quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Grandes Filmes Nacionais - O Cheiro do Ralo

De: Heitor Dhália. Com Selton Mello, Paula Braun, Lourenço Mutarelli, Xico Sá, Silvia Lourenço e Milhem Cortaz. Drama, Brasil, 2006, 101 minutos.

Um dos personagens mais desprezíveis da história da literatura nacional - e do cinema. Assim podemos resumir o narcisista, niilista, egocêntrico e simplório Lourenço, encarnado por Selton Mello em O Cheiro do Ralo com uma naturalidade desconcertante. Esse é o tipo de sujeito que faz com que o espectador só consiga torcer contra e, por mais paradoxal que seja, esse é um elogio. O entorno desse anti-heroi é pornograficamente sem graça. Proprietário de uma espécie de casa de penhores, ocupa seus dias ordinários avaliando objetos e, adquirindo, aqui e ali e de acordo com a cara do interlocutor, aquilo que acredita ter algum valor. Se por um lado, despreza um homem que lhe oferta uma caneta de ouro, de outro considera interessante comprar um olho de vidro. O que adicionará uma pitada a mais de estranheza a essa narrativa putrefata dirigida por Heitor Dhália a partir do livro de mesmo nome, escrito por Lourenço Mutarelli.

Sombrio e cômico em igual medida, esse é aquele tipo de projeto que discute as relações de poder no capitalismo - e como o dinheiro pode determinar os rumos (ou não) dos acontecimentos. Frequentador assíduo de uma lanchonete vizinha, Lourenço meio que se apaixona (ou algo do tipo) pela garçonete do local (vivida por Paula Braun). Quer dizer, não é exatamente uma paixão. Ele está é encantado pela bunda dela, executando malabarismos para que possa enxergá-la em seus melhores ângulos. Só que, incapaz de sociabilizar com ela de maneira decente - um convite pra sair, que seja, um jantar, algo mais rotineiro - comenta com ela que "pagaria para ver a sua bunda". Para quem utiliza a exploração financeira (e mesmo as dificuldades decorrentes desse cenário) de forma perversa com os seus clientes e empilha objetos de forma desvairada, pagar para ver um traseiro poderia ser algo normalizado? Talvez. Mas o caso é que o episódio apenas evidencia a inaptidão social do protagonista.

E há ainda o ralo. E o cheiro. Como uma metáfora para uma existência que fede. Que exala um odor fétido, podre por todos os seus cantos - e nem é preciso ser um especialista em alegorias para captar essa. Em cada negociação, independente do cliente, seja homem ou mulher, Lourenço alertará para o cheiro ruim do ambiente. "É o ralo, o ralinho, ali do banheiro, que tá com problema". Ele parece ter vergonha da coisa toda, ainda que jamais se envergonhe de seu comportamento nauseabundo, arrogante, insensível, torpe. Como forma de tentar conter o problema chama um encanador que, pra surpresa dele, quer cobrar um bom valor pelo serviço. Que ele recusa. Tornando tudo ainda pior quando ele mesmo tenta resolver a questão com um método pouco usual: tampando o ralo com uma mistura de cimento. O que, de forma ainda mais simbólica, evidenciará a perda de controle sobre tudo.

Filmado com uma fotografia em tons pasteis que se somam a figurinos quadrados, o conjunto reforça o aspecto vulgar, rotineiro daquilo que acompanhamos. Não há muito escape, que não seja para a recepção do estabelecimento ou para idas eventuais à lancheria - sendo tudo meio claustrofóbico, limitado geograficamente. Orbitado por diversos personagens, especialmente clientes excêntricos - com suas esquisitices e julgamentos - o dia a dia de Lourenço é o da mais pura alienação (e não chega a surpreender que sua válvula de escape em busca do prazer seja o de pagar um caminhão de dinheiro para que uma jovem fique nua enquanto ele se masturba). Sim, o cinema de Dhália pode ser provocativo, ousado, daqueles que nos deixa meio desconfortáveis. Mas é inegável ver uma obra que examina de forma tão eficiente a condição humana em sua versão mais detestável.

 

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Tesouros Cinéfilos - Código Desconhecido (Code Inconnu: Récit Incomplet de Divers Voyages)

De: Michael Haneke. Com Juliette Binoche, Ona Lu Yenke, Luminita Gheorghiu, Thierry Neuvic e Alexandre Hamidi. Drama, França, 2000, 118 minutos.

Já vi muitas pessoas desfazerem o filme Código Desconhecido (Code Inconnu: Récit Incomplet de Divers Voyages) sob o argumento de que não acontece nada nele. Mas é meio curioso: por mais eventualmente arrastada e fragmentada que seja a narrativa da obra de Michael Haneke, é interessante notar como ela permanece atualíssima em seus temas. Racismo, xenofobia, crises envolvendo imigrantes, diferenças sociais e culturais, tudo aparece salpicado aqui e ali - ainda que talvez de forma não tão coesa. Os primeiros quinze minutos, por exemplo, talvez sejam os melhores, quando acompanhamos um longo e bem orquestrado plano sequência pelas ruas de Paris. É nesse cenário que surge Anne (Juliette Binoche), uma atriz que é abordada pelo seu cunhado Jean (Alexandre Hamidi), que precisa urgentemente conversar com seu irmão Georges (Thierry Neuvic), que é o namorado de Anne.

