sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Picanha.doc - Won't You Be My Neighbor?

De: Morgan Neville. Documentário, 94 minutos.

Tomar conhecimento de histórias que a gente sequer sonhava que existiam é uma das tantas coisas mágicas possibilitadas pelo cinema. E, no caso dos documentários, essa sensação é maior ainda! Won't You Be My Neighbor? - obra que provavelmente estará entre as indicadas ao Oscar em sua categoria - tem como figura central Fred Rogers famoso apresentador da televisão americana, que esteve no ar por mais de 30 anos em um programa voltado ao público infantil do canal educativo PBS (seria a nossa TV Cultura). Avesso ao padrão televisivo "atiro uma torta na cara de alguém para dar risada depois", Rogers foi na contramão do meio sendo utilizado (apenas) como entretenimento puro. Para ele, um programa de TV deveria ajudar a criança não apenas a compreender questões básicas da vida - fosse por meio do uso de jogos e de fantoches - como deveria ser o veículo de aprendizado para temas espinhosos como luto e respeito às diferenças.

No lugar de programas e de desenhos ultracoloridos, frenéticos e que viam as crianças apenas como mais um veículo para o consumo, um cenário prosaico em tons pasteis, reis, rainhas e animais de pano falantes e a voz plácida de Rogers - um padre que também tocava piano - guiando tudo. Tinha tudo pra dar errado, claro. Quem assistiria um negócio sonolento desses? Mas nos primórdios da televisão americana, o show foi um fenômeno de audiência. Pais, mães e crianças ficaram paralisadas diante da simplicidade comovente do apresentador, de sua serenidade e de seu traquejo na abordagem dos mais variados assuntos. Em cada um dos mais de 1.700 programas, uma lição de moral diferente, exibida de forma sinuosa, envolvente. Em um deles, por exemplo, Rogers convida o policial negro Clemmons (o músico François Clemmons) a escaldar os pés junto com ele, em um dia de calor. Nos anos 60, ainda era muito comum a segregação, com negros distantes dos ambientes frequentados pelos brancos. Rogers queria demonstrar, com a sua singela e sutil esquete, que não havia problema algum nisso.



Um filme sobre um apresentador de TV visionário, sem dúvida nenhuma conta com um riquíssimo material visual que o embase. Em meio a cenas de bastidores e dos próprios programas, integrantes da equipe técnica, familiares, jornalistas, pesquisadores e até personalidades, como o violoncelista (e amigo pessoal) Yo Yo Ma, falam sobre a trajetória de Rogers e de seus esforços (quase como uma luta pessoal) na aposta da gentileza, da bondade e da empatia, como forma de comunicação. O apresentador definia a sua vizinhança (que seria uma metáfora para todas elas) como "um espaço para pessoas diferentes, com opiniões diferentes, conviverem de forma harmoniosa". Mensagens sobre se aceitar como se é, numa espécie de comunicação quase espiritual, elegíaca e sem excessiva retórica, era a sua forma de trabalhar. Enquanto os Estados Unidos se transformavam - Bobby Kennedy era assassinado e missões da NASA à Lua falhavam - Rogers se empenhava em explicar cada uma dessas questões, didaticamente, sem nunca pesar a mão, para as crianças americanas. Sim, o mundo estava lá, ele não era fácil e as crianças americanas precisavam compreender isso.

Foi dessa forma que Rogers e as crianças criaram um vínculo eterno com ele. Ele ajudou a formar uma geração inteira de americanos? Não, os detratores o acusavam de várias coisas - de alienação, de fazer as crianças acreditarem que eram mais "importantes do que eram, na verdade" e até de ser gay. Aliás, nas cenas de arquivo lamentáveis de sua morte, um grupo de fanáticos intolerantes - daqueles que hoje em dia votariam no Trump e no Bolsonaro - vociferavam mensagens cheias de ódio à uma figura que deturpava (de acordo com eles), a visão do ideal da "família americana" - por mais que ele fosse casado. Com sequências absolutamente comoventes - como na cena em que Rogers reencontra uma criança com deficiência anos depois de ter participado do programa - Won't You Be My Neighbor? é uma obra otimista, que honra um programa americano que era conhecido por respeitar os sentimentos, anseios e frustrações juvenis. "O aprendizado mais importante é a habilidade de aceitar e esperar erros e lidar com as frustrações que os acompanham". Foi com esse tipo de frase, óbvia mas nunca fácil, que Rogers marcou época na televisão americana.

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