Patrimônio cultural imaterial. Também conhecido por patrimônio cultural intangível abrange, de acordo com a Unesco, as expressões e tradições que um grupo de indivíduos preserva em respeito a sua ancestralidade, para as gerações futuras. Assim são exemplos de patrimônio imaterial os modos de fazer, as formas de expressão, as celebrações, as festas, as danças populares, as lendas, as músicas e os costumes. É aquilo que passa de geração para geração por meio da palavra - e de outras manifestações artísticas e culturais - e que se constitui como importante elemento para a formação da identidade de um povo. Ainda que não seja algo exatamente palpável. Todos nós já ouvimos falar, por exemplo, do queijo artesanal mineiro. Pois este conhecimento, transmitido há muito pelas famílias de lá, constitui-se de patrimônio imaterial. Vale o mesma para festas como a do Divino no Espírito Santo e tantas outras espalhadas pelo País.
Pois essa verdadeira pérola que é o filme Narradores de Javé, da diretora Eliane Caffé, fala exatamente sobre isso. Sobre a importância da manutenção de sua história para um povo e do que significa este fato para as suas existências - por mais simplórias que estas possam ser. Geralmente patrimônio cultural imaterial pouco valor tem para aqueles que pensam exclusivamente no potencial econômico das coisas, dos objetos, das pessoas. Para a sociedade tecnicista - e que se pauta exclusivamente pela linguagem do "economês" (do PIB, da rentabilidade, da balança comercial e das exportações, dos lucros e dos dividendos) um povoado pequeno, repleto de pessoas humildes e semianalfabetas pode representar apenas uma faixa de terra desperdiçada que, com o investimento correto, poderia gerar riquezas para meia dúzia de pessoas. E tristezas para muitas outras.
Javé, a cidade fictícia do filme, se localiza em um Vale. A obra começa com a notícia de que um grupo de investidores quer construir uma barragem, com a intenção de transformar o vilarejo em uma represa. Como tudo iria ficar debaixo da água, a retirada das famílias do local - no caso, "a maior desgraça que pode cair sobre um povo", como relata Zaqueu, personagem de Nelson Xavier - já iria começar em breve. A única salvação dos habitantes de Javé, de acordo com Zaqueu, seria tombar a cidade como Patrimônio Histórico. O que poderia ser feito por meio da elaboração de um documento que reconhecesse a importância da localidade, a partir do relato de seus moradores, como espaço de "valor inestimável para o País". Assim, a construção do dossiê, a partir da apropriação do patrimônio imaterial da população de Javé, poderia representar a sua continuidade. Mas como fazer isso em tão pouco tempo?
A cidade vai atrás de um certo Antônio Biá (José Dumont), funcionário dos Correios, um dos únicos que sabe usar esse "negócio das letras, os floreios, a juntada da escrita, tudo com formosura, de acordo com as regras da escritura", como ele mesmo afirma. Biá fica encarregado do relato e vai de morador em morador, de casa em casa, com poucas ou muitas pessoas, para ouvir as histórias sobre os antepassados que, com seus movimentos heroicos, conduziram os habitantes de Javé até seu destino, após fuga da guerra com a Coroa Portuguesa. Cada morador conta a história de seus personagens distintos - Indalécio, Indaleu, Mariadina - de uma forma, tornando a tarefa exaustiva para o amanuense, mas absolutamente prazerosa para o espectador. Que se diverte a cada segundo com o naturalismo das interpretações, a presença de espírito infinita de seus personagens - pessoas claramente simples, mas povoadas por conhecimentos empíricos -, o nonsense das lembranças e a diversidade de sequências memoráveis (como esquecer por exemplo da hilária conversa entre Biá e Vado, personagem de Rui Rezende, sobre tipos de peido, em uma noite de bebedeira?)
José Dumont, com quase uma centena de interpretações em novelas, séries e cinema pode-se dizer que é a alma do filme. Adotando uma postura zombeteira com seu Biá, parece ter uma tirada, um ditado ou uma frase espirituosa para definir qualquer situação. Se ele não gosta de usar caneta diz que o problema é a "disenteria de tinta" provocada pelo objeto. Diante de um morador que recebeu uma dentadura nova, brinca que este parece um "jacaré apaixonado". É a partir de suas divagações e análises que Eliane Caffé transforma um filme que poderia ser pesado - com sua aridez natural, fotografia amarelada e trilha sonora melancólica - em uma obra absolutamente leve, fluída e gostosa de assistir. E se a inevitável modernidade vem, na forma de água, arrastando tudo, de uma coisa se pode ter certeza: onde quer que esteja o povo de Javé, qualquer que seja o local em que ele se estabeleça, a sua história, esse patrimônio imaterial transmitido de geração para geração, permanecerá.
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