É uma sequência em que muitas coisas acontecem - e que evidenciam em alguma medida o caos, a urgência cotidiana. Jean está pedindo para ficar alguns dias com o casal, já que abandonou o trabalho na fazenda do pai. Ele está meio enraivecido, seu comportamento é intempestivo e, após comprar um lanche, ele simplesmente arremessa os restos daquilo que consumiu em uma moradora de rua, que pedia esmolas junto à calçada. Esse é o estopim para que uma pequena confusão se instaure: insatisfeito com o comportamento de Jean, Amadou (Ona Lu Yenke) o confronta, exigindo que ele peça desculpas à mulher. Amadou é um rapaz negro, um professor de música que se compadece com a injustiça social presenciada ali, em plena luz do dia. Quando a polícia chega, por mais que algumas testemunhas apontem o que realmente ocorreu, Amadou acaba preso. E, pior, Maria (Luminita Gheorghiu), a mulher sem teto, que havia sido agredida é identificada como imigrante ilegal. Sendo, posteriormente, deportada.

Nesse sentido, não é necessária nem meia hora de filme para que percebamos a habilidade de Haneke em sua análise ferina de como operam as estruturas da sociedade. Jean, o agente provocador, sai impune do ocorrido, enquanto um negro e uma imigrante precisam prestar contas à justiça e ao Estado, o que gera um grande clima de instabilidade nas famílias dos envolvidos. A mãe de Amadou (Hélone Diarra), por exemplo, expõe as angústias de ter a sua própria casa devassada pela polícia, após o acontecido. Um constrangimento que nos deixa com a pulga atrás da orelha: não fossem eles negros, a coisa ocorreria dessa maneira? Já Maria, de volta à Romênia, se reconecta com a sua família, que vive em completo estado de precariedade. De degradação. E mesmo ela expõe preconceitos, como no instante em que revela ter lavado as mãos após ter dado dinheiro a uma cigana - o que talvez a tivesse feito pegar alguma doença.

Em alguma medida, a obra também mostra a complexidade da experiência humana, seus acasos, possibilidades e paralelos. Como atriz, Anne encena um filme em que sofre uma violência brutal - ocasião em que é presa em um cômodo fechado, sendo deixada para morrer pelos vilões (que nunca mostram seu rosto). Esse tipo de fetiche pela violência - às vezes institucionalizada, selvagem, que vêm sabe-se lá de onde - e pelo medo como modus operandi do cotidiano se repetiria na filmografia de Haneke, seja em obras como Caché (2005) ou A Fita Branca (2009). Aliás, é justamente quando o espaço entre ficção e "realidade" é burlado, durante uma tensa sequência no metrô é que nos assombramos com as possibilidades da arte como veículo de discussões. Anne tem a impressão de ouvir barulhos quando está em casa, alguém que chora. A instabilidade parece sempre pronta para bater na porta - assim como é a guerra, a doença, o extremismo. É meio brutal e imprevisível. E por isso mesmo tão potente.


segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Novidades em Streaming - Oppenheimer

De: Christopher Nolan. Com Cillian Murphy, Emily Blunt, Robert Downey Jr., Matt Damon, Florence Pugh e Josh Hartnett. Drama, EUA / Reino Unido, 2023, 181 minutos.

Lembro que a primeira vez que ouvi falar de Oppenheimer foi em meio a uma partida do jogo de perguntas e respostas Master, da Grow. A pergunta era sobre o "pai da bomba atômica", aquelas típicas questões que caíam na categoria História. Mas muito mais sobre isso, confesso que não sabia. E como sou fascinado por esses filmes de época que revolvem eventos políticos, sociais, científicos e culturais de certos períodos, foi muito fácil me conectar com a narrativa que volta no tempo para detalhar como o Projeto Manhattan se tornaria um dos maiores empreendimentos da Segunda Guerra Mundial, a partir do desenvolvimento das primeiras armas nucleares de destruição em massa. Claro que no cerne da mais recente obra de Christopher Nolan, baseada na biografia American Prometheus, parece haver algumas outras preocupações que soam até mais prosaicas, se comparada com o dilema moral do protagonista. E que versam sobre o envolvimento ou não de Oppenheimer (Cillian Murphy) com os comunistas e, na esteira disso, com eventuais conspirações que comprometessem a segurança dos Estados Unidos.

E o caso é que Oppenheimer é um filme muito grande. Contado em três linhas narrativas distintas, exigirá do espectador, aqui e ali, um grau de atenção um pouco maior, para que nenhum detalhe escape. Sim, são três horas que talvez virem seis, pela necessidade de repetir a experiência para uma maior apreciação. A complexidade é um mérito? Não sei. Alguns críticos gastam tempo falando do quão problemático é o caráter excessivamente expositivo das obras de Nolan. Afinal, não basta apenas apresentar as imagens - sempre exageradas, hiperbólicas. É preciso martelar aquilo que se vê, com um texto. Uma explicação a mais. Um diálogo que reforça. Mas é um filme sobre mecânica quântica, ora bolas! Eu, ao menos, faço questão de todas as explicações, todos os detalhes. E talvez ainda assim alguma coisa escape - e tá tudo bem, porque importante é ter em mente que Oppenheimer era um físico teórico acima da média, controverso, e que seus escritos, bom, se converteriam anos depois em artefatos bélicos que devastariam Hiroshima e Nagasaki. Promovendo uma de suas maiores tragédias.

Ainda assim é meio curioso notar como o caráter questionável das atitudes de Oppenheimer, se torna diluído diante das maracutaias políticas, que envolvem especialmente a sua relação com o almirante Lewis Strauss (Rober Downey Jr.) que, após a Segunda Guerra e, com todos os eventos já ocorridos, sondará o físico para a direção de um Instituto sobre iniciativas ligadas à energia atômica (em um espaço em que a Guerra Fria começa a tomar corpo e o nazismo dá lugar à "ameaça vermelha" e à União Soviética como campo de disputas). Naquele ponto, Oppenheimer já tinha saído dos Estados Unidos para uma temporada de estudos na Europa, retornando para sua terra natal para integrar o grupo que desenvolveria o artefato. A ideia era se antecipar à Alemanha de Hitler - o que parecia ser a desculpa ideal para que não houvesse qualquer empecilho moral (para além do simples ego). A guerra poderia ser encerrada com uma bomba? Parece uma espécie de utopia. Que jamais sairia do campo de visão do protagonista - mesmo quando ele percebe, de forma embasbacada, os resultados de suas ambições na prática.

