segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Tesouros Cinéfilos - Amores Brutos (Amores Perros)

De: Alejandro González Iñarritu. Com Gael Garcia Bernal, Goya Toledo, Vanessa Bauche, Emilio Echevarria e Gustavo Sánchez Parra. Drama, México, 2000, 153 minutos.

Foi com um estilo vigoroso, fruto de um cinema pulsante, que o mexicano Alejandro González Iñarritu nos apresentou, em sua estreia, a sua visão de um mundo violento, bruto, individualista e de uma sociedade que parece permanentemente no limite do conflito. Amores Brutos (Amores Perros) também inaugurou aquele modelo que se repetiria em alguns de seus filmes seguintes - antes do sucesso em Hollywood com Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) (2014) e O Regresso (2015): o do roteiro com histórias distintas que se cruzam para formar um painel maior a partir de um pequeno recorte do microcosmo social. A questão dos "cachorros" do título original não é por acaso: nas três narrativas que se intercalam, o animal surge praticamente como uma figura central, guiando às personagens em suas mais diversas decisões, o que também modificará suas vidas, suas rotinas, gerando conflito, caos, desordem.

A primeira das três histórias é também a melhor: nela, o jovem Octavio (Gael Garcia Bernal) tem um caso com Susana (Vanessa Bauche), a mulher do irmão - com quem vive as turras -, ao mesmo tempo em que inscreve o corpulento (e premiado) cachorro Cofi para participar de rinhas clandestinas de cães. A ideia, nesse esquema, é juntar dinheiro para fugir com a cunhada, livrando-a do irmão violento. A segunda história migra para o universo das classes mais abastadas, contando a história da modelo Vanessa (Goya Toledo), que vive um casamento midiático de aparências e sofre um acidente que lhe deixa em uma cadeira de rodas. Em seu apartamento recém mobiliado, acaba "perdendo" o seu cachorro em uma espécie de buraco existente no piso: sem possibilidade de resgatá-lo, ainda sofre com o choro angustiante do animal, incapaz de livrar-se da armadilha, em um tipo de narrativa que, curiosamente, se torna claustrofóbica, sufocante.


A última história, é também a mais misteriosa: nela o ex-guerrilheiro comunista El Chivo (Emilio Echevarria) atua como matador de aluguel, após uma temporada na prisão. Como morador de rua, possui vários cães que lhe acompanham. Já no começo do filme, entra em conflito com um grupo que participa das rinhas de galo. A história evoluirá para o acidente que deixará Vanessa impossibilitada de seguir sua carreira profissional e que, no fim das contas também envolve Octavio e o próprio Chivo, que resgatará um Cofi a beira da morte. Utilizando a estrutura do roteiro e montagem dinâmica, Iñarritu construirá um filme em que traições, brigas, sangue e vísceras se desnovelarão em cadeia, mostrando o que de pior pode haver em uma sociedade em desequilíbrio, em que a felicidade depende exclusivamente da beleza e do dinheiro e em que as pessoas não hesitarão em utilizar a violência para alcançar aquilo que desejam. Nessas horas não haverá família, mãe, filhos ou o que quer que seja na frente: haverá apenas a cegueira da busca dos objetivos, custe o que custar.

Nesse sentido, a obra pode até soar um pouco dura e não tão adequada para todos os paladares. Com cachorros sofrendo as mais variadas violências, o filme teve de contar com letreiros que indicavam que nenhum cão havia se ferido nas gravações, tamanho o realismo empregado. E se a câmera do diretor é eventualmente urgente, quase em estilo documental, há que se saudar a organização do roteiro, que vai desvendando aos poucos os "segredos" de cada um daqueles que assistimos. Não há mocinhos e bandidos, afinal: Octavio parece estar fazendo o bem, mas... a que custo? E o que dizer do "bem-feitor" de Vanessa, Daniel (Álvaro Guerrero), que abandona a família pelo sonho de um casamento estrelado? El Chivo tentará representar a redenção em todo esse espectro: mas ele também tem fantasmas dentro do armário e dores difíceis de serem curadas. Vencedor do prêmio da Seamana dos Críticos, em Cannes, o filme foi uma bela porta de entrada para um dos mais respeitados diretores da atualidade - inclusive nos Estados Unidos. O que, certamente, não é pouco.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Podcast do Picanha Cultural #18 - 10 Filmes Para Amar Alfred Hitchcock

O clássico Psicose (Psycho) completou 60 anos de lançamento nesta semana, então a gente considerou esta a desculpa ideal para fazer um "mergulho" na obra de Alfred Hitchcock. Aliás, o Mestre costuma ser uma ótima porta de entrada para quem pretende se familiarizar com os filmes mais antigos, em preto e branco, com menos efeitos especiais e foco em muitas outras virtudes técnicas e narrativas. Hitchcock lançou mais de 50 filmes em sua longa carreira, mas aqui a gente fala só da nata: aquelas obras que são imperdíveis pra qualquer cinéfilo! Pra nos ajudar na tarefa, recrutamos a professora Rosane Cardoso, uma outra MESTRE em nossas vidas e que tem vasta experiência universitária em campos relacionados à Literatura - ela é doutora em Teoria Literária -, Artes, Mídias e Produção Cultural. De Rebecca - A Mulher Inesquecível (1940) à Os Pássaros (1963), passando por Um Corpo Que Cai (1958), a discussão rendeu. E seguirá rendendo, com a participação de vocês, nos dizendo quais os favoritos do Hitch. Bora sextar?


Novidades no Now/VOD - A Química Que Há Entre Nós (Chemical Hearts)

De Richard Tanne. Com Lili Reinhart, Austin Abrams, Adhir Kalya e Bruce Altman. Drama / Romance, EUA, 2020, 93 minutos.

Todos nós sabemos que relacionamento não é uma ciência exata, afinal de contas são muitas as variáveis para que as coisas possam sair a contento. E, bom, filmes dispostos a discutir essas temáticas existem a rodo - especialmente no nicho do "melodrama de adolescente problemático que precisa superar traumas antes de encarar, de fato, a vida adulta". Mas sabe que A Química Que Há Entre Nós (Chemical Hearts) funciona direitinho? Inclusive eu me identifiquei com as personagens, mesmo já fazendo umas duas dezenas de anos que eu não estou mais na adolescência. A trama segue o padrão da história do garoto introspectivo, não necessariamente antissocial, mas que tem dificuldades de se relacionar com o sexo oposto - ou, vá lá, se apaixonar. E a oportunidade para que as coisas mudem de figura acontece quando o jovem consegue uma vaga de editor do jornalzinho do Ensino Médio, ocasião em que ele conhecerá uma moça tão fechada (e misteriosa) quanto ele.

Sim, eu sei que vocês já devem estar com ranço só de ter lido essa premissa, porque a quantidade de filmes aborrecentes - com jovens da classe média empilhando dramas -, parece não ter fim. Mas esse aqui, ao menos aparentemente, não ataca tanto a nossa inteligência. Ele é um pouco mais realista no retrato dessa etapa da vida que todos nós passamos, com todas as inseguranças de quem ainda não sabe como será a vida adulta, ao mesmo tempo em que abandona a inocência da infância. Aliás, a obra do jovem diretor Richard Tanne se apropria de alguns aspectos da ciência para identificar aquele período da vida - que talvez vá dos, sei lá, 14 aos 20 anos - como uma espécie de limbo juvenil existencial. "Quando você é adolescente, as substâncias do seu cérebro fazem você tomar decisões que o afastam da segurança da infância e o arrastam para a loucura da vida adulta. Alguém disse certa vez que um adulto é uma criança sortuda que sobreviveu ao limbo da adolescência e da melancolia da juventude", filosofa em certa altura o protagonista Henry Page (Austin Abrams).


Henry é o jovem reflexivo (e bastante romântico), que se apaixona pela misteriosa Grace (Lili Reinhart), que será sua colega de jornal. Se vendo todos os dias eles se aproximarão de uma forma meio torta, o que fará vir à tona uma série de feridas relativas ao passado, que tornarão o relacionamento como uma equação um pouco mais difícil de resolver. Pode parecer bobo e previsível, mas as surpresas da história são entregues em doses homeopáticas, o que nos permite digerir melhor as informações. Fora o fato de que tudo é construído utilizando com inteligência as convenções do gênero ou mesmo as metáforas. Há, por exemplo, a citação a um poema de Pablo Neruda sobre amar alguém não apenas por suas qualidades, mas também por seus defeitos. Também há o curioso hobby de Henry, que reforma vasos quebrados, pintando-os depois, dando a eles uma nova cara, um novo sentido. São fatos cotidianos que dialogam com o tipo de relacionamento que assistimos em tela: meio quebrado, que persiste, que luta para "juntar seus cacos", teimando em amar como num poema do escritor chileno.

E há ainda a completa quebra dos clichês do gênero - e são várias. Começa pelos pais de Henry, um casal amável, amoroso, dedicado (e que se ama também). A irmã do jovem lhe ajuda, jamais se apresentando como o contraponto vilanesco. O protagonista tem amigos, não é um sujeito solitário. Só que gosta de escrever, aprecia as artes, é mais "inábil" socialmente. Se ele será feliz? Se Grace será feliz? Talvez sim. Talvez não. Sofrerão, recolherão cacos, tentarão de novo. Como qualquer pessoa, afinal. O cinema costuma nos brindar com fantásticas histórias de amor que servem para nos renovar as esperanças, para nos fazer sorrir, sonhar. Esse aqui funciona mais como um tapão (metafórico) dado na cara, que é pra te fazer lembrar que, sim, com 17 anos você vai sofrer. Vai sofrer pra caramba. E ainda mais um pouco. E vai ter pensamentos ruins e apertos no peito e ansiedade. Mas as coisas vão passar. E se iluminar, provavelmente. Mesmo que demore. O filme faz essa construção de contexto de forma belíssima. E ainda tem uma trilha sonora - de nomes como The xx, Perfume Genius e Beach House - que é a cereja do bolo. Eu, se fosse você, daria uma chance. Vale a pena.

Nota: 8,0

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Mal dos Trópicos (Tailândia)

De: Apichatpong Weerasethakul. Com Banlop Lomnoi e Sakda Kaewbuadee. Drama / Fantasia, Tailândia / França / Itália / Alemanha, 2004, 118 minutos.

