quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Picanha.doc - Minding The Gap

De: Bing Liu. Documentário, EUA, 93 minutos.

O documentário Minding The Gap começa com cenas cotidianas que mostram três jovens andando de skate. Os obstáculos superados no percurso - escadarias, corrimões, vãos - e as manobras realizadas com sucesso parecerão o tipo de metáfora quase óbvia para um filme sobre a prática de um esporte como forma de transpor as dificuldades da vida. Bom, pode-se dizer que, em partes, a película tem esse sentido. Mas apenas em partes. Com a desculpa de filmas os seus amigos em cenas prosaicas desde a juventude, o jovem diretor Bing Liu transforma o documentário em uma obra de arte sobre ritos de passagem para a vida adulta, abordando as dificuldades enfrentadas nesse processo - que poderão ser um filho inesperado ou a busca por um emprego que traga felicidade, o que possibilitará a manutenção do "sonho americano" que alimenta tantas gerações.

E assim perceberemos que, não muito diferente do que ocorre na música Como Nossos Pais, de Belchior, acabaremos por nos "transformar" em versões juvenis de nossos progenitores, abandonando aos poucos as nossas verdadeiras paixões, nossos sonhos e ideologias, substituindo-os pela busca desenfreada do capital, pelo sonho da casa própria, do carro na garagem e de um futuro melhor para os nossos filhos. Enfim, absorvidos pelo sistema, passaremos a ser versões "em negativo" de nós mesmos - as tatuagens uma mera marca patética da juventude que escorreu pelos dedos e o skate o símbolo de um período em que não queríamos pensar em nada que não fosse o prazer do vento no rosto. Nos tornamos "grandes" desde cedo. Cheios de obrigações e de compromissos que nem sempre conseguimos lidar.


Só que isso é pior se você é pobre. Ou se você vem de uma família disfuncional - e, nesse sentido, Bing Liu faz uma verdadeira volta dentro de seu pequeno documentário, para nos fazer constatar que o pior das "famílias de bem" também se perpetua por gerações. Um dos jovens é Zack, que se torna pai muito novo e deve lidar com as implicações dessas responsabilidade, mal tendo um emprego e apenas interessado em andar de skate. Aliás, Rockwell, cidade da Carolina do Norte em que se passa a trama, chegou a registrar o inacreditável número de 47% de desempregados, recentemente. Em certa altura do longa, o grupo de amigos - completado por Kiere - se dá conta de que Zack agrediu fisicamente a sua namorada (e mãe de seu filho), por meio de revelações que vêm a tona. A mesma coisa que o pai de Bing já havia feito com sua mãe. E que algum avô fez com alguma vó. E que em um sistema em que se perpetua o capitalismo desenfreado - e com ele todas as suas frustrações - também é passado adiante o que temos de pior em nós. Um ódio de não sabemos o quê. Uma raiva contida louca para ser extrapolada. Uma intolerância completa.

Nesse sentido, o documentário é não menos do que genial. Nos fará perceber como os jovens absorvem aquilo que seus pais lhes ensinam - com direito a comportamentos beligerantes sendo naturalizados e perpetuados. O mesmo vale para Kiere que, negro em meio a amigos brancos, estará sempre no limite de sofrer preconceito e duas cenas em especial são de partir o coração: uma delas é aquela em que ele explica, sorrindo (de medo, de nervoso), como quase morreu em uma abordagem policial, apenas porque ia pegar os documentos de seu carro no porta-luvas (e quantos jovens não morrem por isso?) e em outra quando os seus amigos gargalham de um vídeo claramente racista, recebido no whats. Essa pequena obra-prima fala de tantos temas - racismo, violência contra a mulher, transição para a vida adulta, problemas sociais -, com uma edição tão leve, juvenil, cheia de enquadramentos espertos e dinâmicos, que é simplesmente impossível não ser arrebatado. O que explica a justa indicação para a sua categoria, no Oscar desse ano.

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