Orbitado por uma série de figuras - como o general Leslie Groves (Matt Damon), e cientistas como Ernest Lawrence (Josh Hartnett), além da esposa Kitty (Emily Blunt) e a amante Jean Tatlock (Florence Pugh), ambas ligadas ao Partido Comunista -, Oppenheimer converterá Los Álamos, no Novo México, em uma cidade a parte, em que focará nos seus estudos. Ressentido por um episódio de humilhação pública ocorrido anos antes, Strauss será o responsável, durante uma audiência privada com o Conselho Nacional de Segurança em desacreditar Oppenheimer - o que será visto em uma segunda linha narrativa. Já a terceira, que se distingue por sua exuberante fotografia em preto e branco, envolve o interrogatório dos senadores que poderia conduzir Strauss ao cargo de Secretário do Comércio em 1954 - ocasião em que traições e distorções vêm à tona. Pode parecer complexo mas é tudo elaborado de forma a fazer com que não nos percamos em meio à questões políticas, diplomáticas e científicas daqueles tempos. Tudo com fotografia, desenho de produção, edição, figurino e som, exuberantes - o que talvez dê a obra, agora disponível pra aluguel em diversas plataformas, um sem fim de indicações ao Oscar.

Nota: 8,5


quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Novidades em Streaming - Rustin

De: George C. Wolfe. Com Colman Domingo, Aml Ameen, Chris Rock e Glynn Turman. Drama / Biografia, EUA, 2023, 108 minutos.

Um dos eventos mais conhecidos no contexto da defesa dos direitos civis e econômicos da população negra norte americana. Assim pode ser resumida a Marcha Sobre Washington, passeata realizada em 28 de agosto de 1963 e que mobilizou mais de 250 mil pessoas que, unidas sob a bandeira de emprego, igualdade e liberdade, caminharam até o Lincoln Memorial, na capital americana, onde acompanharam, entre outros, o clássico discurso de Martin Luther King Jr. Nele, o líder político afirmava ter um sonho: o de poder viver em uma sociedade sem preconceito racial. Só que o que a maioria das pessoas não sabe - mais ainda o público brasileiro -, foi o quão turbulentos foram os bastidores que levariam à Marcha, que foi organizada pelos ativistas Asa Philip Randolph e Bayard Rustin, este último uma liderança controversa (ao menos para a época), por acreditar no pacifismo como o caminho para uma sociedade mais justa, mais igualitária. Fora o detalhezinho de que ele integrava o Partido Comunista e era gay, o que nos anos 60 (e talvez até hoje) também poderia ser um tipo de afronta.

Pois é justamente esse o contexto de Rustin, filme dirigido por George C. Wolfe que, depois de A Voz Suprema do Blues (2020), tem se especializado em cinebiografias verborrágicas e com uma paleta de cores mais vibrante. O que resulta em um tom mais leve, com a mão menos pesada, mesmo quando o tema é potente. Interpretado por Colman Domingo - que tem reais chances de conseguir uma indicação ao Oscar pelo papel -, Bayard Rustin é apresentado como um sujeito idealista e cheio de vida que, após um ato de chantagem envolvendo um proeminente político conservador, se vê meio que obrigado a abandonar a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP), rompendo inclusive com Martin Luther King (Aml Ameen). Aliás, a obra mostra bem como, a despeito das dificuldades de fazer avançar as políticas de igualdade em uma sociedade dominada por homens brancos, idosos e antiquados, havia ainda muitas disputas internas envolvendo os diversos coletivos e organizações que lutavam pelos direitos dos negros. O que, ao cabo, também era uma barreira a mais.

Um bom exemplo nesse sentido foi Roy Wilkins (Chris Rock), outra liderança da NAACP que, nem sempre foi favorável aos métodos de Bayard - pautados pela doutrina antibelicista acima de tudo, mesmo em um contexto de disputas. Os anos 60 nos Estados Unidos foram efervescentes. E, a despeito de o Congresso ter determinado, no começo da década, que a segregação racial era inconstitucional, ainda havia muitas barreiras. Especialmente quando o assunto era o Sul do País, onde havia maior resistência em aceitar a inclusão de negros em espaços públicos - e não era incomum, por exemplo, locais como ônibus ou restaurantes destinarem espaços à parte, separados por raça. Quebrar essa lógica era difícil, complicado. E Bayard acreditava que uma marcha voluptuosa, consistente, poderia chamar a atenção da mídia, dos congressistas e do público em geral para a questão. Claro que organizar a logística da coisa toda não seria tarefa fácil. E, por mais romantizada que seja a experiência do filme, não deixa de ser interessante conferir como evoluiu cada etapa do arranjo da marcha.