Cinema hermético, cheio de simbolismos, que exigem do espectador não apenas uma dose a mais de atenção, mas também uma ampla capacidade de abstração, a obra do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul costuma se caracterizar também pela fuga das convenções, como comprovam os premiados Tio Boonme, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010) e Cemitério do Esplendor (2015). E, bom, por mais que de alguma forma possamos afirmar que Mal dos Trópicos (Sud Pralad) vá mais "direto ao ponto", isso não significa necessariamente um cinema óbvio ou mais palatável. Na realidade é preciso um pouco de paciência para digerir um pouco melhor aquilo que pretende o realizador - sinônimo de cinema de qualidade na Tailândia. Trata-se, como habitual, de um filme de justaposições e de contrastes, capaz de colocar em lados opostos (ainda que unidos) a civilidade e a selvageria, o urbano e o rural, o sol e chuva, o movimento e a contemplação e, até, vá lá, a tristeza e a felicidade.

Pra falar a verdade é uma experiência sempre prazerosa assistir a qualquer filme do tailandês, já que ele nos joga em um outro lugar que não é o nosso. Nos arremessa em outra cultura em que o misticismo, o folclore, as lendas e a religião encontram o mundano, o palpável, o cotidiano. Tudo plasticamente bem construído, com trilha sonora, fotografia esmaecida e belas paisagens, evocando sentimentos diversos, que se misturam com os mesmos sentimentos daqueles que assistimos em tela. No caso de Mal dos Trópicos a trama também é ousada, daquelas que desafia as sociedades mais fechadas a enxergarem para além das bordas, para além das convenções. Nela somos apresentados ao soldado Keng (Banlop Lomnoi) e ao jovem trabalhador rural Tong (Sakda Kaewbuadee) que, em meio a atividades cotidianas prosaicas - uma ida ao cinema, um jogo de futebol, uns minutos na lan house, reuniões na casa da família de Tong - fazem mais do que uma simples "amizade". A gente não demora a perceber que o que tem ali é amor mesmo.


Na realidade a primeira parte do filme funciona quase como se fosse uma bela colagem da vida em "casal" - um casal discreto, em uma sociedade fechada. Há cenas divertidas como aquela envolvendo uma cantora brega em algum barzinho aleatório de Bangkok e outras mais sérias, como a ida ao veterinário para tratar do cachorro de Tong. Tudo costurado por sequências que mostram soldados a campo, o trabalho, a rotina, o ônibus, a luta cotidiana. Já a segunda parte já tem se tornado quase uma tradição de Weerasethakul: ao narrar a história de um monstro da floresta que pode se transformar em qualquer criatura, atraindo-a para a mata, o diretor insere as formidáveis lendas locais (quase fantasmagóricas, sufocantes) como alternativas para uma vida possível, de escolha, em que a natureza encontra o mundano, reequilibrando-o. É tudo ao mesmo tempo silencioso e instigante, levando o espectador até o limite da angústia diante de uma verdadeira caçada mata adentro.

Vencedor do Grande Prêmio do Juri no Festival de Cannes daquele ano - além de outras premiações -, a obra consolidaria o diretor tailandês como um dos principais nomes de sua geração, o que geraria burburinho em relação à produção do País asiático e de outros diretores, como Yongyoot Thongkongtoon (autor do badalado Best Of Times). Saudado pelos críticos - e também odiado, como é o caso do crítico Pablo Villaça que chegou a falar sobre Tio Boonme, de que se tratava de uma "obra vazia em seu centro, como se buscasse se beneficiar justamente de sua falta de conteúdo" -, o diretor utiliza o audiovisual em seu favor, construindo narrativas experimentais, nunca óbvias, mas sempre envolventes. É um cinema que, em seu cerne, pode parecer complexo demais. Mas no fim das contas está falando de temas caros a todos nós, caso das crenças, da natureza e do amor.

Novidades em Streaming - The Killers (Disco)

Antes de falar do novo disco do The Killers, já vamos deixar combinado de saída: o único álbum realmente abaixo da média lançado pela banda de Las Vegas é o horroroso Battle Born, de 2012. Nos demais registros o pop oitentista de arena, com algumas dúzias de sintetizadores e aquele estilinho retrô/cool/sofisticado meio guitarreiro, foi o que nos fez amar canções variadas como Mr. Brightside, When You Were Young, Bones, This Is Your Life e Spaceman. Então, bom, não caia naquele papinho que talvez possa rolar de que Imploding The Mirage representa algum tipo de retorno às origens de Brandon Flowers e companhia por que, bom, nada mudou efetivamente no que diz respeito às melodias incandescentes, festivas. O que para os fãs é uma baita notícia! Mais experiente, a banda atualiza seu modus operandi - e suas letras, mais maduras -, conferindo personalidade até em canções que parecem claramente "surrupiadas" de outras épocas - caso por exemplo de Fire In Bone, que não faria feio num álbum como Lodger, do David Bowie. No mais é o Killers de sempre, que aprendemos a amar em 2004 e que, mais de quinze anos depois, seguimos amando como se a paixão estivesse apenas começando. Manda mais que tá pouco. Melhores faixas: Blowback, Fire In Bone e Caution.


terça-feira, 25 de agosto de 2020

Lasquinha do Bernardo - As Respostas Não Estão em Paris

Há sempre um desejo profundo escondido nos melhores sonhos e nas mais delirantes fantasias de sua alma. Dedicar-se a um instrumento, cuidar melhor da saúde, ter independência financeira, viajar pelo mundo, manter um cronograma comprometido de estudos ou até mesmo escrever um livro. É um enredo bastante comum e muito particular, a insatisfação com a realidade faz com que busquemos aquilo que um dia foi, ou continua sendo, nossa grande paixão. Contudo, acabamos esbarrando nos problemas mais comuns de uma vida ordinária, não temos tempo, não temos dinheiro, não temos algum conhecimento prévio necessário e, acima de tudo, não temos coragem para mudar ou reorganizar a rotina.

O cinema é uma fábrica redentora de desejos frustrados. Quase sempre os mais clichês possíveis, como o músico que sonha em ser um rock/pop star e é descoberto pelo produtor que passa pelas acinzentadas ruas de Londres, o artista plástico incompreendido pelo vulgo que é um sucesso depois de morto, o mochileiro solitário em busca de autoconhecimento (sempre na europa, afinal somente lá podemos encontrar a verdadeira cultura e filosofia) que vivencia o amor da sua vida e, claro, o ávido leitor classe média que sonha em escrever um clássico da literatura universal. Confesso que, sendo professor de literatura e produtor de conteúdo dedicado aos livros, muitas vezes me vi fantasiando uma grande palestra ou uma sessão de autógrafos na Feira do Livro de Porto Alegre, ao lado de grandes mestres da estirpe de Charles Kiefer, Luis Fernando Veríssimo, Milton Hatoum e Altair Martins, para ficar apenas nas “possibilidades reais” da vida. Enquanto isso, aqueles contos e poemas inacabados que - talvez - um dia se convertam em uma edição continuam escondidos e muito bem guardados nas gavetas virtuais do computador.


É comum desejarmos o nosso “Meia-Noite em Paris” particular, aquele momento em que os astros e os signos se alinham e o universo conspira para nossa felicidade, nos presenteando com as respostas mais reveladoras e com os mais didáticos acontecimentos, uma espécie de vida em modo tutorial, tão fácil, tão simples….e totalmente irreal. O filme de Woody Allen, ganhador do Oscar de Melhor Roteiro Original em 2012, é belíssimo ao apresentar a romântica, atual e nostálgica, Paris que, convenhamos, é cenário perfeito para qualquer obra, seja na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê. Gil Pender (Owen Wilson) é um roteirista de sucesso em busca de inspiração para finalizar o seu romance e que, amarrado junto à família de sua noiva Inez (Rachel McAdams), não consegue desenvolver sua escrita, não consegue encontrar a sua voz. Sobra dinheiro, sobra tempo, sobra técnica, mas lhe falta coragem. E nós, muito distantes do protagonista do filme, ficamos frustrados quando reconhecemos que Hemingway em pessoa não vai nos dar uma dica preciosa, nos mostrar uma técnica narrativa surpreendente. Pensamos em desistir quando percebemos que Salvador Dalí não vai nos convidar para saborear um bom vinho tinto e destilar toda sua genialidade em nosso favor.

Deixo aqui as epifanias hollywoodianas de lado para a necessidade de escrever o óbvio: as respostas não estão na astrologia, no acaso ou em Paris. A inspiração não é um objeto, mas um estado. Não é preciso sair em busca de um cálice sagrado, ou melhor, saia, procure, mas atente ao percurso. Estamos sempre tão focados em algum tipo de prêmio e esquecemos que o processo mais revelador e surpreendente é permitir-se vivenciar as experiências, liberando um espaço interno da nossa mente e coração. A vida real pode ser a prática mais inspiradora possível e as respostas estão nas suas dores, alegrias, vitórias e derrotas. Na teoria é bem mais fácil, há que se admitir, mas você pode estar em Londres, Berlim, Budapeste, em Roma ou Pequim, quase casado com a Rachel McAdams e ainda estar insatisfeito.


Jesse e Céline (Ethan Hawke e Julie Delpy) ou "o melhor casal da história do cinema", em “Antes da Meia-Noite”, percebem que a realidade, mesmo que dura, é melhor do que o mais improvável sonho de verão. Imagine você que Viena, Paris, Nova Iorque e Atenas não foram o bastante. A inspiração está em um táxi, em passeio durante a tarde, em uma mesinha de bar, na própria relação, nos seus filhos, em uma música ou em um filme de Woody Allen num sábado qualquer.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Novidades no Now/VOD - Emma (Emma)

De: Autumn de Wilde. Com Anya Taylor-Joy, Mia Goth, Bill Nighy, Johnny Flynn, Callum Turner e Amber Anderson. Romance / Época, Reino Unido, 2020, 124 minutos.

Normalmente ocorre um efeito meio curioso quando assisto um filme de época: costumo achar que não vou gostar da experiência e, quase invariavelmente, eu gosto. Penso que filmes como esses, guardadas todas as proporções e diferenças de estilo, são mais ou menos como as distopias científicas: nos jogam para um outro tempo - nesse caso o passado, no caso das ficções, o futuro -, para refletir TAMBÉM sobre os nossos dias, sobre a atualidade. Nos filmes de época, por exemplo, a aristocracia ou as classes mais abastadas costumam ser retratadas como um coletivo de pessoas fúteis, individualistas, que vivem uma existência de aparências e de ambições sociais. Nas ficções científicas muitas vezes se sobressaem preconceitos, xenofobia e racismo em um cenário de caos e de contrastes sociais gritantes. Nos dois casos, há diferença para os dias de hoje? A burguesia não segue sendo frívola e vaidosa? Aqueles que se consideram superiores, não seguem com a sua caçada de "replicantes" ou daquilo que não é padrão?

