Ciência e a religião apresentadas como forças antagônicas não chega a ser exatamente uma novidade no cinema, mas a temática é explorada de forma bastante sutil (e nem por isso menos comovente), no ótimo No Coração da Escuridão (First Reformed). Na trama, Ethan Hawke é o reverendo Toller - ex-militar que, agora como capelão do reformatório que dá o nome original ao filme, luta para tentar superar um trauma relacionado ao passado (e a guerra). A visita da jovem paroquiana Mary (Amanda Seyfried) trás uma notícia que pode bater de frente com as suas convicções: o marido da jovem, de nome Michael (Philip Ettinger), é um ativista político que luta pelas causas ambientais, ao mesmo tempo que não aceita a gravidez da esposa, sugerindo-lhe o aborto. O seu argumento? Resumidamente: não dá para colocar uma criança no mundo como ele está e com a (auto)destruição que estamos promovendo.
Enquanto pensa em formas de demover Michael da ideia, um baque: uma carta para que o reverendo lhe encontre na floresta, será o ato final antes de o rapaz dar fim a própria vida. Intrigado com o caso, Toller - um alcoólatra de carteirinha, que parece estar sofrendo de alguma grave doença - passará a "investigar" o ocorrido, o que o fará perceber que o desespero e o sentimento de impotência do jovem que se suicidou tem a ver também com a hostilidade de um mundo de grandes corporações que, gananciosas, exploram a natureza a exaustão sem pensar nas consequências - e o fato de ter assistido ao filme e estar escrevendo esta resenha justamente na semana em que o crime de Brumadinho ocorreu, não deixa de ser uma triste ironia. Aliás, essas mesmas empresas serão responsáveis por patrocinar a paróquia em um grande evento de aniversário que se aproxima. Como conciliar tudo isso?
Toller parece ter, no fim das contas, um espírito progressista e muito mais alinhado ao que prega a Bíblia no que diz respeito à comunhão com a natureza e ao respeito a essa. E, diante das adversidades, o padre se sentirá à vontade para assumir um pouco as "idéias" de Michael - e a previsível aproximação de Mary reforçará esse cenário (assim como uma sequência que vai no limite do metafísico e que parece ser fundamental para o reforço das convicções do protagonista). Tudo é inacreditavelmente devagar, como se o filme avançasse em uma frequência mais lenta, capaz de transformar o torpor das personagens e mesmo os diálogos "mansos" em uma metáfora para a letargia (quase) coletiva que vivemos em relação ao tema do meio ambiente e das dificuldades que temos em questionar o capitalismo (essa espécie de Deus paralelo capaz de corromper e de fazer os sujeitos mostrarem o seu pior em nome do dinheiro).
Toller anota tudo o que faz em um diário: e reuniões a portas fechadas com "peixes grandes" da indústria (aquelas mesmas que fazem propaganda de responsabilidade social, mas que estão CAGANDO para isso) e da igreja, farão vir à tona uma figura pessimista e cética que, entregue a bebida, estará também disposta a uma última cartada para a redenção - como nos mostrará o terço final. Repleto de rimas visuais - aquela em que o protagonista mistura conhaque com um antiácido formando a partir de então um ectoplasma apodrecido (assim como está o nosso mundo fétido que só vê as calotas polares derreterem, o aquecimento global aumentar e tragédias ambientais serem encaradas apenas como isso... tragédias) é uma das melhores -, No Coração da Escuridão faz jus a indicação ao Oscar na categoria Roteiro Original para o diretor Paul Schrader (famoso pelo roteiro de Taxi Driver). Como uma espécie de Travis Bickle (o inesquecível personagem de De Niro) de batina, Toller mergulhará fundo em uma espiral vertiginosa que evidenciará o que dá de pior nas grandes instituições, sendo só o amor, divino que só ele, capaz de salvar. Se é que salva.
Nota: 8,5
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