Escolhendo uma abordagem mais amistosa, não tão panfletária, Wolfe amarra cada ponta de forma a tornar complexa cada figura que nos é apresentada. Incriminado por "conduta inadequada" no passado, ao ter sido preso por atentado ao pudor, Bayard precisa superar certa desconfiança mesmo dentro dos coletivos que estão ao seu lado. E nem sempre a obra parece fazer as melhores escolhas quando o assunto é a trilha sonora ou a edição - há alguns cortes abruptos meio estranhos e umas músicas selecionadas que não parecem dialogar com aquilo que assistimos (há momentos tensos em que um jazz frenético é inserido de forma completamente deslocada, por exemplo). Mas tudo isso não apaga o brilho do filme que tem produção do casal Obama e que não esconde detalhes do homossexualismo de seu protagonista que, em meio as lutas, poderia ser acusado de certo hedonismo (se o crime dele fosse amar demais). Ao cabo, essa é uma obra importante, especialmente pelo fato de o tema da igualdade racial nunca perder relevância. Ainda mais nos Estados Unidos, que parece repetir episódios de violência de forma permanente, estando ainda longe de uma solução mais satisfatória pra questão.

Nota: 7,5


segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Tesouros Cinéfilos - Instinto Selvagem (Basic Instinct)

De: Paul Verhoeven. Com Sharon Stone, Michael Douglas, Jeanne Tripplehorn e George Dzundza. Thriller / Policial / Suspense, EUA / França, 1992, 129 minutos.

Quando a gente pensa em Instinto Selvagem (Basic Instinct) é meio que instantâneo nos vir à mente a clássica cena da "cruzada de pernas", protagonizada pela Sharon Stone no auge da sua beleza hipnotizante. Só que essa famosa sequência não pode ofuscar o óbvio: pra além da cena, o filme de Paul Verhoeven é, talvez, o melhor thriller policial dos anos 90 - com aquele DNA legítimo de sua década, mas sem ignorar outras produções do passado que, muito provavelmente, foram referência. Até porque há todo um quê hitchcockiano na obra - por mais que hoje em dia talvez seja meio clichê esse tipo de adjetivação. Mas o caso é que o filme já abre com uma morte violentíssima e, vá lá, inesperada. Um casal transa vigorosamente até o instante em que uma mulher loira (não conseguimos ver bem o seu rosto), saca um picador de gelo, furando o homem uma dezena de vezes. Um assassinato macabro, que mobilizará uma equipe de investigação, estando entre eles o detetive Nick Curran (Michael Douglas).

Como de praxe nesses casos, uma das principais suspeitas do assassinato de Johnny Boz (Bill Cable) - um astro de rock aposentado -, se torna a sua namorada Catherine Tramell (Stone) uma herdeira de patrimônio milionário, que também "ataca" de escritora. E, para surpresa geral dos detetives, o seu livro anterior possuía um recorte narrativo bem curioso, estilo a vida imita a arte: nela, uma mulher cometia um crime justamente matando um homem com um... picador de gelo. Um álibi poderoso? Uma curiosa excentricidade? Alguém cometendo um crime idêntico ao da obra literária, apenas para incriminar Catherine? O comportamento ambíguo e sedutor da suspeita torna tudo ainda mais complicado. Em certa altura, a caminho da delegacia para o seu depoimento, ela revela à Nick e a seu inseparável companheiro Guz (o carismático George Dzunza), que está produzindo um novo romance: nele, um detetive se apaixona pela mulher errada. O que ela revela num tom que leva o deboche ao limite.

Aliás, é justamente o charme zombeteiro adotado por Catherine, que vai exaurindo (mas também apaixonando) Nick. Enquanto os investigadores não conseguem ter a certeza de nada em relação ao crime cometido ou mesmo quem estaria por trás - após a perícia não há provas suficientes que possam incriminar a mulher, mesmo que uma série de elementos pudessem ligá-la ao assassinato -, uma série de segredos do passado, envolvendo não apenas Catherine mas também Nick, vão sendo relevados. Nick também também tem seus traumas: com um histórico de alcoolismo e de consumo de cocaína, teria cometido um grave erro alguns anos atrás, ao abrir fogo por engano em dois turistas, matando-os acidentalmente. O que será um prato cheio para a romancista, que usa essas informações a seu favor de forma provocativa. Nesse combo há ainda a atual namorada, de Catharine, Roxy (Leilani Sarelli) e a psicóloga Beth Garner (Jeanne Tripplehorn), que teve um caso com Nick, recentemente. Todas essas figuras emergirão envoltas em mistérios e em surpresas que tornam a narrativa excitante o tempo todo.

Extremamente bem executado do ponto de vista técnico, o filme ainda utiliza os cenários litorâneos de San Francisco para criar uma série de instantes tensos - especialmente os de perseguição desenfreada. E mesmo sequências menos complexas, possuem uma carga dramática inquietante, como é o caso daquela que envolve o primeiro encontro entre Nick, Guz e Catherine, no deck de sua enorme residência, com vista para o mar (uma cena tão inspirada em Hitchcock, que ela não faria feio em uma produção do mestre realizada ainda nos anos 50, em que policiais desavisados precisam lidar com loiras fatalíssimas). Com excelente trilha sonora e um figurino inesquecível, a obra ainda é cheia de ambiguidades, promovendo um jogo de caça e caçador em que nunca temos a certeza do que vai acontecer - e de quem estará à frente de quem. [ATENÇÃO, A PARTIR DAQUI UM GRANDE SPOILER] E ainda há a inesquecível sequência final como cereja do bolo, com os créditos subindo instantes após um picador de gelo ser revelado embaixo da cama. O que nos deixará desconfortáveis e com mais dúvidas do que certezas. Mas com um inadvertido sorriso no rosto. Filmaço!


quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Novidades em Streaming - Verdades Dolorosas (You Hurt My Feelings)

De: Nicole Holofcener. Com Julia Louis-Dreyfuss, Tobias Menzies, Michaela Watkins e Arian Moayed. Comédia / Drama, EUA, 2023, 93 minutos.