Bom, com Emma (Emma) não é diferente: é o filme de época na tradição do estilo. Baseado em um livro da escritora Jane Austen, que já havia sido filmado anteriormente, em 1996 (uma película não tão boa, mas com ótimo elenco de nomes como Toni Collette e Gwyneth Paltrow), a obra reúne elementos tradicionais do formato - da burguesia tosca e arrogante, passando pelos belos cenários e figurinos, até chegar aos diálogos corrosivos e degradantes. Na trama, temos uma jovem riquinha, linda, de bons modos - a Emma do título (vivida por Anya Taylor-Joy) -, que, após "perder" a sua dama de companhia (Gemma Whelan) que se casará com um viúvo (Rupert Graves), resolve encarnar a "casamenteira", juntando pares, aproximando e afastando pessoas, manipulando comportamentos. Acreditando ser a cupida ideal para a jovem Harriet Smith (a ótima Mia Goth), ela acaba transformando a moça em uma simples distração: intervém nos seus sentimentos, a controla e a induz, inclusive, a cometer erros no campo amoroso.


O caso é que Emma é uma solteira convicta: e parece determinada a tomar decisões por outras pessoas que trafegam pelos jardins e pelos castelos da aristocracia. Orgulhosa, não concebe a ideia de formar par com aqueles que não estejam no mesmo extrato social. E tenta influenciar figuras como Harriet a fazer o mesmo, ignorando completamente o fato de que, sim, podem haver outros valores para além da beleza ou da conta bancária a serem levados em conta na equação que resultará em um possível matrimônio. Seu confidente, um certo Sr. Knightley (Johnny Flynn) tenta fazer de tudo para que ela perceba isso. Mas a sua arrogância cega e o seu comportamento fútil parecem estar sempre no limite de lhe levar a ruína. Sensação ampliada pelo ciúme quase doentio que ela sente pela jovem Jane Fairfax (Amber Anderson), moça de família humilde e pela paixão pouco correspondida pelo empolado Frank Churchill (Callum Turner). O que, no fim das contas forma o combo que é um verdadeiro convite para que as coisas saiam errado.

Trata-se, no fim das contas, de uma obra que alterna momentos mais leves ou graciosos, com outros em que a emoção fala mais alto. Do ponto de vista técnico a obra da diretora estreante Autumn de Wilde é um primor - e eu até me surpreendi um pouco pelo fato de ela ter sido completamente esnobada em categorias como Desenho de Produção e, especialmente, Figurino, no último Oscar. É tudo muito exuberante. Os ambientes, tanto externos, quando internos, são suntuosos, imponentes, dando conta da condição de riqueza bruxuleante com que aqueles pessoas convivem (e conviviam) à época - o que talvez explique o deslumbramento e a pompa. De roupas, de penteados, de objetos cênicos, de decorações. De gastronomia, claro! O senso de humor que parece debochar o tempo todo desse ambiente aristocraticamente alienante - as "coreografias", caras e bocas dos serviçais são um achado -, dá conta da grande força da película: o de fazer a crítica a um tipo de existência em que somente o alpinismo social parece fazer sentido e em que pessoas sem muito dinheiro (ou mesmo com menos educação), são consideradas inferiores. Bom, os tempos não mudaram. Figuras dolorosas como Emma seguem existindo naquelas casas encasteladas dos bairros nobres de sua cidade. Manipulando, fofocando, interferindo. Pode ter certeza.

Nota: 8,0


sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Podcast do Picanha Cultural #17 - Pérolas da Netflix

Vamos combinar que a Netflix parece uma Biblioteca de Babel - nos moldes daquela pensada por Jorge Luis Borges no famoso conto do livro Ficções -, dada a quantidade quase infinita de produtos ofertados. Filmes, séries, talk shows, apresentações de stand up comedy, realities... o volume de material parece ser quase infinito, muitas vezes aleatório e, vamos combinar, nem sempre de qualidade. E "triar" também não é tarefa muito simples, já que o algoritmo parece longe de possui um mecanismo inteligente que, de fato, nos sugira aquilo que, efetivamente, queremos assistir. Bom, foi pensando nisso que resolvemos, o Bernardo, o Henrique e eu, fazer um episódio do Podcast do Picanha Cultural somente com as Pérolas da Netflix - aquele tipo e obra não tão conhecida que está pedindo para ser "descoberta". Divididas em cinco categorias - comédia, drama, suspense, ficção científica e cinema alternativo -, sugerimos um total de 15 filmes pra tornar o seu final de semana pandêmico e de frio no sofazão minimamente movimentado. Espero que vocês curtam o nosso sextou! Bora dar play?


Picanha em Série - After Life (Vocês Vão Ter Que Me Engolir)

Mais recente parceria do humorista britânico Ricky Gervais com a Netflix, a minissérie After Life - que recebeu no Brasil o horroroso subtítulo "Vocês vão ter que me engolir" - traz o criador da série The Office interpretando Tony, jornalista que, após perder a esposa vítima de câncer, vive um doloroso processo de luto onde a depressão decorrente torna sua existência - e das pessoas que o rodeiam - praticamente insuportável.

Quem conhece Gervais sabe que seu humor cáustico nem sempre é palatável, e não é surpresa ele usar um tema tão pesado para fazer suas piadas politicamente incorretas. No entanto, o que temos aqui é uma alta carga dramática com algumas pitadas de humor agridoce. Sim, há piadas que, não fosse a total liberdade dada pela Netflix a seu criador, jamais sairiam do papel - como aquela envolvendo uma criança, por exemplo. Já outras, envolvendo pessoas que fazem de tudo para "virar notícia" a serem publicadas no jornal da cidade, são absolutamente hilárias - e não cabe aqui revelá-las para não estragar parte do prazer em assistir à série.


Em episódios de vinte e poucos minutos somos apresentados a diversos personagens que, assim como nós, são influenciados pelo comportamento niilista e amargurado de Tony: o carteiro, o entregador de jornais viciado em drogas, uma "profissional do sexo", o pai portador de Alzheimer e a enfermeira que o cuida na casa geriátrica, seus colegas de trabalho, o chefe/cunhado, um terapeuta pouco convencional, o sobrinho, a viúva que sempre está no cemitério junto ao túmulo de seu marido, um homem com problemas mentais, dentre outros - galeria esta que me fez lembrar de filmes como Short Cuts e Magnólia, por exemplo. Mesmo não estando presente em "carne e osso", a personagem da esposa proporciona alguns dos momentos mais tocantes e divertidos da narrativa como, por exemplo, onde ela aparece em vídeo dando "instruções" para que o marido leve a vida adiante, e naqueles onde Tony aplica "pegadinhas" em sua amada - o que serve também para revelar o senso de humor peculiar do sujeito e também a relação entre os dois, algo importante para demonstrar a dimensão da perda e o porquê do mesmo tomar atitudes tão extremas e desesperadas.

Provavelmente o trabalho mais ambicioso de Gervais até o momento, After Life acerta o tom ao tratar de temas delicados e universais, demonstrando um enorme coração e muito carinho por seus vulneráveis personagens (muitos deles vivendo à margem da sociedade, diga-se). Quem segue o humorista pelas redes sabe de seu ativismo e seu apreço pelas pautas progressistas, o que certamente influencia no resultado e nas várias reflexões que, se por vezes parecem tropeçar em um sentimentalismo exagerado, na maior parte do tempo emocionam e instigam. Ademais, a trilha sonora que possui Elton John e Lou Reed - pra ficar só nestes dois - é boa pra caramba. Extrair gargalhadas e sorrisos das tragédias cotidianas é mais uma prova da importância do humor e da arte como catarse, tornando a existência algo menos doloroso para que, através da empatia, possamos cada um organizar a própria casa. E a partir disso, quem sabe, influenciar aqueles que estão ao redor.

  "A society grows great when old men plant trees, the shade of which they know they will never sit in."


quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Cine Baú - Rebecca, a Mulher Inesquecível (Rebecca)

De: Alfred Hitchcock. Com Joan Fontaine, Laurence Olivier, Judith Anderson, George Sanders e Florence Bates. Suspense, EUA, 1940, 130 minutos.

Único filme de Alfred Hitchcock a ganhar o Oscar em sua categoria máxima, Rebecca, a Mulher Inesquecível (Rebecca) pode não ter envelhecido tão bem em alguns de seus aspectos - especialmente no que diz respeito ao machismo de seu protagonista -, mas segue sendo um dos mais perturbadores suspenses do Mestre. Aliás, foi um belo cartão de visitas do diretor que, com a obra estrelada por Joan Fontaine e Laurence Olivier, fazia sua estreia em solo americano (e há quem diga que a parceria com o produtor David O. Selznick possa ter sido fundamental para o sucesso nas premiações daquele ano). A trama é um clássico Hitchcock com direito a uma mansão sombria, uma governanta cheia de segredos e um casamento que parece o tempo todo servir de fachada para que traumas do passado possam ser apagados. E há uma morte, claro! É uma história de mistério envolvente, com tensão crescente, que explode em seu inesquecível e apocalíptico final.

Na trama Olivier é Maxim de Winter, um nobre inglês que está passando uma temporada num hotel de luxo, enquanto tenta se recuperar da dolorida morte de sua esposa (a Rebecca do título), na temporada passada - em circunstâncias misteriosas, durante um passeio de barco. No local ele conhece uma jovem de origem modesta (Fontaine), que está ali a trabalho, acompanhando a arrogante e empolada senhora Van Hopper (Florence Bates). A paixão é praticamente imediata e, para livrar a moça da vida simples, Maxim a pede em casamento poucos dias depois de conhecê-la (e de iniciarem um relacionamento), convidando-a para morar na mansão Manderley, com suas dezenas de cômodos e de empregados. Mas nem tudo será flores na vida dos dois: há algo errado naquele lugar, como se a, agora senhora de Winter, "sentisse" a presença de Rebecca. Nos cômodos, nos quadros, nos bordados dos travesseiros, nos cantos, frestas e até louças. Ela é uma presença viva, mesmo estando morta, que ecoa em toda a parte - especialmente no comportamento dos serviçais.


