja ser quando crescer" - com Alex (vivido pelo modelo Alexandre Vetter em sua fase adulta) verbalizando seu sonho em frente a turma. Um corte temporal nos leva 15 anos adiante, onde a protagonista sobrevive em meio a atrasos de pagamento na pensão que divide com um coletivo diversificado de minorias - pessoas de outras nacionalidades, trabalhadores precarizados, travestis e outros.

O sonho de se tornar miss não arrefeceu no coração de Alex. Ao contrário, ele volta à baila justamente quando ele reencontra um amigo de infância na academia de boxe do bairro. Discutindo temas contemporâneos como identidade de gênero, papel da mulher na sociedade e importância da sororidade (especialmente em ambientes machistas e patriarcais), a obra parte do tradicional universo que envolve esse tipo de disputa para, aos poucos, deixar evidente de que não se trata de torcer para que alguém vença uma simples competição. Há, ao cabo, algo maior em jogo, que permitirá outras vitórias, outras conquistas que dizem mais respeito à aceitação, à ocupação de espaços e a superação de preconceitos. Tão ou mais destemido do que o amigo que hoje é campeão de boxe, Alex se desafiará a enfrentar as etapas que envolvem o concurso, podendo expressar aquilo que sempre sonhou - no caso, a sua feminilidade.


E tudo isso é resolvido no filme com uma leveza impressionante. Enquanto Alex avança na etapa regional - que lhe leva à nacional -, mantendo o seu segredo, ela vai se tornando a cada dia mais feminina, mais envolvida com aquele contexto, com direito a mudança de postura, de figurinos e uso de maquiagens. Os comentários sociais sobre a necessidade urgente dos concursos de beleza avançarem para além da banalidade da beleza em si também possibilitam um debate mais amplo sobre o assunto. O que também  permite a inserção de piadas divertidíssimas, como a que envolve a ida das misses para a beira de uma praia imunda na Bélgica, onde farão uma coleta simbólica de lixo. A ideia é divulgar uma suposta preocupação com o meio ambiente, o que envolverá também o engajamento nas redes sociais. Só que para a protagonista, os propósitos serão outros, claro. E não é demais lembrar que uma miss trans já representa, por si só, uma quebra de paradigmas suficiente.

Com dificuldades que envolvem a incapacidade de se enturmar com as demais candidatas, passando pelo comportamento linha dura de Amanda (Pascalle Arbilot), a organizadora do evento, a obra flui de forma vigorosa mas acessível, transgressora mas palatável, apostando também no carisma do elenco como uma de suas fortalezas (e não deixa de ser uma ótima surpresa ver um ator veterano como Thibault de Montalembert esbanjando personalidade e versatilidade na pele da prostituta Lola). Entre idas e vindas será justamente a família "improvisada" de Alex - no caso, o pessoal da pensão - que lhe ajudará no sentido de não permitir que o sonho perca força. Trata-se, ao cabo, de uma experiência de grande sensibilidade, que aposta na delicadeza como combustível - o que quase faz com que quase nos esqueçamos o fato de estarmos um um mundo tão cheio de preconceitos, de ódio e de intolerância. Refletir tudo isso é o que faz a experiência valer a pena. O que faz com que a vitória venha por outros caminhos.

Nota: 9,0


terça-feira, 7 de junho de 2022

Curta Um Curta - Wichita

Essa aqui é pra quem gosta de filmes realmente curtos: com pouco menos de seis minutos de duração Wichita consegue, afinal, passar o recado de forma divertida, urgente e criativa. Na trama - dirigida pela atriz Sergine Dumais -, a jovem Sara (Maxim Roy) acorda com o telefone tocando Trata-se de seu marido Josh (Jeremy Sisto), que esté em viagem de negócios e precisa de um cartão com um número de telefone, que estaria em uma das gavetas da cômoda do quarto. Só que tem um detalhe: Sara não está em sua cada e sim na de um amante. Enquanto tenta enrolar o marido com perguntas sobre como estaria tudo em Wichita, a cidade do Kansas, a protagonista se esforça em correr até a sua residência para ajudar o marido - e também tentar salvar o casamento! A corrida contra o relógio dura alguns quarteirões, até o momento em que Sara chega a casa e, bom, há na sequência uma boa reviravolta, nessa pequena joia disponível na plataforma Filme Filme. Rápido e recompensador!

Tesouros Cinéfilos - Orgulho e Esperança (Pride)

De: Matthew Warchus. Com Ben Schnetzer, Imelda Staunton, Bill Nighy e Dominic West. Comédia / Drama, França / Reino Unido, 2014, 119 minutos.