Existe uma cena central em Verdades Dolorosas (You Hurt My Feelings) - novo filme da diretora Nicole Holofcener (À Procura do Amor, 2013) - que, em alguma medida, fornece um resumo do tipo de dilema que move a narrativa. Nela, a escritora Beth (Julia Louis-Dreyfuss, a nossa eterna Elaine, de Seinfeld) resolve fazer uma surpresa ao marido e ao cunhado em meio a uma tarde de amenidades, em que ela está acompanhada da irmã Sarah (Michaela Watkins). Quando chegam em uma loja meio às escondidas, escutam, por acidente, uma conversa entre Don (Tobias Menzies) e Mark (Arian Moayed) - justamente o instante em que Don, o marido de Beth, revela a Mark, que é seu cunhado que, bom, talvez ele não tenha gostado tanto assim do novo livro da esposa que, na realidade é apenas um manuscrito que, mais adiante, talvez se torne o seu primeiro romance (anteriormente ela fez algum sucesso com uma autobiografia).

Para Beth, que tem no ofício da escrita algo fundamental em sua vida, não poderia haver maior afronta. Especialmente pelo fato de Don sempre elogiar o esforço literário de sua companheira de vida que, ao cabo, ainda está em construção. O caso é que essa perda de confiança deixa Beth arrasada. E cheia de incertezas em relação ao seu talento ou potencial narrativo. Com tudo piorando quando Beth escuta algumas duras verdades de uma editora com quem ela está em contato. Será ela uma farsa? E, mais do que isso, por que o marido não falou simplesmente a verdade durante suas conversas domésticas, a respeito do livro que estava em produção? Sim, parece um fiapo de história - um "filme sobre o nada", como brincaram alguns críticos estrangeiros, em uma alusão à antiga série estrelada por Julia. Mas ao mesmo tempo é uma obra que faz interessantes divagações sobre temas como incertezas profissionais, autossabotagem, crises de meia idade e até esgotamento e desencanto nos tempos modernos.

Por que, vamos combinar que, todos nós em algum momento já fomos invadidos por sentimentos de insegurança e de pressão no mercado de trabalho. E o que o filme mostra é como esses desafios cotidianos podem ser invasivos no que diz respeito à esfera íntima. Por que, até a revelação de Don, era possível ver como a relação entre ele e Beth era amistosa, amigável. Aliás, eles são tão parceiros na vida que até dividem o mesmo prato de comida ou o mesmo sorvete - pra estranhamento do filho Eliot (Owen Teague). Mas por quê diabos, então, Don teria mentido à Beth? Existe a possibilidade de suprimir a verdade, como forma de não magoar o outro? Especialmente se esse outro for alguém que você ama? Quais os limites éticos e morais pra isso? "Eu não queria desencorajá-la e, de qualquer forma, o que importa a minha opinião que é apenas isso... uma opinião", tenta argumentar Don, meio que em vão.

Na trama, a gente perceberá ainda que nem todos ali estão no seu melhor momento profissional. Don é um psiquiatra que se sente meio ultrapassado, quando seus pacientes começam a se queixar de ele não estar simplesmente resolvendo seus problemas. Já Sarah é uma decoradora de interiores que parece estar meio de saco cheio da burguesia emergente e suas afetações, ao não conseguir atender uma jovem rica em uma simples instalação de luminária. Para Mark, um ator que nunca alcançou o sucesso sendo lembrado apenas por um papel minúsculo em um filme em sua juventude, a situação é ainda pior: ele é demitido da companhia de teatro em que trabalha, em meio a encenação de uma nova peça. Mas mesmo com tantos dilemas da vida cotidiana, o que o filme parece nos querer fazer lembrar o tempo todo é que a existência é cheia de altos e baixos, conquistas e fracassos, de momentos de esperança e de gratidão que se alternam com outros de sofrimento e incertezas. Essa é a experiência de estar vivo. E uma mentirinha aqui e ali não apagará tudo de gigante que move o entorno. É uma mensagem poderosa, afinal.

Nota: 8,0


terça-feira, 14 de novembro de 2023

Novidades em Streaming - O Assassino (The Killer)

De: David Fincher. Com Michael Fassbender, Sophie Charlotte, Tilda Swinton e Charles Parnell. Suspense / Drama, EUA, 2023, 118 minutos.

Tirada de uma série em quadrinhos, a premissa de O Assassino (The Killer) é muito boa: e se as coisas dessem muito errado para um matador de aluguel que, na hora de cumprir a sua missão, simplesmente errasse o seu alvo? Esse é o ponto de partida para a nova produção dirigida por David Fincher (Mank, 2020), que acaba de estrear na Netflix. E por mais que esse seja um thriller de um sujeito em fuga, que precisa confrontar os seus algozes, é preciso que se diga que este é um filme muito mais contemplativo e filosófico, do que poderia supor o seu resumo. Aqui, Fincher não está interessado em grandes reviravoltas, em acontecimentos turbulentos ou em câmera desenfreada. Aliás, esse é um aspecto que tem decepcionado alguns espectadores: a coisa toda tá muito mais pra Soldado Anônimo (2005) do que pra 1917 (2019) - pra ficar em dois filmes de guerra dirigidos por Sam Mendes, com propostas bem distintas.

A obra, aliás, já inicia em seu preâmbulo com uma espécie de aviso a quem a acompanha: para ser um profissional que "trabalha" matando pessoas há que se ter paciência. "É incrível como pode ser fisicamente cansativo não fazer nada. Se você é incapaz de suportar o tédio, essa ocupação não é pra você", comentará a narração em off que se arrastará por minutos a fio - quase tornando insuportável o estilo petulante do protagonista (vivido por Michael Fassbender). Claro que não demorará para que percebamos que as divagações do sujeito não passam de meras abstrações, enquanto, instalado em um quarto no topo de um prédio, aguarda o passar das horas (e o consequente instante em que seu alvo surgirá diante de sua mira). E eu não vou negar que meio que me irritei ao ver essa figura torpe tendo digressões sobre a forma como Paris amanhece, sobre quantas pessoas visitam o McDonalds diariamente ou a respeito do número de pessoas nascem ou morrem por segundo, entre outras distrações.