E uma delas em especial - no caso, a senhora Danvers (Judith Anderson) -, não faz nenhuma questão de ser cordial com a novata. Ao contrário, gosta de lembrar a moça do quanto todos ali gostavam da falecida, uma pessoa culta, elegante, bem educada (ao passo que a personagem de Fontaine seria como uma pobretona, que foi parar ali por acaso). Ela tenta de todas as formas se enturmar, enquanto circula pela opressiva mansão de um milhão de metros quadrados. Claustrofóbico, o local funciona como se fosse uma personagem opulenta, que mistura riqueza e decadência, lembrando da morte enquanto que a vida insiste em persistir. A beira-mar, a suntuosa propriedade parece ecoar segredos por todos os cantos, o que faz com que a jovem se questione o tempo todo sobre o que, de fato, teria acontecido com Rebecca, essa figura tão viva, tão vibrante. Um caseiro de comportamento excêntrico, um cachorro que circula pela casa de maneira aleatória, ventos que sopram e transformam as cortinas em "fantasmas" que parecem flutuar: a claustrofobia pulsa a cada instante, sendo ampliada pela trilha sonora de notas claudicantes (de Franz Waxman) e pelo tenso jogo de cena, que faz as profundidades de campo da mansão se tornarem amedrontadoras.

E há ainda as reviravoltas que certamente fazem o espectador não piscar os olhos até o hitchcockiano terço final, em que as investigações se aprofundam e o caos se estabelece, gerando dúvidas sobre o comportamento e sobre a moral daqueles que acompanhamos. Há ainda um bem-vindo subtexto em que um surpreendente relacionamento gay parece o tempo todo pronto pra vir à tona - o que para um filme dos anos 40 representava uma ambiciosa ousadia, que se repetiria em outras obras do mestre, mais tarde - caso por exemplo de Festim Diabólico (1948). Hitchcock nunca mais voltaria a ganhar o Oscar, mas Rebecca, seu inesquecível (com o perdão do trocadilho) cartão de visitas, pavimentou o caminho para que o inglês criasse as suas grandes obras, casos de Pacto Sinistro (1951) Janela Indiscreta (1954), Um Corpo Que Cai (1958), Intriga Internacional (1959), Psicose (1960) e Os Pássaros (1963). Figurinha fácil em listas de melhores da história, Rebecca é um dos 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer.


terça-feira, 18 de agosto de 2020

Lançamento de Videoclipe - Tássia Reis (Me Diga)

Responsável por lançar o segundo melhor disco nacional do ano passado - ao menos para nós aqui, do Picanha -, a rapper paulistana Tássia Reis disponibilizou recentemente um videoclipe para a elegante canção Me Diga. O material foi entregue como parte das comemorações do primeiro ano do álbum Próspera, durante uma live com os fãs. Recheado por uma série de imagens e fotos de arquivo da artista, inclusive de viagens para o exterior, o vídeo dialoga com a sonoridade da artista, capaz de trafegar com naturalidade pelos mais variados estilos - do hio hop, passando pelo R&B e pela eletrônica. "A minha ideia foi juntar essas memórias e deixá-las gravadas definitivamente na minha história, em forma de clipe. Estamos vivendo momentos difíceis, e olhar para trás e ver tudo que construí, além de me fortalecer, me faz lembrar o quão sou capaz e que também ainda há muito a ser feito", destacou na ocasião. Além do arquivo da artista, há conteúdos captados por João de Souza Neto, Melina Hickson e Bruno Cons. Pra quem ainda não está familiarizado com a cantora, esta pode ser uma ótima porta de entrada.



Tesouros Cinéfilos - Boa Noite e Boa Sorte (Good Night, and Good Luck)

De: George Clooney. Com David Strathairn, George Clooney, Robert Downey Jr., Patricia Clarkson, Frank Langella e Jeff Daniels. Drama, EUA, 2005, 93 minutos.

Certamente vocês já viram essa brincadeira no Twitter ou em alguma outra rede social: sempre que aparece alguma figura - pública, de preferência - que seja contrária ao governo Bolsonaro, ela certamente figurará na "lista de comunistas atualizada". Ela é engraçada porque ela é delirante, sendo capaz de colocar no mesmo bolo de adversários do "mito", personalidades como Rodrigo Maia, o Papa Francisco, Gabriela Prioli e o Rafinha Bastos, além de entidades abstratas como o Oscar e até o... coronavírus, claro. É um deboche com aquilo que conhecemos como paranoia comunista, que é mais ou menos a prática de enxergar a ameaça vermelha em tudo aquilo que se oponha a Pátria, a família, a Deus, aos bons costumes, a ordem. Sim, porque na ideia dos conservadores, ser de esquerda, socialista ou, simplesmente, progressista, é conspirar, é trafegar no espectro subversivo é estar alinhado a práticas políticas perigosas. Não é por acaso que figuras "perigosíssimas" como estudantes, professores, escritores, jornalistas e funcionários públicos costumam estar desse lado. Pensa, que risco!

Bom, brincadeiras a parte essa paranoia que se intensifica no pós Segunda Guerra e se estende até a Guerra Fria - que colocaria Estados Unidos e União Soviética em lados opostos - evidentemente, não é de hoje. E, não é por acaso, já rendeu capítulos desastrosos em nossa história, em que a repressão política e as campanhas de medo dominavam a esfera pública. No ótimo filme Boa Noite e Boa Sorte (Good Night, and Good Luck), dirigido por George Clooney, somos apresentados a um pequeno (mas importante) recorte daquilo que ficou conhecido no começo dos anos 50 como Macarthismo. A prática faz alusão ao senador republicano pelo Estado do Wisconsin Joseph McCarthy que, naqueles tempos, promoveu uma verdadeira Caça às Bruxas ao realizar uma patrulha a adversários políticos, que passaram a ser agressivamente investigados pelo Governo ou por empresas privadas, em que houvesse qualquer tipo de evidência ou ameaça real ou palpável.


Foram tempos duros de perseguição - mas nem todos se dobraram a repressão, resolvendo enfrentá-la. E este foi o caso do premiado jornalista Edward R. Murrow (David Strathairn em pepel que lhe deu indicação ao Oscar), que utilizou o seu programa semanal e noturno na rede CBS, para questionar os métodos aplicados por McCarthy. Tudo começa com a expulsão de um capitão da aeronáutica que, supostamente, teria conexões com o Partido Comunista. Muitas vezes as acusações eram bizarras: envolviam participações aleatórias em comitês, em sindicatos de trabalhadores ou em instituições de ensino. A intelectualidade parecia ser algo a ser combatido em uma época em que a TV surgia como uma novidade (quase) alienante, com seus programas de variedades, para pessoas pouco dispostas a pensar no final da noite, após um dia cheio no trabalho. Mas Murrow acreditava no contrário disso. Comprou briga com o apoio de sua equipe - e até do dono da emissora (vivido com a habitual sisudez por Frank Langella). Foi uma batalha difícil, inglória, cheia de dor e de ameaças de parte a parte. Mas venceu o bom jornalismo, com Murrow entrando para história pela sua firmeza de caráter, profissionalismo e irresistível humor cínico.

Aliás, o filme todo carrega essa marca. Primeiro é uma aula de bom jornalismo e eu desejo com todas as forças que ele esteja sendo exibido nas faculdades de Comunicação como parte da doutrinação (tô brincando, tô brincando!). Depois, há as grandes interpretações: o coletivo de atores - Robert Downey Jr., Patricia Clarkson, Jeff Daniels e o próprio Clooney - está fantástico. Ninguém se sobressai, mas os papeis estão bem distribuídos, funcionando de maneira equilibrada, na medida certa. Há ainda a soberba parte técnica, com destaque pela opção pela fotografia em preto e branco, que possibilitou a utilização de imagens reais e de arquivo do próprio senador McCarthy, o que confere um peso maior à tenebrosa narrativa. É uma obra densa em sua temática, mas que possui eventuais instantes de leveza, como nos standards de jazz que ecoam nos bastidores (a música TV Is the Thing This Year é uma joia) ou nos encontros na delicatessen da esquina, para a leitura das resenhas de jornais sobre os programas noturnos (a metalinguagem, essa característica tão linda).


E é um filme, ainda, cheio de frases relevantes e de diálogos expressivos. Em um dos mais marcantes, Murrow está recebendo um prêmio e faz uma reflexão sobre o próprio poder da televisão que, como já dito na resenha, era uma novidade que invadia as casas dos americanos nos anos 50: "este instrumento pode ensinar; pode iluminar; sim, e até pode inspirar. Mas só pode fazer isso na medida em que os humanos estiverem determinados a usá-lo para esses fins. Caso contrário, não são nada além de fios e luzes em uma caixa. Há uma grande e talvez decisiva batalha a ser travada contra a ignorância, a intolerância e a indiferença. Esta arma da televisão pode ser útil." Além de Strathairn, a obra receberia outras cinco nominações a premiação máxima do cinema. Sairia de mãos abanando, mas ganharia um prêmio maior: o do reconhecimento de que as políticas de opressão, totalitárias ou que buscam perseguir adversários políticos devem ser combatidas também pelas práticas jornalísticas, que visam a denunciar estes abusos. Um prêmio difícil de mensurar. Mas insubstituível.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Tesouros Cinéfilos - Never Rarely Sometimes Always (Never Rarely Sometimes Always)

De: Eliza Hittman. Com Sidney Flanigan, Talia Rider, Sharon Van Etten e Théodore Pellerin. Drama, Grã-Bretanha / EUA, 2020, 101 minutos.

Discutir o tema "descriminalização do aborto" nunca é fácil - aliás, esse último final de semana foi a prova viva disso. É um assunto que suscita um debate fervoroso que costuma colocar de um lado aqueles que acreditam na suposta tese de que a prática se consiste em um crime contrário à natureza e aos "desígnios de Deus" (sim, ainda precisamos lidar com o fanatismo, o delírio da "família de bem" e a terra plana) e de outro aqueles que acreditam na legalização como um avanço científico que possibilita às mulheres a decisão sobre seus corpos - especialmente em casos que envolvam violência, gravidez indesejada ou riscos para a mãe (ou tudo ao mesmo tempo). É tão complexo que em países como os Estados Unidos, a legislação varia de Estado para Estado, com conservadores e progressistas apresentando seus argumentos para a defesa ou condenação da interrupção de uma gravidez. Em muitos países a prática é legalizada. Já em outros, bom... a impressão é de se estar na Idade Média. E no meio disso tudo há as artes que podem nos ajudar a compreender melhor os pormenores que envolvem esse contexto, sendo esse o caso do absurdamente essencial Never Rarely Sometimes Always, o mais recente trabalho da diretora Eliza Hittman (que dirigiu episódios de 13 Reasons Why).

