quarta-feira, 25 de julho de 2018

Grandes Filmes Nacionais - Arábia

De: Affonso Uchoa e João Domans. Com Aristides de Souza, Murilo Caliari, Renata Cabral e Renan Rovida. Drama, Brasil, 2018, 95 minutos.

No Brasil pós Golpe, em que sujeitos engravatados decidem, dentro de gabinetes bem refrigerados, pela subtração de direitos trabalhistas há muito conquistados ou por reformas previdenciárias que agradam apenas a uma pequena parcela da sociedade, um filme como Arábia se torna ainda mais impactante. A obra dos diretores Affonso Uchoa e João Dumans, exibida nos últimos festivais de Rotterdam e San Sebastián (e premiado em Brasília), é uma verdadeira ode ao trabalhador comum - aquele sujeito fragilizado que anda pelos rincões do Brasil para oferecer a força física e que convive com a insegurança dos precários contratos de trabalho e com "patrões" que lhes sugam até a última gota de suor sem se preocuparem com qualquer tipo de reação daqueles que eles exploram. É uma obra dura, triste, áspera, desalentadora. E inacreditavelmente real e atual.

O filme começa com um longo preâmbulo em que somos apresentados a André (Murilo Caliari), jovem que vive em Ouro Preto e que é responsável por cuidar de seu irmão mais novo, que parece sofrer de severos problemas respiratórios. Quem lhe ajuda nessa tarefa é a sua tia, que trabalha como enfermeira no local, atendendo pessoas humildes. Em certo dia ela é chamada para socorrer o operário Cristiano (Aristides de Souza), que sofreu um acidente na fábrica em que trabalha como operador de máquinas. É no instante em que a tia de André pede que ele vá a casa do sujeito para pegar roupas e utensílios básicos, que há uma ruptura na trama: o rapaz encontra uma espécie de diário que contém as memórias da vida de Cristiano. É o momento em que a história volta alguns anos no tempo para que tomemos conhecimento do conteúdo do caderno. 



A narração em off feita pelo próprio Cristiano é realizada com um palpável tom de melancolia, trazendo à tona uma realidade de opressão que é a de muitos brasileiros - e que, se não estivesse registrada em papel, provavelmente jamais seria rememorada. Dos anos labutando para um grande produtor na colheita de laranjas, passando pelo serviço na construção civil, até chegar a tentativa de tocar a vida na fábrica, todos os eventos descritos no caderno lido por André tomam por base a relação da personagem central com o trabalho - e sobre como as desventuras na tentativa de ganhar a vida de forma honesta, indo de cidade em cidade, são acobertadas pela falta de esperança por dias melhores. Seus poucos momentos de felicidade - como na paixão cheia de inseguranças com a colega de trabalho Ana (Renata Cabral) - jamais conseguem ser celebrados em sua plenitude. Cristiano já esteve preso, está numa posição social mais vulnerável, não tem escolaridade e nem perspectivas. Mas tenta.

Ainda assim, é preciso que se diga que o filme jamais adota uma postura excessivamente autocomiserativa ou dramática - ainda que isso jamais surpreenderia, dada a temática explorada pela película. Ao contrário, nas vivências de Cristiano, os encontros com os amigos, as conversas, as trocas de experiências e as rodas de violão, todos momentos absolutamente verossimilhantes, parecem dar o ânimo necessário para, no dia seguinte, a vida seguir. Entre tantos momentos bonitos envolvendo a música, aquele em que um grupo de amigos canta junto Cowboy Fora da Lei, do Raul Seixas, talvez esteja entre os melhores. As citações a Noel Rosa, Dorival Caymmi e Renato Teixeira servem como o acompanhamento perfeito para este road movie meio torto e absurdamente naturalista, sobre o homem procurando seu lugar no mundo, onde se estabelecer, enfim, como viver. Não há soluções fáceis e, claro, o filme jamais procura isso. Mas a força da imagem - e, neste caso bastante específico, das palavras - torna este um dos melhores exemplares nacionais do ano.

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