Há, aqui e ali, certo abuso dessas narrações em off - ainda que a gente acompanhe apenas esse sujeito praticamente o tempo todo (e tudo aquilo que está em sua cabeça). E se há um mérito no filme é justamente essa inversão de expectativas, por estarmos do outro lado da equação que seria a mais lógica dentro de um filme de perseguição policial, onde seria mais convencional acompanhar o trabalho de detetives, investigadores e policiais que, porventura, estivessem em busca de um eventual assassino. Aqui o sujeito erra o tiro na arrancada - acerta uma jovem mulher que não sabemos nem direito quem é -, já tendo que se confrontar, apenas um dia depois, com as duras consequências de seu equívoco: o que envolve a violência sofrida por sua esposa (a brasileira Sophie Charlotte) como forma de retaliação, na propriedade do casal em Santo Domingo. Ela até não morre, mas por pouco. E o matador promete a si próprio, a ela e ao irmão da vítima, caçar os executores.

Meticuloso, a sua ideia será sempre se antecipar aos seus carrascos. No submundo, acessará pessoas, arquivos e locais que possam levar à identidade de seus contratantes - naturalmente mantida em sigilo. O erro, afinal, pode representar um problema pra todos ali. Sendo complicado resolver a coisa toda sem uma dose extra de violência - sempre a sangue frio. Com fones de ouvido inseparáveis, que tocarão uma coletânea de músicas dos Smiths - algo que não chega a ser tão incongruente, dadas as novas "posturas" de Morissey no que diz respeito a certos assuntos -, o sujeito saltará da República Dominicana para Nova Orleans, Flórida, Nova York e Chicago, sempre mudando sua identidade, seu figurino, sua aparência e até a sua personalidade, naquele ideal de se manter nas sombras. Nesse sentido, o filme como um todo pode ser meio cansativo ao juntar fotografia soturna, silêncios esticados e itinerários contínuos. Ainda assim o projeto é engenhoso e se permite alguma tensão - especialmente no terço final.

Nota: 8,0

 

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Novidades em Streaming - Crescendo Juntas (Are You There God? It's Me Margaret)

De: Kelly Fremon Craig. Com Abby Ryder Fortson, Rachel McAdams, Kathy Bates, Ben Safdie e Elle Graham. Comédia / Drama, EUA, 2023, 106 minutos.

Uma das produções mais carismáticas, cativantes e divertidas da temporada. Assim pode ser resumida a experiência com Crescendo Juntas (Are You There, God? It's Me Margaret), filme de Kelly Fremon Craig, que estreou na última semana na HBO Max. Aliás, essa é a prova viva de que não é preciso muita invencionice na hora de fazer obra sobre amadurecimento. Sobre as dores e incertezas que surgem na pré-adolescência. É tudo muito gracioso, singelo, realista - o que também envolve as interpretações de todo o elenco, especialmente da jovem Abby Ryder Fortson. É ela que é a Margaret, do título original. Que, sim, do alto de seus onze anos, evocará Deus de uma maneira meio torta, sempre que tiver alguma dúvida, medo ou anseio. Aliás, a sua primeira angústia real ocorre quando, ao retornar de um passeio de escola, seus pais Barbara (Rachel McAdams) e Herb (Ben Safdie) anunciam que se mudarão de Nova York para Nova Jersey. 

E quem já teve de se mudar na infância sabe o quão doloroso isso pode ser. Novos amigos, novos colegas de aula, nova vizinhança. Nova casa. Novo tudo, na real. Ainda assim, não serão necessários nem cinco minutos na nova morada para que a pequena (e afetada) Nancy (Elle Graham) a convide para um programa tão juvenil quanto divertido: aplacar o calor tomando um banho improvisado na água que sai do sistema de irrigação do jardim. Rapidamente ela se integrará a uma espécie de grupo de meninas - um Clube da Luluzinha - que é completado por outras duas meninas. A cada encontro os assuntos terão variações que envolvem mudanças corporais - Nancy se vangloria de já precisar de um sutiã, por exemplo -, passando pelo garoto padrão pelo qual todas são apaixonadas, até chegar ao primeiro beijo, primeira menstruação e outros eventuais dilemas típicos da idade.

Sim, quem lê essa resenha pode até se perguntar onde, exatamente, está a novidade. Comédias adolescentes do subgênero coming of age existem desde sempre e, em muitos casos, podem apenas se repetir. E, sinceramente, não sei se foi o fato de ficar com um sorriso enternecido quase o tempo todo, já que os personagens fogem um tanto do estereótipo esperado. Os pais de Margaret, por exemplo, não são xaropes, pouco amorosos, ou excessivamente conservadores do ponto de vista geracional. O que não impedirá que haja discussões e brigas que, ali adiante, se converterão em abraços calorosos e pedidos de desculpas (família, né, quem nunca?). Já a avó judia (interpretada pela ótima Kathy Bates) foge do que seria o padrão de uma religiosa fervorosa, sendo uma figura calorosa e amorosa, que permite à neta que as coisas ocorram à ela a seu tempo.