No filme acompanhamos a verdadeira via crúcis da jovem Autumn (Sidney Flanigan) que, ao lado da prima Skylar (Talia Rider), sairá de uma pequena cidade do interior da Pensilvânia para ir até Nova York para tentar - sem qualquer tipo de certeza, pra falar a verdade -, interromper uma gravidez indesejada. Desde o começo fica claro que o provincianismo do local em que mora será uma barreira para Autumn: sem qualquer possibilidade de um diálogo decente, não conseguirá jamais de sua família algum tipo de resposta. Com os colegas de aula e com a comunidade como um todo, o caso é quase pior: na clínica local a atendente tenta lhe demover da ideia de abortar (com a desculpa religiosa, claro, foi Deus que quis). Os colegas de aula praticam bullying, taxando-a de depravada por, vejam só, ter feito sexo aos 17 anos (aah, a culpa católica). Aliás, sexo, como veremos mais adiante, sem consentimento, no caso da gravidez. Única figura que está ao lado dela, Skylar lhe acompanhará nesse mergulho ao desconhecido, em uma cidade grande, em que o medo e a insegurança vão para além de um simples desejo de interrupção a gravidez.


Porque mais do que mostrar com sutileza e inteligência o sofrimento de quem precisa lutar por uma conquista que poderia ser bem mais simples, em um sistema de saúde mais justo - baseado em critérios sociais, políticos e econômicos mais complexos -, o filme serve para nos mostrar que, na realidade, jovens mulheres como Autumn e Sidney sofrem algum tipo de violência - física, psicológica, moral -, praticamente o tempo inteiro. O espectador não precisa de um flashback para saber que a gravidez de Autumn é resultado de algum tipo de agressão e que ela, ao cabo, terá que dar conta sozinha. Aliás, a cena em que é revelado o significado do título original da obra - algo como Nunca, Raramente, De Vez em Quando e Sempre -, é incômoda e profundamente desoladora nesse sentido. E explica de alguma forma que, sim, sequências como a do homem que tenta mostrar o pênis para elas dentro do metrô ou que lhes beijam partes do corpo sem autorização em pleno ambiente de trabalho, servem para nos fazer compreender que banir o aborto é apenas uma violência A MAIS, entre tantas outras sofridas pelas mulheres.

Só que a diretora faz isso de forma muito elegante. Sim, é um filme duro e elegante. Que tem uma fluência narrativa meio vagarosa, uma fotografia acinzentada e granuladamente melancólica, que se mescla à trilha sonora das ótimas Julia Holter e Sharon Van Etten (aliás, prestem atenção a ela atuando!), para formar um conjunto de grande densidade, sobre um assunto mais do que necessário. Aliás, cada vez mais necessário. Inteligente, a obra joga luz as pequenas inseguranças de duas adolescentes que ainda não sabem direito que decisões tomar na vida - observem a maratona para comprar um bilhete de metrô -, e que precisam, sem suporte algum da família, ou do Estado, escolher entre ser ou não mãe em uma sociedade que romantiza a maternidade e demoniza o oposto, mesmo em casos de gravidez completamente indesejada - e não esqueçamos que a protagonista, assim como muitas meninas, foi vítima de VIOLÊNCIA. Não, não é um tema fácil. Vocês que leem esse texto sabem qual o nosso lado nesse debate. Mas o que Eliza Hittman faz - sim, tomando partido, evidentemente -, é nos fazer refletir. E refletir, se colocar no lugar do outro, ter um pouco de empatia, pode ser o caminho para avanços necessários. E, consequentemente, para uma sociedade melhor.


sábado, 15 de agosto de 2020

Podcast do Picanha Cultural #16 - Grandes Cenas do Cinema

Grandes Cenas do Cinema. Clássicas, inesquecíveis. São muitos esses momentos marcantes - de Gene Kelly cantando na chuva à protagonista de Psicose sendo assassinada no chuveiro, passando por Ferris Bueller cantando Twist and Shout dos Beatles durante um desfile ao final de Curtindo a Vida Adoidado, não são poucas as sequências de filmes que se tornaram memoráveis. E foi pensando nisso que resolvemos trazer esse assunto para o episódio dessa semana do nosso Podcast do Picanha Cultural. Divididas em categorias - engraçada, nostálgica, triste, tocante -, o Henrique, o Bernardo e eu vasculhamos nossa memória (afetiva também) para recordar quais as mais marcantes passagens fílmicas dessa arte que tanto nos apaixona! Quem gosta do tema pode clicar no menu ali do lado, no quadro Grandes Cenas do Cinema, que disseca algumas dessas sequências no formato de postagens. É o seu sabadou (!) preferido chegando com leveza e diversão - pra tentar amenizar (um pouco) das dores provocadas pela pandemia. Bora clicar?


sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Pérolas da Netflix - Casa Grande

De: Fellipe Barbosa. Com Thales Cavalcanti, Marcelo Novaes, Suzana Pires, Clarissa Pinheiro e Bruna Amaya. Drama, Brasil, 2014, 114 minutos.

Se não chega a ser um filme escancaradamente social, Casa Grande - que toma emprestados alguns conceitos do clássico livro do sociólogo Gilberto Freyre -, é aquele tipo de obra que mostra um Brasil de contrastes a partir de uma série de acontecimentos cotidianos (e sutis). Na trama, somos apresentados a uma família burguesa, que precisa lidar com problemas financeiros que, aos poucos, vão mudando seu padrão de vida. Da madame que precisa, de forma quase inesperada, trabalhar para complementar renda, ao filho playboy que passa a ter de ir pra escola de ônibus porque o motorista foi demitido, a obra do diretor estreante Fellipe Barbosa vai encadeando fatos que, no fim das contas, funcionarão como um microcosmo de nossa sociedade. O panorama geral dá conta de um certo entorpecimento dessa aristocracia brasileira que é muitas vezes incapaz de perceber as mudanças - políticas, inclusive -, que ocorrem no entorno, para permanecer letargicamente paralisadas, enquanto, muito provavelmente, reclamam de algum governo que se esforçou em tentar equilibrar a balança.

Nesse sentido, talvez não seja por acaso que um dos principais debates do filme envolva a política das cotas raciais. Há, inclusive, um excesso de exposição sobre o tema, o que torna alguns diálogos bastante artificiais. Em um deles, Hugo (Marcelo Novaes) discute com o seu filho Jean (Thales Cavalcanti) sobre luzes acesas pela casa que poderiam acarretar aumento em contas de luz que se aproximam dos mil reais mensais. A filha Nathalie (Alice Melo) insiste na discussão das cotas com o pai que não lhe dá bola. O assunto voltará em outros momentos: em sala de aula, em um churrasco de família (talvez uma das mais contundentes sequências da obra), como uma forma de lembrar ao espectador que o que está em discussão no filme não é apenas o eventual enfraquecimento de parte das elites, mas como políticas públicas inovadoras buscaram equalizar parte das dividas históricas (e sociais), num ideal tardio de tentativa de igualdade.


E por mais que saibamos que políticas que atendem as camadas mais vulneráveis da população nada tem a ver com as perdas financeiras das famílias de bem, elas surgem para dar complexidade a um contexto em que os mais pobres também passam a ter o direito a sonhar e a sorrir - com uma faculdade, com um forró divertido, com produtos de beleza ou com um violão a beira da praia. Lembra da cena em que a filha da Val, personagem de Regina Casé em Que Horas Ela Volta? passa no vestibular e o filho playboyzinho da patroa não? É mais ou menos isso. Há uma nova configuração de País, em que jovens frustrados pelos mais diversos motivos, lutam para encontrar algum equilíbrio e alguma sanidade para que possam tocar a vida "adiante", em um cenário de pais superprotetores e reféns de algum tipo de violência que se avizinha e que parece sempre pronta a explodir, vinda de sabe-se lá onde.

Não por acaso a obra é pródiga em seus diversos comentários sociais. Em um deles Hugo reclama do filho que deseja a faculdade de comunicação - "economia dá muito mais dinheiro, muito mais futuro". Há o estudo de francês como um indicativo metafórico de retrocesso já que, na atualidade, a língua da moda é o inglês. E o que dizer da ultrapassada música clássica, que insiste em ecoar pela "casa grande", enquanto que na senzala o povão se esbalda com ritmos populares e regionalistas como o forró? Essas diferenças, essas ambiguidades parecem colocar os personagens de Casa Grande sempre no limite de extravasar os papeis sociais já pré-estabelecidos, como no instante em que Hugo estaciona seu carro de luxo em um local inadequado, quase armando briga com um coletivo de flanelinhas. O Brasil é grande. É complexo. Suas estruturas estão sempre em movimento, há grandes e profundas mudanças sociais e pessoas tentando se (re)adaptar a elas. O filme é sobre tudo isso ao mesmo tempo. Pode não ser tão panfletário, tão pungente. Mas, elegante, cheio de nuances, passa seu recado.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Livro do Mês - O Incolor Tsukuru Tazaki e Seus Anos de Peregrinação (Haruki Murakami)

A apreciação de uma obra de Arte depende muito do contexto em que esta se insere na vida das pessoas. Podemos não estar "no clima" ao assistirmos um filme, por exemplo. Podemos adormecer e deixar passar algo que poderia marcar de alguma forma a nossa existência. Às vezes, anos depois, ao nos reencontrarmos com ele, podemos perceber detalhes marcantes que não havíamos nos dado conta à época, fruto de nossas vivências até então limitadas que nos impediam a uma reflexão mais profunda. No entanto, algumas raras vezes temos a sorte de um livro cair em nossas mãos e, numa feliz coincidência, ter aquela sensação, epifania, de que algo ali é especial e parece feito pra gente. Como se estivesse narrando parte de nossas vidas, a leitura certa no momento certo: como se o autor me conhecesse. E isso aconteceu na leitura de O Incolor Tsukuru Tazaki e Seus Anos de Peregrinação, do japonês Harumi Murakami, lançado em 2014.