Vamos combinar, que filme bem agradável de se assistir esse Orgulho e Esperança (Pride) - um daqueles achados que estão meio perdidos lá na Mubi e que merecem ser descobertos. Trata-se de um feel good movie que mistura temáticas políticas e sociais com uma abordagem sobre respeito às diferenças, o que resulta em um inesperado acerto. Aliás, talvez se fosse uma obra que pesasse um pouco mais a mãe e ela não caísse tanto nas graças do público. Na trama retornamos para o Reino Unido nos anos 80, período de grande turbulência, onde os efeitos devastadores da política antiestatizante e de austeridade da primeira ministra Margaret Thatcher resultariam na maior greve de mineiros da Inglaterra - dois terços dos trabalhadores paralisaram as operações em protesto contra o governo. Os prejuízos foram enormes, com demissões em massa, privatizações, perdas de direitos e o desmantelamento de comunidades inteiras de operários.

A despeito desse recorte mais pesado da história do País europeu, na obra do diretor Matthew Warchus temos um extrato mais episódico do todo e que envolve um grupo de ativistas gays e lésbicas que resolvem aproveitar o Dia do Orgulho LGBT de Londres para se associar, de forma quase involuntária, à pauta dos grevistas, arrecadando fundos para as famílias de mineiros. A intenção nobríssima, visa chamar a atenção para a causa dos trabalhadores, enquanto também levantam as suas bandeiras na luta por direitos iguais à de qualquer outro cidadão. Só que aí reside um probleminha: quando a pauta começa a ganhar certa força e os primeiros valores começam a ser repassados a União Nacional dos Trabalhadores de Minas (NUM) será necessário lidar com o preconceito que envolve o outro lado, que parece meio desconfortável com a situação. Especialmente quando os ativistas LGBT resolvem ir até uma pequena comunidade no País de Gales na intenção de efetuar as doações pessoalmente.



E é óbvio que será justamente desse choque cultural meio inesperado, que resultará uma grande fábula sobre amizade, aceitação e empatia. Se de um lado os habitantes de uma localidade mais fechada, conservadora, com sua rotina pautada pelo trabalho e pela religião, não parecem muito abertos a receber um coletivo tão mais purpurinado, colorido, leve e extrovertido, não demorará para que ambos os grupos percebam que precisam mais uns dos outros do que imaginam e que, ao cabo, há uma causa maior pela qual todos brigam. Trabalhadores e homossexuais (e os dois juntos, claro) são, nesse caso, desprezados por um governo que ignora suas reinvindicações. E sem a junção de forças será quase impossível o enfrentamento de questões que podem ter impactos em ambos os lados. Nesse sentido, a caminhada de entendimento de todos, meio aos trancos e barrancos, será não menos do que irresistível, com sequências capazes de nos divertir e nos emocionar em igual medida.

Sim, em alguns momentos pode até parecer meio bobinho e "fácil" demais - há menos espaço pra disputas com as forças policiais do governo e mais para o cinismo de parte a parte, em meio as tentativas persistentes de gays e lésbicas de firmarem a sua agenda junto aos mineiros. Só que o lado bom disso é o de que conseguimos sorrir, sem perder de vista a urgência da importância do tipo de discussão a que obra se propõe. O que envolve deixar as diferenças de lado na hora de debater o que realmente importa. Com um grupo de atores maravilhosos e carismáticos - de Bill Nighy, passando por Imelda Staunton e Dominic West, até chegar a Andrew Scott e George MacKay -, o filme é uma daquelas experiências afetuosas sobre solidariedade e superação de dificuldades. Algo que, em tempos tão brutos, de preconceitos diversos, de ódio e de intolerância como os que vivemos, não deixa de ser um belo respiro. Vai na fé. Será impossível não sorrir ao final.


segunda-feira, 6 de junho de 2022

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - A Bela e os Cães (Tunísia)

 De: Kaouther Ben Hania. Com Mariam Alferjani, Ghanen Zrelly e Anissa Daoud. Drama, Tunísia / França / Líbano / Noruega / Qatar / Suécia / Suiça, 2017, 100 minutos.

Um estupro aparentemente cometido por policiais. Esse é o ponto de partida de uma madrugada em que Mariam (Mariam Alferjani), a protagonista de A Bela e os Cães (Aala Kaf Ifrit) - filme tunisiano disponível no Mubi -, sofrerá um sem fim de abusos físicos e psicológicos enquanto se esforça em denunciar a violência sofrida. Afinal de contas, como que se denuncia um abuso que é cometido justamente por aqueles que deveriam defender o cidadão? Sim, unidades de polícia criminosas, corruptas, violentas não parecem ser exclusividade do Brasil e, em países ainda mais misóginos, machistas e patriarcais como a Tunísia, todo esse contexto parece ser ampliado. A dificuldade geral em relatar um crime sexual vai do hospital, passando pela delegacia até chegar à esfera privada, onde uma mulher violada ainda corre o risco, como consequência, de ser considerada impura, marginalizada (especialmente em nacionalidades em que o fanatismo religioso impera).