Aliás, a religião é um ponto central da narrativa. Mas não do ponto de vista panfletário. Os pais de Margaret desejam que ela decida por si qual crença seguir e há um embate familiar paralelo que, aqui e ali reaparece, e que envolve judeus e cristãos. Ainda assim a obra não está ali para dizer que isso ou aquilo é bom - e, vá lá, até o ateísmo pinta como uma eventual possibilidade. Com um desenho de produção primoroso - a recriação dos anos 70 (época em que o filme se passa) é tão perfeita, que não seria nenhuma injustiça uma lembrança no Oscar - e figurinos idem, o filme ainda aposta em uma fotografia levemente saturada e uma trilha cheia de grandes nomes setentistas que completam esse contexto de forma magistral. E há ainda os diálogos, espirituosos mas simples, cheios de comentários sociais engraçados e nunca exagerados. A gente vê por aí tantas comédias simplesmente forçando a barra na hora de tentarem (em vão) serem engraçadas. Essa aqui consegue naturalmente. Sem esforço algum. Sendo apenas nostálgica e agridoce. O público agradece.

Nota: 8,5


quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Cinema - Anatomia de Uma Queda (Anatomie D'une Chute)

De: Justine Triet. Com Sandra Hüller, Samuel Theis e Milo Machado-Graner. Drama / Suspense, França, 2023, 151 minutos.

"Eu não dou a mínima para a realidade. O que você precisa começar a perceber é a forma como os outros enxergarão você. O julgamento não é sobre a verdade. É sobre o que parece a verdade". A frase dita pelo advogado Vincent (Swann Arlaud) à Sandra (a sempre ótima Sandra Hüller) surgirá, com pequenas variações, mais de uma vez durante os quase 150 minutos de Anatomia de Uma Queda (Anatomie D'une Chute) - filme dirigido por Justine Triet (Sibyl, 2019), que está em cartaz no Festival Varilux de Cinema Francês, que inicia hoje em todo o País. Sandra é acusada de, talvez, ter matado seu próprio marido Samuel (Samuel Theis) em circunstâncias misteriosas e de difícil explicação para a Justiça. E, depois do surgimento de uma gravação que envolve uma pesada discussão entre o casal, apenas um dia antes da morte de Samuel, o advogado de defesa tenta de toda a forma lembrar Sandra que, vá lá, talvez a realidade dos fatos não seja tão importante assim. O que vale mesmo é a aparência da coisa toda.

E, em alguma medida, a meu ver, é nesse contexto que reside o brilhantismo da obra, que venceu a mais recente Palma de Ouro do Festival de Cannes - e que pode surgir mais adiante em certas categorias do Oscar. Ao cabo, essa é uma produção que nos arremessa de lá para cá o tempo todo, nos deixando em dúvida sobre os acontecimentos - e também sobre Sandra. Ela é culpada mesmo? Foi ela que cometeu o crime? Aliás, houve mesmo um crime, ou a queda de Samuel do segundo andar em que moram, em um chalé isolado nas montanhas, foi um acidente? Mais do que isso, o sujeito teria algum motivo para dar cabo da própria vida? Nessa equação complexa ainda entra o filho do casal, Daniel (Milo Machado-Graner), um menino com uma deficiência visual, decorrente de um acidente que talvez pudesse ter sido evitado, se Samuel não tivesse sido negligente anos atrás, quando do ocorrido. Como superar esse sentimento de culpa? Esse trauma? Essa dor mútua?

Hábil, a diretora é capaz de gerar desconforto já nos primeiros quinze minutos de projeção, quando Sandra - uma escritora de romances renomada -, recebe uma aluna que pretende entrevistá-la. O instante, que era pra ser agradável, ganha contornos pesados quando, no andar de cima da habitação, Samuel começa a trabalhar acompanhado de uma versão instrumental de P.I.M.P., do 50 Cent - que, com sua letra misógina e com certo pendor pra violência, torna tudo mais incômodo. A canção, com seu volume alto, invade o ambiente, o que nos permite saber que algo ali talvez não esteja bem. Com tudo piorando com a morte do marido, praticamente na cena seguinte. Claro que tudo isso sendo um ótimo preâmbulo para os acontecimentos que se descortinarão dali pra frente - que envolvem as tentativas do advogado de estabelecer uma "verdade" para os fatos que possa ser favorável para Sandra.

Para quem gosta de filme de tribunal naquele estilo clássico de longas divagações, de pontos e contrapontos, de provas sendo apresentadas, evidências sendo desconstruídas, surpresas sendo reveladas e incertezas em meio a tudo, esse aqui será um prato cheio. De reconstituição dos eventos - com direito a apego em pequenos detalhes que possam alterar nossa percepção de forma instantânea -, passando por autópsias e perícias inconclusivas, testemunhas que podem apresentar novos elementos e diálogos estendidos até o limite (aliás, palmas para a atuação de todo o elenco, inclusive do pequeno Milo), aqui temos um exercício de estilo de suspense policialesco que bebe na fonte de filmes noventistas como Instinto Selvagem (1992) e As Duas Faces de Um Crime (1996). Vale mencionar ainda que esta não é uma obra que se pretende conclusiva. Nos bastidores, parece que a própria Sandra Hüller teria perguntado à diretora sobre se sua personagem era ou não a culpada, não obtendo nenhuma resposta da diretora. A ambiguidade de tudo, é o que torna a experiência magnética, reflexiva e irresistível.