“Por mais grave que tenha sido o dano, será que não está na hora de superá-lo? Você precisa ver as coisas que precisa ver, e não as coisas que quer ver. Caso contrário, você vai viver o resto da vida carregando esse fardo”

Explico: assim como o personagem principal, eu também tinha 36 anos no momento em que lia o livro. As sensações vivenciadas pelo "incolor" Tsukuru Tazaki eram muito similares às minhas angústias. O vazio, a autodepreciação, a sensação de não pertencimento. Suas esperanças ou a falta delas. Na trama, Tsukuru é um engenheiro especializado em construir estações de trem que vive atualmente em Tóquio. Dotado de uma personalidade introspectiva, melancólica, de uma certa passividade diante das coisas, vê sua vida ganhar cor ao conhecer e começar a se relacionar com Sara Kimoto, mulher dois anos mais velha pela qual se descobre apaixonado e vislumbrando um futuro mais - com o perdão do trocadilho - colorido. Em uma conversa com Sara ele relata um acontecimento que ocorrera 16 anos antes: o seu abandono (expulsão seria a palavra mais apropriada) por parte de um grupo de amigos da época de escola, sem maiores explicações. Este fato deixa sua pretendente com uma pulga atrás da orelha (como ele seria capaz de seguir em frente sem saber de toda a história?) e estimula Tsukuru a reencontrar-se com os amigos para passar os fatos a limpo e, a partir daí, poder seguir em frente em uma possível relação. A partir do relato por Tsukuru das tentativas frustradas em reencontrá-los, Sara, como boa agente de viagens, promete ajudá-lo a localizar cada um do grupo e finalmente poder encontrá-los para uma conversa que, poderá ou não, trazer certas revelações.


Este grupo consistia de cinco amigos cujos nomes, cada um, significava uma cor em japonês: os meninos eram Amakatsu ("pinheiro vermelho" ou, simplesmente, Vermelho) e Ômi ("mar azul" ou Azul); as garotas Shirane ("raiz branca" ou, simplesmente, Branca) e Kurono ("campo preto", ou Preta). O único que não possuía cor no nome era justamente Tsukuru Tazaki, cujo nome significava "aquele que constrói coisas", o que acabou por refletir na sua profissão e a mudança de Nagoia, sua cidade natal e dos demais amigos, para Tóquio afim de estudar - afastando-o fisicamente do grupo que funcionara como uma irmandade durante muitos anos. O apelido cunhado para ele, "incolor", justamente por não ter nenhuma cor no nome, é uma metáfora bem empregada pelo autor Murakami ao relatar, em sua prosa de leitura simples e fluida, porém poética, todas as nuances de seu personagem principal e a busca por seu lugar no mundo. Acompanhado sempre pelas referências musicais (marca registrada do autor) que, neste livro, é a obra de Franz Liszt "Os Anos de Peregrinação", vemos o percurso do personagem em direção aos referidos encontros onde dores, arrependimentos, catarses, lembranças, virão à tona e contribuirão de variadas formas ao amadurecimento (e à tão fadada busca por autoconhecimento) do personagem.

“O coração das pessoas não está unido apenas pela harmonia. Pelo contrário, ele está unido profundamente pelas feridas. Está ligado pela dor, pela fragilidade. Não há silêncio sem grito desesperado, não há perdão sem derramamento de sangue, não há aceitação sem travessia por uma perda dolorosa”.

Bestseller no mundo todo, Haruki Murakami é um autor bastante cultuado. De extensa produção, pautada por elementos fantásticos, já foi cotado para o Nobel de Literatura. Esta é minha primeira incursão pela obra do autor, e escolhi este livro justamente por ter uma pegada (segundo havia lido) menos fantasiosa e mais "pé no chão" do que suas demais obras. Não me arrependi. Apesar do tema muitas vezes pesado (depressão, melancolia, vazio existencial) a leitura é extremamente agradável e te mantém envolvido e curioso pelos passos seguintes. Confesso que a identificação com o personagem principal contribuiu para a experiência se tornar completa, sendo este, certamente, um dos cinco melhores livros que marcaram minha vida. De passagens belíssimas e profundas (às quais me pego frequentemente relendo) embaladas em uma literatura aparentemente simples, é daquelas obras que te deixam com um calor no peito como se, ao encerrarmos a sua leitura, algo de muito especial permanecerá com a gente. E o final se completa em uma nota certeira: afinal, a vida segue e o que nos resta é a incerteza das coisas e, talvez por isso mesmo, a esperança de dias melhores e a (mesmo que remota) possibilidade de ser feliz. E é tão bom perceber que o crescimento de alguém, fictício ou não, possa nos tornar, consequentemente, alguém melhor.  

"Mas essa dor do peito era necessária, e a sensação asfixiante também era necessária. Ele precisava senti-las. Daqui para frente, ele precisava derreter esse núcleo gelado aos poucos. Talvez levasse tempo, mas era o que ele precisava fazer. E, para derreter esse solo congelado, Tsukuru precisava do calor de outra pessoa. O calor do corpo dele não era suficiente."


terça-feira, 11 de agosto de 2020

Na Espera - Estou Pensando em Acabar Com Tudo (Filme)

Vou ser sincero: eu nem tinha me ligado que o Charlie Kaufman estava em vias de finalizar o seu novo filme, mas esse trailer de Estou Pensando em Acabar com Tudo (I'm Thinking of Ending Things) me deixou extremamente empolgado. Caso você não esteja ligando o nome a pessoa, Kaufman foi o diretor dos ótimos Sinédoque, Nova York (2008) e Anomalisa (2015), além de ter sido o roteirista de obras-primas modernas como Quero Ser John Malkovich (1999), Adaptação (2002) e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004). Então, a gente sabe que é garantia de coisa boa. Ainda mais se pensarmos no quão incensado é o livro de Iain Reid, no qual a película é baseada e, bom, já podem anotar no caderninho do Oscar essa provável indicação na categoria Roteiro Adaptado para a cerimônia do ano que vem.


Mas eu queria falar do trailer e ele é simplesmente assombroso! Há toda uma estética soturna, onírica, uma história que parece reservar algumas surpresas em meio a uma narrativa que acontece com um bem-vindo senso de humor meio cínico. No material de divulgação, a trama de conta de uma jovem (vivida por Jessie Buckley) que, apesar de ter dúvidas sobre seu recente relacionamento, aceita um convite do namorado (Jesse Plemons) para conhecer a família dele em uma fazenda. A sensação de isolamento é palpável, o que se amplia com uma tempestade de neve. Os pais, interpretados por Toni Colette e David Thewlis parecem meio estranhos e há todo um questionamento sobre o que, de fato, tá rolando naquele local. Pop e filosófico, excêntrico e curioso, existencialista e sombrio, o filme estreia na Netflix no próximo dia 4 de setembro e nós, por aqui, somos pura expectativa!

Cine Baú - Os Bons Companheiros (Goodfellas)

De: Martin Scorsese. Com Ray Liotta, Robert De Niro, Joe Pesci, Lorraine Bracco e Paul Sorvino. Drama / Policial, EUA, 1990, 146 minutos.

Numa análise rasa algumas pessoas costumam afirmar que Martin Scorsese glorifica a máfia em seus filmes. Mas, quem faz isso, certamente não assistiu a estas obras com a devida atenção, como comprova a história de ascensão e queda vista em Os Bons Companheiros (Goodfellas) - e que é a evidência cinematográfica de que, no final das contas, o crime não compensa. Na trama acompanhamos a história do jovem Henry Hill (Ray Liotta) que, desde menino, sonha em ser gângster. Pela janela da casa em que mora com os pais e o irmão, no Brooklyn, em Nova York, acompanha a movimentação dos mafiosos em uma pizzaria do bairro, local em que começará a trabalhar, se tornando mais tarde protegido de Jimmy Conway (Robert De Niro), quando passará a atuar na receptação e na venda de cargas roubadas. Não demora para que os golpes se tornem cada vez maiores e mais ambiciosos, com o rapaz sendo tratado como um filho pelo chefão local - um certo Paulie (Paul Sorvino).

Trafegando entre os dois estará o instável Tommy DeVito (Joe Pesci, que faturou o Oscar pelo papel), um sociopata praticamente sem limites, daqueles que atira primeiro para perguntar depois. Será esse grupo de pessoas que assistiremos durante duas horas e meia, período em que acompanhamos três décadas de gangsterismo que evolui para o glamour das roupas chiques, dos restaurantes caros e do dinheiro jorrando fácil, até a decadência que reduz e aniquila o grupo (as mortes em série após um grande roubo de uma carga de drogas, faz com que todos desconfiem de todos). E esse acaba sendo o erro de Henry: incapaz de estabelecer limites para a ambição, se envolve em esquemas nebulosos, regados a cocaína, que não demorarão muito para chamar a atenção do FBI. Aliás, em partes, é possível afirmar que, após uma série de equívocos, Henry só encontrará a salvação ao se tornar informante da polícia federal, onde vira um Zé Ninguém auxiliado pelo serviço e proteção as testemunhas.


E por mais que seja uma obra brutal, cheia de mortes grosseiras (e até estúpidas), a película mantem um senso de humor meio torto, daqueles em que a gente ri muito mais do absurdo sem sentido daquilo que acompanhamos, do que por alguma piada mais pontual. E, em muitos casos, é um riso de nervoso mesmo, como no caso de praticamente todas as cenas protagonizadas por Pesci. Com seu estilo furioso, a sua figura intempestiva é capaz de causar conflito instantâneo. É um convite para que as coisas saiam do controle, como comprova a inexplicável sequência em que ele assassina a sangue frio um jovem garçom que é incapaz de lhe servir a bebida corretamente. Aliás, são essas atitudes de mafioso de segunda linha, baixas, toscas, de quem não respeita hierarquia alguma, que terminarão por acarretar a morte de um certo Billy Batts (Frank Vincent), um chefão da máfia rival. De certa forma, isto também contribui para o contexto de instabilidade, de insegurança, que resultará no esfacelamento de um coletivo que entra em paranoia - algo exemplificado pela sensação de estar sendo o tempo todo perseguido, com que Henry convive no terço final.

