terça-feira, 10 de maio de 2022

Cine Baú - Fuga do Passado (Out of the Past)

De: Jacques Tourneur. Com Robert Mitchum, Kirk Douglas, Jane Greer e Virginia Huston. Suspense / Noir, EUA, 1947, 96 minutos.

É ainda no comecinho de Fuga do Passado (Out of the Past), que pode ser conferido na HBO Max, que Whit Sterling (Kirk Douglas), um chefão da máfia ligado ao mundo dos jogos, relata ao detetive Jeff Bailey (Robert Mitchum) sobre a vez que apostou em um cavalo e este chegou em último lugar. "Depois disso eu investi 40 mil dólares para comprar esse cavalo e..." - nesse momento a expressão de Jeff se altera pelo que ele imagina ter sido o trágico destino do animal. "Claro, por que ao adquiri-lo eu o coloquei em uma abundante pastagem, longe das disputas, assim ele não mais me atrapalharia". Ocorre que em um filme noir esse tipo de diálogo tão prosaico quanto ambíguo pode ter bem mais do que um significado. Whit está "contratando" Jeff para que ele encontre a jovem Kathie (Jane Greer) que, o homem alega, teria tentado lhe assassinar com quatro tiros, levando-lhe ainda 40 mil dólares (olha a rima aí). "Eu não quero vingança. Eu só a quero de volta", garante o sujeito.

Nessa parte do filme já está em andamento um longo flashback de quase 40 minutos, em que Bailey relata para Ann Miller (Virginia Huston), seu interesse romântico atual, eventos que teriam ocorrido três anos antes. E que dariam conta de seu passado misterioso e cheio de segredos que, agora, parecem prontos à vir à tona. Tentando fugir daquilo que deixou para trás, o protagonista é hoje um dono de posto de gasolina em uma pacata cidadezinha do interior - um cenário tão idílico e silencioso que até o funcionário do posto é um garoto surdo e mudo (Dickie Moore). Só que a calmaria é interrompida com a chegada de um certo Joe Stephanos (Paul Valentine), que será a deixa para um inesperado reencontro com a sua real identidade. Whit pretende não apenas vê-lo - ele está instalado em uma pousada junto ao Lago Tahoe, no limite entre a Califórnia e Nevada -, mas também tem para ele uma nova missão: ajudá-lo a escapar de dívidas com o imposto de renda. O que também lhe possibilitará a solução de uma série de pendências que pareciam enterradas no passado.



No relato de Bailey a Ann entenderemos que o protagonista foi atrás de Kathie, alcançando-a no México. E será lá mesmo que ele se apaixonará por ela - num romance arquetípico clássico de obras do gênero, em que o suposto mocinho se aproxima da vilã. Ou será o contrário? O caso é que no clássico de Jacques Tourneur nada é o que parece e o tempo todo temos a impressão de estarmos sendo passados para trás. Há uma beleza meio bucólica no cenário campestre - suas casas de campo, rios, pradarias e belos cenários - que formam o contraste perfeito com a dureza e a trilha de violência que acompanharemos quando o roteiro chega nos dias atuais. Bailey tentará estar um passo a frente de Whit o tempo todo. E vice-versa. Em meio aos dois Kathie é a figura enigmática, de movimento ambíguo, fazendo com o que espectador trafegue até o último segundo da trama em um universo de incertezas. Ela ama Bailey de fato? Ou está só esperando o momento certo para traí-lo?

Utilizando todos os elementos do noir clássico dos anos 40 - a fotografia escurecida, os diálogos rasgantes, as disputas surpreendentes, o passado obscuro que insiste em reaparecer, a mulher fatal, a nuvem de fumaça provocada pela quantidade absurda de cigarros fumados, as reviravoltas e traições -, o filme nos conduz em uma espiral de eventos fragmentados em que quase perdemos o fio condutor. Hábil em criar instantes de tensão - como aquele em que Whit encontra de forma "inesperada" um Bailey cheio de culpa em um hotel mexicano -, a obra ainda possui aquele senso de humor debochado, que torna a experiência ainda mais gratificante. "Você é uma folha que o vento sopra de uma sarjeta a outra", lembra o protagonista à Kathie em certa altura. O caso é que ele mesmo não percebe que, tão perto que está do objeto de sua ambição, acabará ele próprio indo para o bueiro.


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