Nota: 9,0


segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Pitaquinho Musical - Jaloo (Mau)

Não foram necessárias muitas audições para perceber que, com Mau, a cantora Jaloo parece estar muito mais à vontade. Não que ela não estivesse nos primeiros trabalhos - os elogiados #1 (2015) e ft. (pt. 1) (2019), que apareceram nas listas de melhores do Picanha daqueles anos -, mas aqui ela surge muito mais segura. E muito mais madura. Especialmente na hora de celebrar o seu lado feminino. Como um ser em mutação, ela abandonou completamente o visual de cabeça raspada que se via nos materiais de divulgação do disco anterior - que a colocava num lugar que emulava mais o masculino -, para surgir de cabelos longos, maquiada, com salto alto. "Tudo faz parte de um ciclo, de um momento e também do meu processo criativo. Vivo em constante movimento", comentou em entrevista ao Ig, salientando ainda que o feminino já havia emergido há tempos. "Eu só não tinha compartilhado com o público", pontuou.

O resultado são canções que, como de praxe, mesclam estilos variados de forma muito criativa - levando a estética tecnobrega, o forró e os ritmos latinos e periféricos até o limite, especialmente quando encontram a música eletrônica, o trap, o R&B e o dream pop. Nesse sentido, não é por acaso que alguns arranjos parecem saídos de algum filme de ficção científica gravado no região norte do País. É uma mistura coesa, rara, cheia de personalidade, que resulta em joias como Ocitocina, que talvez não fizesse feio em algum disco da Grimes fase Visions (2012). Já as letras, falam de relacionamento de forma direta, ousada, sem ignorar a conexão com assuntos mais profundos, políticos e de contextos sociais. A própria faixa título, por exemplo, versa sobre saúde mental, sobre vícios e repetições de forma bastante íntima e sem haver vergonha ou tabu. Um dos grandes registros do ano.

Nota: 8,5


Novidades em Streaming - Nyad

De: Elizabeth Chai Vasarhelyi e Jimmy Chin. Com Annette Bening, Jodie Foster e Rhys Ifans. Drama / Biografia / Aventura, EUA, 2023, 121 minutos.

Vamos combinar que histórias de superação costumam ter bom apelo junto ao público - e não deve ser muito diferente com Nyad, que acaba de estrear na Netflix. Esse é aquele tipo de projeto que parece movido por frases motivacionais que não fariam feio em palestras de coachs mundo afora - mas que se sustenta no carisma das duas protagonistas. Sim, em alguma medida eu não vou negar que me incomodou um tanto aquele clima meio forçado de "você pode vencer os desafios, ter um propósito, basta querer", mas, ok, não vou ser tão ranzinza, até mesmo porque estamos diante de uma narrativa real - no caso o feito histórico da nadadora maratonista Diana Nyad (Annette Bening, que tenta pleitear uma vaguinha no Oscar), que foi a primeira atleta a não apenas atravessar os cerca de 165 quilômetros de Havana em Cuba à Key West na Flórida, mas realizou a proeza aos 64 anos. Depois de alguns traumas na juventude e de uma série de outras tentativas frustradas.

Assim como em outras histórias biográficas e esportivas, aqui, acompanharemos a preparação de Diana - ao lado de sua melhor amiga/crush e treinadora improvisada Bonnie (Jodie Foster) -, para executar a prova de resistência. E ainda que o desafio seja imenso e os perigos gigantescos - especialmente no que diz respeito à fauna marítima, com tubarões, vespas do mar, arraias e outros -, o clima jamais soa excessivamente pesado ou duro. O que pode ser percebido na fotografia e nos figurinos primaveris e coloridos e na trilha sonora cheia de petardos do rock clássico, com nomes como Neil Young, Janis Joplin e Simon & Garfunkel. Aliás, a abertura com The Sound of Silence, enquanto Diana dá as suas braçadas em meio à memórias de sua jornada como estrela da natação na juventude, poderia soar dolorida em outras circunstâncias, mas ali tem um tom apenas esperançoso. Aliás, esse é o tipo de filme que não fará feio em futuras exibições na Sessão da Tarde ou em sessões para toda a família.

Assim, talvez não seja por acaso os momentos de maior tensão envolverem justamente os ataques de animais em alto mar - e, diga-se de passagem, a obra dos diretores Elizabeth Chai Vasarhelyi e Jimmy Chin me fez aprender sobre os riscos da já citada vespa do mar, talvez um dos seres mais venenosos do mundo. Sem uma gaiola que lhe protegesse - outra ousadia -, Diana também precisou recorrer a outras tecnologias pra manter os tubarões à distância. A equipe grandiosa que lhe acompanha em sua obstinada missão tem no navegador John Bartlett (Rhys Ifans) um importante ponto de convergência. É ele que, ao cabo, determinará quais as condições climáticas ideais ou não para a empreitada - o que resultará, inevitavelmente, em discussões. Afinal, esse pode ser um filme sobre obstinação, mas talvez seja muito mais sobre relações humanas, como elas se desenvolvem, se permanecem ou não e como se movem no transcorrer de anos. Ou décadas.

Lá pelas tantas, Bonnie até dá a entender que teve um caso com Diana, mas isso não é aprofundado. Assim como o abuso sexual sofrido pela nadadora é visto em flashbacks apenas discretos - ainda que, inegavelmente, impactantes. Talvez se fosse um documentário - aliás, a especialidade dos diretores, os nomes por trás do oscarizado Free Solo (2018) - e talvez essas questões pudessem ser melhor exploradas. Ou mesmo se essa fosse uma produção mais existencialista e reflexiva sobre os limites humanos - e não apenas uma aventura escapista sobre volta por cima. Obstinada, divertida, eventualmente ranzinza, Nyad foi muito famosa na sua juventude. Lançou livros, foi palestrante, comentarista de TV, apareceu em talk shows. Mas decidiu fazer uma loucurinha após os 60 anos, sob todas as desconfianças. Os ventos tentaram empurrá-la para longe. Mas ela comprovou ser possível. A conclusão, por óbvio, emociona. Se haverá espaço para outros voos - ou braçadas -, o tempo dirá.

Nota: 7,5