Filmada quase como se fosse um grande plano sequência, a obra da diretora Kaouther Ben Hania - do recente (e ótimo) O Homem que Vendeu Sua Pele (2020) - assume um caráter propositalmente documental, inserindo o espectador como uma espécie de observador a se deparar com a completa sensação de abandono vivida por Mariam. Tudo começa em uma festa, onde a jovem está curtindo uma noite com as amigas - com direito a socorro de uma delas para uma troca de vestido já que o outro rasgou em um "acidente" na boate (aliás, o tipo de detalhe que funciona como uma espécie de rima visual perfeita sobre a temática do filme). Mais adiante, a protagonista conhece Yousseff (Ghanen Zrelly), se interessando pelo sujeito. Quando ocorre um corte do primeiro para o segundo ato - de nove no total -, Mariam já surge desesperada, fugindo de algo muito traumático que parece ter ocorrido. E é aí que uma verdadeira via crúcis em busca de justiça tem início.

Realista ao abordar a sensação de abandono social em episódios do tipo, o filme nos conduz inicialmente ao hospital onde, em vão, Mariam e Yousseff se empenham em obter algum tipo de atestado, um documento qualquer, que possa ser a comprovação de que ela foi violada. O que permitiria dar encaminhamento a um boletim de ocorrência com mais informações. No hospital as perguntas e respostas de médicos e enfermeiros variam de "mas ela está mesmo doente?" a "isso eu não tenho como tratar por não ser algo da minha alçada". Na delegacia, tudo se torna ainda pior, mais agressivo, mais torpe, mais revoltante, com os "homens da lei" agindo como figuras debochadas, cínicas, que colocam o tempo todo em dúvida as denúncias citadas por Mariam. As provocações chegam a Yousseff que reage e acaba sendo preso por desacato. "Esse cara não deveria estar lá pra te proteger?", questiona um policial - o mesmo que, mais tarde, verbalizará o inevitável "mas também com essa roupa, como você acha que não vai ser estuprada?", no mais famoso argumento de culpabilização da vítima que conhecemos.

Dolorida, a experiência evidencia a completa falta de justiça em episódios do tipo. Tudo é filmado de forma urgente, com uma câmera meio trepidante, próxima dos envolvidos, o que amplia a sensação de incômodo generalizado. Em uma das tantas cenas chocantes, a jovem praticamente implora que a polícia não telefone para o seu pai, o que tornaria tudo pior. Sim, em um episódio envolvendo um estupro, a protagonista não encontrará amparo na própria família que, em uma sociedade fechada, conservadora, provavelmente concordará com a justiça a respeito de supostas roupas inadequadas, comportamentos sexualizadas ou atitudes depravadas. Afinal, onde já se viu a mulher ser dona do próprio corpo né? Decidir como quer agir, pensar, vestir? Isso me fez lembrar do famoso episódio em que o Rodrigo Constantino, esse projeto mal acabado de articulista político, afirmou que castigaria a própria filha se ela chegasse em casa denunciando um estupro (Constantino se referia ao famoso caso Mari Ferrer). Esse é o tipo de coisa que faz com que percebamos que, em tempos de Bolsonaro, o Brasil não está assim tão distante da Tunísia.

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Pitaquinho Musical - Alfie Templeman (Mellow Moon)

Muitas vezes subestimada, a capacidade de fazer música pop acessível, de qualidade, que combine boas melodias com alguma dose de inventividade, não é tarefa para qualquer mortal. Então, vá lá, nem todo novo artista por aí precisa ser tão virtuoso para se tornar a próxima sensação: basta oxigenar aquilo que já existe, recombinar elementos, dialogar com o público, trafegar com facilidade por estilos. E este é justamente o caso de Alfie Templeman que, com seu Mellow Moon, lança seguramente um dos discos do ano. Tudo aqui é incrivelmente bem equilibrado, mesclando um certo refinamento que vai no limite da música alternativa bem polida, com uma maturidade instrumental e vocal que é não menos do que surpreendente para alguém de apenas 19 anos. Sim, 19 anos!


Escolher uma música que represente tão bem essa verdadeira coletânea de gemas sonoras que ecoam, aqui e ali, R&B, synthpop, rock setentista e outros gêneros é uma tarefa quase inglória. Talvez um bom exemplo de exercício de criatividade no meio disso tudo seja a própria faixa-título, que possui tecladinho psicodélico, letrinha agridoce (Você quer ficar aqui para sempre? / Saia do seu trabalho e nós podemos fazer o que for / Claro é melhor do que olhar para o teto) e um refrão totalmente espacial, daqueles que gruda de primeira. Mas a melhor dica é pegar o fone de ouvido, abrir as letras e curtir. Se você ouvir 3D Feelings, A Western, Colour Me Blue e especialmente, o megahit Broken - talvez a melhor canção do ano -, e NÃO GOSTAR, eu juro que devolvo o "dinheiro".