E por mais que todos ali tentem viver uma espécie de idílio familiar, com jantares luxuosos, reuniões em mansões, com farta bebida e gastronomia voluptuosa - as reuniões são completadas por casamentos, filhos, amantes, mentiras, extorsões de todo o tipo, lesões e mortes numa mistura caótica -, a gente percebe que, por mais atrativa que seja a vida fácil, ela é acompanhada de um tipo de perigo que parece sempre pronto a bater a porta. Com um ritmo frenético que se alterna com algumas sequências mais contemplativas, o filme utiliza a sua fotografia granulada e a trilha sonora recheada de standards e de clássicos do rock para transformar o filme em um legítimo representante da cultura pop noventista. Com seis indicações ao Oscar e uma vitória no Festival de Veneza - o diretor recebeu o Leão de Ouro -, a película fortaleceria o nome Martin Scorsese como uma espécie de selo de qualidade cinematográfico. O tema da máfia retornaria com Cassino (1995) e, mais recentemente, com O Irlandês (2019). Todos apontando a vida de fora-da-lei como uma saída em que o sofrimento é praticamente inevitável.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Pérolas da Netflix - Maudie: Sua Vida e Sua Arte (Maudie)

De: Aisling Walsh. Com Sally Hawkins, Ethan Hawke, Gabrielle Rose e Kari Matchett. Drama, Canadá / Reino Unido, 2016, 115 minutos.

Enquanto assistia a Maudie: Sua Vida e Sua Arte (Maudie), me perguntava o por quê de um filme tão bonito e tão bem feito ter passado completamente batido nos cinemas. Bom, antes tarde do que mais tarde a Netflix adquiriu o título para o seu catálogo e, justiça seja feita, trata-se de uma obra com praticamente zero defeitos. A trama conta a história da artista plástica Maud Lewis (Sally Hawkins, em mais uma grande interpretação) que, desde a juventude, conviveu com um severo problema de artrite reumatoide, que lhe causava desconforto e deformações nas articulações do corpo. Tida como inapta - especialmente pela dificuldade de locomoção - conviveu com o abandono da família, sendo acolhida meio aos trancos e barrancos por uma tia. A oportunidade de sair de casa surge quando um pescador brutamontes de nome Everett (Ethan Hawke) lhe contrata para auxiliar nos afazeres domésticos de sua pequena casa, que fica nas redondezas.

"Auxiliar nos afazeres domésticos" é uma forma quase amável demais para indicar aquilo que o sujeito fazia. Sem nenhum pudor Everett humilhava Maud, lhe agredia (inclusive fisicamente), além de fazer diversas exigências relativas ao cumprimento de suas tarefas. Era uma relação truncada, com ambos vivendo as turras. Entre idas e vindas, Maud acaba indo morar no seu local de trabalho. Uma casa suja, bagunçada, acinzentada e sem vida que, aos poucos, passará a receber alguma cor por causa do talento de Maud para a pintura. Um talento escondido, louco para vir à tona. No começo, de forma deliciosamente desafiadora, pinta as paredes da própria casa de Everett. O marrom das madeiras velhas passa a receber o verde, o azul e o amarelo das cores vivas saídas dos pincéis de Maud. Figuras bucólicas, prosaicas - animais, a natureza, objetos diversos. Everett fica ranzinza inicialmente. Reclama, estipula limites. Mas vai sendo dobrado pelo talento da sua "empregada". Pela sensibilidade artística. A mesma sensibilidade que nos transforma, que gera empatia, nos encanta.


Nos comentários sobre o filme vi muita gente reclamando de ser uma obra parada, sem uma grande história ou reviravoltas marcantes. Mas esse não é o caso aqui, já que esse é um filme plasticamente bonito, que utiliza a parte técnica a seu favor - do uso das cores na sua fotografia, passando pela trilha sonora de notas evocativas, até chegar a escolha das tomadas, que se apropriam de suas lindas paisagens para "transformá-las" em verdadeiras obras de arte. Repare como, por exemplo, muitos dos ângulos escolhidos, bem como os objetos cênicos são parecidos com quadros. Há um diálogo permanente com esse valor tão caro - o da arte - que se sobressai em cada fragmento da película. Maudie aparece muitos minutos pintando. E, de presente, ganhamos da diretora Aisling Walsh (de O Inferno de São Judas), uma coleção de imagens que representam aquele estado de espírito permanente - seja no bucolismo, na introspecção ou na placidez transmitida pelos gestos econômicos de sua protagonista.

Há também o componente "romântico" da narrativa. Conforme vai sendo impactado pelas obras - e pelo universo como um todo de Maudie -, Everett vai se afeiçoando a ela. Aliás, a seu modo se apaixona por ela, que se torna sua esposa. Mais tarde brigará pela sua arte a seu lado, ainda que, aqui e ali, os pequenos conflitos confiram alguma cor (com o perdão do trocadilho) a narrativa. É um filme de sensibilidade palpável, que salta do frio para o calor para nos aquecer juntos, enquanto assistimos aos pequenos e coloridos cartões da artista ganharem vida. Há uma ou outra surpresa de impacto na reta final - que nos farão refletir sobre o tratamento dado as pessoas com deficiência -, mas o que fica mesmo é o reconhecimento tardio da pintora, que quase ao final da vida chamou a atenção da mídia e até do presidente norte americano Richard Nixon. Poético, delicado, contemplativo, Maudie: Sua Vida e Sua Arte é daquelas obras que merecem ser descobertas.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Podcast do Picanha Cultural #15 - Christopher Nolan Passado a Limpo

Quem acompanha o Picanha viu que no nosso TBT dessa semana, a gente prestou uma pequena homenagem ao filme A Origem (2010), que completou 10 anos de lançamento ontem. Mais cedo, na terça, já havíamos feito um post sobre o ótimo Amnésia (2000), que chega aos vinte anos de vida neste mês de agosto. Ponto em comum entre as duas obras? Ambas são dirigidas pelo sempre competente Christopher Nolan. Nolan é o nome a frente de outras grandes películas, como O Grande Truque (2006) e Interestellar (2014), além da trilogia Batman: O Cavaleiro das Trevas. Além disso, o badalado Tenet, sua nova empreitada, chega aos cinemas no próximo mês e com um trailer que revela muito pouco. E foi ali nos nossos debates, no grupo de whats do Picanha, que o Henrique, o Bernardo e eu chegamos a seguinte conclusão: por que não fazer um episódio em que passamos "a limpo" a carreira de um dos mais importantes diretores e roteiristas da atualidade? Foi o que a gente fez! Como parte da brincadeira demos notas pra cada um dos filmes e elegemos, ao final, a mais representativa obra da filmografia do Christopher Nolan. Tudo com aquele bom humor de sempre. Tudo como manda o figurino do "sextou caseiro", em meio à pandemia. Bora dar play?



quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Picanha.doc - Crip Camp: Revolução Pela Inclusão (Crip Camp)

De: James Lebrecht e Nicole Newnham. Documentário, EUA, 2020, 105 minutos.

Hoje em dia não conseguimos conceber a ideia de que prédios públicos não tenham acessibilidade. De que não haja rampas ou outras estruturas que permitam às pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida chegar aos locais. Aliás, não só prédios públicos: hospitais, universidades, igrejas. Atualmente há Lei para isso: ela estabelece que "espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos transportes e dos sistemas e meios de comunicação devem estar ao alcance de cadeirantes, com segurança e autonomia". Óbvio que nem sempre foi assim. No Brasil, por exemplo, ela foi instituída em dezembro de 2000. Como qualquer conquista social, foi fruto de muito debate e muita luta para que se chegasse ao atual estágio. Nos Estados Unidos ela é um pouco anterior. E como se chegou a ela na Terra do Tio Sam é o que o ótimo documentário da Netflix Crip Camp: Revolução Pela Inclusão (Crip Camp), mostra.

Na realidade tudo começou em uma espécie de acampamento de verão em que jovens com as mais variadas deficiências - paralisia cerebral, cegueira, tetraplegia ou paraplegia entre outras -, podiam conviver uns com os outros sem o ambiente superprotetor dos pais, com um pouco mais de autossuficiência e num contexto bem menor de preconceito. Vistos pela sociedade como "diferentes", as pessoas que frequentavam o Acampamento Jened - que funcionou entre os anos 50 e 70 - deixavam de lado um futuro moldado pelo isolamento, pela discriminação e pela institucionalização, em um campo quase utópico - uma espécie de Woodstock em que esportes de verão eram praticados, muita maconha era consumida e música era tocada, enquanto casais apaixonados iam surgindo. "Para nós era um universo que não havia no mundo exterior", comenta uma das participantes, entre uma e outra sessão de maquiagem com as amigas.


Mas o que inicialmente eram encontros apenas para diversão e para fuga de um mundo em que todos ali se sentiam totalmente inadequados, seria o embrião de algo maior: o despertar de uma consciência social para a necessidade de mudança. Empoderar pessoas com deficiência era preciso e figuras emblemáticas como a ativista Judy Heumann foram fundamentais nesse processo, em um trabalho que começa "de formiguinha" e que vai ganhando adeptos pelo País entre coletivos progressistas os mais variados - dos Panteras Negras, passando por sindicatos de trabalhadores rurais, até chegar em entidades que lutavam por direitos civis ou nos movimentos antiguerra. Apesar da leveza da narrativa, os diretores James Lebrecht  e Nicole Newnham não deixam de mostrar o absurdo que ocorria nas dependências de hospitais psiquiátricos como o de Willowbrook, que escancaravam a necessidade de mudança: até aquele momento os deficientes eram encarados com um misto de medo, pena e aversão e não como... pessoas.

Usando a música e as imagens idílicas cheias de diálogos espirituosos como fio condutor da narrativa, a obra equilibra momentos mais sérios - como os que envolveram os mais de vinte dias em que o coletivo protestou em um prédio do governo, praticamente exigindo do Governo Nixon (um republicano que, claro, complicou tudo), uma posição sobre a Lei da Reabilitação -, até chegar a momentos genuinamente divertidos. Em um deles, um verdadeiro deleite, uma senhora com paralisia cerebral (e mestre em estudos sobre sexualidade humana em pessoas com deficiência), relata como perdeu a "virgindade". Num misto de sinceridade e bom humor, ela menciona uma ida ao ginecologista que lhe diagnostica com uma gonorreia: "nunca me senti tão orgulhosa", ela brinca, sobre aquele que talvez seja um dos maiores tabus entre os PCDs: a discussão da vida sexual. Entre idas e vindas a gente sabe que o final será, em partes, feliz. As rampas estarão lá, posicionadas. Os acessos estabelecidos. Falta agora, a segunda luta a ser vencida: a do preconceito. Essa, certamente, será mais difícil.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Lançamento de Videoclipe - Rosa Neon (Fama)

Fama às vezes não dá dinheiro
Dinheiro compra até fama, uô
Difícil mesmo é escolher a coisa certa quando deita na...

