Poucas vezes a empatia ou a importância do respeito às diferenças foi abordada de forma tão inteligente e delicada como no ótimo A Forma da Água (The Shape Of Water) - o grande campeão em indicações (são 13) e um dos favoritos para a estatueta principal na noite do Oscar. A obra é uma verdadeira ode aos desajustados, capaz de transformar uma criatura "meio anfíbio meio homem" (Doug Jones) na metáfora perfeita para as minorias ou mesmo para aquele sujeito que vive a margem da sociedade e que deve conviver em um mundo cheio de ódio, de preconceito e de intolerância. Sim, por trás da tocante história da faxineira muda Elisa (Sally Hawkins), que conhece e se apaixona pela criatura já citada, há a comprovação do cinema como força motriz para diálogos muito mais profundos do que aqueles que estão na superfície - com o perdão do trocadilho.
A trama retorna aos anos 60, época em que, em meio à Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética medem forças a partir de qualquer evento. Nesse contexto, Elisa atua como uma espécie de zeladora em um laboratório experimental secreto do Governo americano, local que recebe o fantástico ser que é capturado, como não poderia deixar de ser, em meio aos rios da Floresta Amazônica. Com acesso a sala em que a criatura é mantida presa - ela limpa o ambiente diariamente, em companhia da colega de turno Zelda (a sempre ótima Octavia Spencer) - Elisa estabelece uma espécie de amizade com o ser, em meio a olhares silenciosos, gestos contidos (e muita dieta a base de ovo). Só que o acesso ao local também tem o ônus, quando Elisa percebe que o prisioneiro é maltratado pelo agente Strickland (Michael Shannon em modo "sou fascista votante do Bolsomito"), que quer a morte deste para que seu corpo possa ser dissecado e estudado.
Preocupada com o destino do visitante, Elisa bola um plano de fuga que contará com a ajuda do vizinho Giles (o sempre ótimo Richard Jenkins) e da própria Zelda. Resumida dessa forma a obra de Del Toro (O Labirinto do Fauno) mais parece uma fantasia romântica com alguma intenção de ser filme de ação. Mas não. Ao contrário, película é uma verdadeira ode ao cinema, capaz de utilizar as suas cores e sons (que trilha sonora é essa??) como reforço para o caráter de devaneio onírico que acompanha toda a película. E não é por acaso que tantas sequências de A Forma da Água mostrem cenas de antigos musicais em preto e branco que - por meio da metalinguagem - dialogam com aquilo que estão sentindo seus protagonistas. Aliás, em certos momentos, Elisa e Giles surgem como se fossem habitantes do universo delirante de ficções altamente gráficas como Delicatessen (991) e Ladrão de Sonhos (1993), ambas dirigidas pelo (sumido?) francês Jean-Pierre Jeunet.
A propósito das cores, impressionante a capacidade de Del Toro em utilizá-las em favor da narrativa - e, nesse sentido, não chega a surpreender o o fato de o apartamento da protagonista e outros ambientes e objetos surgirem num tom verde escuro (numa cor meio de água de açude), o que acompanha também o seu melancólico figurino - que sutilmente ganhará novas cores, seja numa fita vermelha no cabelo ou outro detalhe de suas vestes, conforme o florescimento da paixão. O mesmo vale para o seu rosto, que aparecerá mais iluminado (e vivo) conforme os seus sentimentos forem mudando. Pródigo também em utilizar-se de rimas visuais - uma das que mais gosto envolve um homem arrastando outro pela boca (como se fosse um peixe) -, o diretor utiliza a água o tempo todo como um elemento onipresente da narrativa - na chuva, nos rios, no tanque em que é mantida a criatura, em goteiras, nos ovos que são fervidos, nos baldes carregados pelas empregadas, ou na banheira em que Elisa se masturba todas as manhãs. Algo que torna a umidade dos ambientes algo quase palpável para o espectador. E que se enche de significado conforme o filme avança.
Nem sempre fácil de ser assimilado - esse é aquele tipo de filme que costumamos dizer para as pessoas que estas devem entrar no clima da narrativa (fantasiosa, imprevisível, diferente, quase surrealista) - A Forma da Água também tem nas interpretações uma de suas forças. E não é por acaso que Sally Hawkins - que está assombrosa em sua caracterização, ainda que não diga uma palavra durante TODA a película -, Richard Jenkins e Octavia Spencer receberam indicações por suas interpretações. E, Shannon, é preciso que se diga, ainda que não lembrado, constrói Strickland como um sujeito que descarrega suas frustrações nos outros, enquanto vive um casamento de fachada ao modo "família de bem americana", acreditando-se superior (como homem hétero e branco), a mudos, negros, homossexuais e homens-anfíbio. Atualíssimo em seu debate e no diálogo com uma sociedade em franca transformação como a que vivemos, a obra ainda merece crédito por mão pesar a mão demais (não por acaso são vários os momentos divertidos, muitos deles protagonizados por falas de Spencer). É dessa forma que Del Toro constrói uma película que já nasce clássica. E que, no futuro, deverá ser lembrada como um das grandes de 2018.
Nota: 9,5
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