Tesouros Cinéfilos - O Doce Amanhã (The Sweet Hereafter)

De: Atom Egoyan. Com Sarah Polley, Ian Holm, Alberta Watson, Bruce Greenwood e Simon Baker. Drama, Canadá, 1997, 112 minutos.

Mais de uma vez durante o transcorrer de O Doce Amanhã (The Sweet Hereafter), gélido filme do diretor Atom Egoyan, Nicole (Sarah Polley) realiza leituras do poema O Flautista de Hamelin. Escrito por Robert Browning em 1842, o texto remonta à Idade Média e conta a história de um gaiteiro de roupas coloridas, que é contratado por uma cidade para atrair ratos com seu cachimbo mágico. Só que quando os cidadãos se recusam a pagar pelo serviço de desinfestação, ele se vinga da cidade usando o seu poder mágico contra os seus filhos - atraindo-os assim para longe. Nesse contexto apenas uma das crianças não consegue acompanhar o cortejo: ela é manca. Nicole, que lê e relê a fábula para os filhos de Billy (Bruce Greenwood) é a única sobrevivente de um grave acidente com um ônibus escolar, que tirou a vida de 14 crianças de uma pequena cidade do interior do Canadá. Ela está em uma cadeira de rodas. E talvez não queira acompanhar os "ratos" que desejam dela uma vingança diante do ocorrido.

Por ratos leia-se, na realidade, o advogado Mitchell Stephens (Ian Holm), que parece ver na tragédia uma grande oportunidade de processar os responsáveis - e faturar uma boa grana. As intenções dele parecem nobres. Mas será? A cidade que ele encontra após o acidente parece meio paralisada, estática, entorpecida com a dor. Seus moradores mal se movimentam, agem com discrição. Há algo que parece estar pairando o tempo todo sobre aquela comunidade - algo que está escondido, submerso. Segredos? Questões sem uma resposta clara? A incerteza e a letargia surgem em cada canto, em cada encosta coberta pela neve, em cada estrada vazia e solitária percorrida. Há um frio generalizado e dolorido que parece saltar o tempo todo da tela. As pessoas estão enlutadas e talvez cansadas. O jurista realiza o seu périplo em busca de interessados em entrar com uma ação. Contra qualquer um: o departamento de transportes, a fabricante do ônibus, a própria motorista. É tudo sutil, mas ao mesmo tempo turbulento.

A primeira parada do protagonista é na casa dos donos do motel local Wendell (Maury Chaykin) e Risa (Alberta Watson) que recebem o sujeito meio à contragosto. Perguntados sobre os demais moradores, o casal - que mais briga do que dialoga - parece incapaz de falar qualquer coisa de positivo dos demais habitantes. Um é um beberrão, outra age como uma prostituta, um terceiro é um picareta, drogado ou hippie. Há feridas abertas entre todos ali, o que vai evidenciando aos poucos que, por baixo do véu branco de um coletivo de famílias que busca se reerguer, reside um sem fim de ressentimentos, que tornarão complicada qualquer ação mais coletiva. Não demora para que outros segredos venham à tona: Risa, por exemplo, trai o seu marido com Billy. Já Nicole, postulante a cantora country parece ter uma relação quase incestuosa com seu pai Sam (Tom McCamus). A hipocrisia anda em toda a parte, em cada curva, prestes a sair da estrada. Como um ônibus desgovernado.

Ganhador do Prêmio Especial do Júri de Cannes em 1997 e indicado a dois Oscar, O Doce Amanhã é, atualmente, uma obra que divide opiniões. Há quem considere o estilo melodramático meio datado e a ambientação geral meio brega. De minha parte considero que o filme de Egoyan funciona muito mais como uma experiência sensorial do que necessariamente como um filme de tribunal, com advogados indo até as últimas consequências em processos. Nesse sentido há que se considerar as escolhas técnicas bastante sofisticadas para um filme do final dos anos 90 - suas tomadas aéreas amplas, os planos gerais que acompanham o ônibus, a trilha sonora comovente, a fotografia esbranquiçada e paralisante. É, ao cabo, um drama triste que nos evoca para que prestemos atenção aos detalhes, ao que está nos cantos, àquilo que talvez não seja tão óbvio. Decifrar o final talvez não seja tão simples: mas para uma comunidade que convive com a dor, a expiação do luto já será castigo suficiente.