Não faz nem um ano que os mineiros do Rosa Neon lançaram o seu autointitulado disco de estreia - aliás, nosso décimo na lista de melhores nacionais do ano passado - e o, agora trio, acaba de disponibilizar um novo single, que vem com um clipe a tiracolo. Mantendo a brasilidade, a energia e o frescor ensolarado do material visto no já citado disco, Fama, a nova música, amplia o aceno para o tecnobrega e para os ritmos populares. Com refrão grudento e letra daquelas pra ficar na cabeça, a canção parece saída de uma espécie de saudável mistura entre Jaloo e Duda Beat, o que exemplifica uma das mais marcantes características do trio composto por Luiz Gabriel Lopes, Marina Sena e Marcelo Tofani: o senso de humor apurado e a capacidade única de mesclar estilos com personalidade e naturalidade. Quase todo em preto e branco, o vídeo dirigido por Vito Soares faz um aceno aos Beatles, em um projeto minimalista que parece confrontar o real sentido de "fama". Enfim, é sempre divertido e, pra quem ainda não conhece, pode ser uma boa porta de entrada!

Tesouros Cinéfilos - Amnésia (Memento)

De: Christopher Nolan. Com Guy Pearce, Carrie-Anne Moss, Joe Pantoliano e Stephen Tobolowsky. Suspense, EUA, 2000, 113 minutos.

Vamos combinar que foi um baita cartão de visitas este Amnésia (Memento), filme de estreia do diretor Christopher Nolan (de A Origem, Interestellar e Dunkirk, além da trilogia Batman: O Cavaleiro das Trevas), que pavimentou o caminho para que ele se tornasse um dos mais importantes e celebrados diretores da atualidade. Cada obra do realizador é aguardada, não por acaso, com certa ansiedade pelos fãs, sendo este o caso de Tenet que, em meio a pandemia, já mudou tantas vezes de data de estreia que a gente já tá meio perdido se ele vai ser exibido nos cinemas ou se vai direto para o streaming - nas salas brasileiras (sim, salas), a data oficial é 10 de setembro. Mas o assunto aqui é Amnésia e seu roteiro absurdamente engenhoso, que utiliza a sua narrativa fragmentada e de trás pra frente, para contar a história de vingança de um sujeito que perdeu a mulher (e a sua memória). Trata-se de uma proeza fílmica, um trabalho de edição impecável, inesquecível.

O filme começa com o assassinato meio estranho de um certo Teddy (o ótimo Joe Pantoliano), o que seria, em tese, a resolução do caso. Quem segura a arma que o mata é Lenny (Guy Pearce) que parece finalmente ter descoberto o responsável pelo crime ocorrido no passado - no caso um assalto que resulta na morte já citada da esposa do protagonista e que, de quebra, lhe deixa incapacitado de recordar de eventos recentes - o distúrbio é conhecido como "amnésia anterógrada", que é a impossibilidade de formar memórias novas. Assim, para que não seja traído pelas confusas lembranças, Lenny adota uma série de estratégias: pendura bilhetes em paredes, anda com fotos cheias de instruções nos bolsos - sobre pessoas, sobre objetos, feitas com a sua inseparável polaroide -, além de tatuar no corpo algumas verdades que considera mais definitivas. A intenção é se vingar pelo crime ocorrido no passado, algo praticamente impossível pra que não se recorda do que aconteceu 15 minutos atrás e que vai montando o quebra-cabeças com pistas tão escassas.


Para o espectador, o exercício é muito divertido - e tenso, claro! O filme vai voltando no tempo e adicionando aos poucos mais situações e pessoas que surgem no dia a dia atribulado de Lenny. Ele está em um hotel, mas parece não saber bem por qual motivo. Há na história uma mulher de nome Natalie (Carrie-Anne Moss) que também parece carregar um trauma do passado. O protagonista perambula pela cidade numa espécie de rewind fílmico, em que alguns episódios, se emendam em outros e, com as poucas informações que temos, vamos tentando, também, chegar a alguma conclusão, ainda que nada pareça ser definitivo. Como parte do flashback, cenas em preto e branco mostram que Lenny trabalhava numa espécie de seguradora, em que atendia um paciente que sofria da mesma doença incapacitante com a qual ele convive hoje. É tudo muito misterioso, complexo, claustrofóbico. Quando Teddy aparece não sabemos se ele é um amigo. Ou se tá agindo para prejudicar o protagonista. O mesmo valendo para Natalie.

É, no final das contas, uma daquelas obras de fazer cair o queixo e que nos surpreende a todo o momento, especialmente pela capacidade que a narrativa tem de desagrupar tudo o que estamos vendo para, no instante seguinte, rearranjar tudo de novo, em uma lógica de acontecimentos que vai nos ajudando a compreender o mistério - por mais que, por vezes, pensemos estar distantes de qualquer solução. É o que acontece quando uma personagem surge com o rosto machucado, por exemplo, e a gente imediatamente já tente "lembrar" do que ocorreu, sendo que ainda não assistimos ao ato em si. Pearce, que já apareceu em algumas dezenas de filmes, entrega aqui uma atuação altamente convincente: sua confusão é palpável e sua tomada de decisões parece ser, genuinamente, reflexo de sua desordem. Mas a força da obra de Nolan está, efetivamente, em seu formato narrativo que, amparado por um uso espetacular da parte técnica - tudo é bom, da fotografia à edição de som -, torna essa uma assombrosa e inesquecível obra sobre os mistérios da mente. Vale demais!

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Novidades no Now/VOD - Uma Vida Oculta (A Hidden Life)

"...o bem crescente do mundo depende, em parte, de atos não históricos; se as coisas não vão tão mal para nós como poderiam ter ido, metade devemos àqueles que viveram fielmente uma vida anônima e repousam em túmulos que ninguém visita."

(George Eliot)

De: Terrence Mallick. Com August Diehl, Valerie Pachner, Sophie Rois e Bruno Ganz. Drama / Romance, Alemanha / EUA, 2020, 175 minutos.

Quem gosta da filmografia de Terrence Mallick (de A Árvore da Vida) vai se deleitar com Uma Vida Oculta (A Hidden Life), afinal, todas as características das obras do diretor estão lá - do clima vagaroso e envolvente da narrativa até os cenários vivos e bucólicos o filme é, ainda, um primor do ponto de vista técnico. Há, como de praxe, um carinho todo especial por aqueles personagens que acompanhamos, com a câmera trafegando entre eles como se fosse uma espécie de bem-vindo observador a espionar seus comportamentos afáveis, seus diálogos espirituosos, num indo e vindo em que campos verdejantes de trigo se alternam com crianças pequenas correndo nos potreiros. Aliás, a forma de Mallick criticar a aspereza do mundo - e, aqui, neste caso mais específico, o absurdo da guerra -, é sempre elegante, contemplativa, sem pressa. Como se a brutalidade estivesse instalada em um outro local e que valesse o empenho em favor de uma vida elegíaca, em um cenário idílico, longe da morte, do sangue e dos conflitos sem sentido. A vida em família ideal: com ternura, carinho, compaixão, empatia, abraços, beijos e afagos.

Baseada em fatos reais, a obra volta para a Áustria rural do final dos anos 30, no período em que se inicia a Segunda Guerra Mundial, para mostrar uma família de agricultores que vive em perfeita comunhão com a natureza, produzindo alimentos para sobreviver em meio a um cenário de florestas, rios, montanhas e estradas, casinhas, estrebarias e igrejinhas, que formam o combo de uma vida quase idealizada. Só que o nazismo se avizinha e os homens das famílias têm sido convocados para lutar ao lado do exército alemão, sendo exatamente este o caso de Franz (August Diehk), que deverá deixar a esposa Fani (Valerie Pachner) e os três filhos para trás para participar do projeto genocida imaginado pelo Führer. Só que, para Franz, isso significa ir contra tudo aquilo que ele acredita e que demonstra em seu comportamento afável em todo o filme. O resultado? Ele se recusa a aceitar a convocação, tornando-se preso político para ser condenado, mais adiante, por traição à Pátria.


De forma bem resumida, Uma Vida Oculta pode ser encarado como um belíssimo líbelo antiguerra, que ainda traz uma importante mensagem sobre a manutenção das convicções na tentativa de tornar este um mundo minimamente melhor para quem nele permanece. Franz poderia ter sucumbido as pressões e estaria livre. Mas sob qual preço? Oprimir judeus? Matar minorias? Assassinar estrangeiros ou aqueles tidos como diferentes? No pequeno povoado em que vive, o protagonista acaba se tornando uma espécie de pária momentâneo: a comunidade lhe renega. Ele e sua família são proibidos de, sequer, entrar na capela - aliás, não chega nem a surpreender o comportamento da Igreja na guerra, que, sem cerimônia, se coloca ao lado do regime nazista. Quando o prefeito aparece, é para lhe pressionar. Todo esse clima de inconstância vai sendo instalado aos poucos na narrativa, numa série de pequenas sequências com vizinhos e parentes que não hesitam em demonstrar sua contrariedade, enquanto a família permanece convicta em suas crenças. Sabe quando você mora em uma cidade em que a maioria das pessoas votaram no Bolsonaro, são adeptas da extrema-direita mais abjeta e você é uma pessoa progressista, de esquerda? Guardadas todas as proporções - estamos falando da guerra, afinal -, o sentimento é exatamente esse.

Uma das maiores críticas ao filme tem sido a sua longa metragem de quase três horas e eu admito que uma pequena passadinha na ilha de edição poderia ter ajudado Mallick a não conceber tantas sequências repetitivas e até excessivamente expositivas. Mas, confesso, a mim, a mensagem acabou por ser ainda mais fortemente "martelada", com a espera infinita por alguma notícia (ou mesmo pelo anúncio do fim dos conflitos), gerando um sentimento ainda mais revoltante diante do absurdo daquilo que acompanhamos. Em certa altura Fani renova suas esperanças, dizendo que eles são apenas agricultores e as pessoas do mundo "precisam comer, não?". Sim, precisam. Mas se você for contrário ao regime, não importa se é agricultor, médico ou padre: nos regimes totalitários parece haver apenas um destino. "Melhor sofrer as injustiças do que promovê-las", se esforça em anunciar a mãe do protagonista a certa altura, tentando esfregar para quem talvez não tenha entendido, qual o lado certo naquele contexto de abuso. E se há algo a celebrar enquanto as lágrimas escorrem ao final do filme, é o fato de que a luta silenciosa de muitos anônimos, pode ter contribuído para que, na atualidade, a gente sofra menos do que naqueles tempos. O sino toca. As pessoas despertam. É um filme belo, poético, potente e necessário.

Nota: 9,0