sexta-feira, 27 de maio de 2022

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (Irã)

De: Abbas Kiarostami. Com Babek Ahmed Poor, Amhed Amhed Poor e Kheda Barech Defai. Drama, Irã, 1987, 83 minutos.

Exemplificar o Novo Cinema Iraniano a partir de um único filme certamente não é tarefa fácil, mas eu tendo a acreditar que Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (Khane-ye Doust Kodjast?), do diretor Abbas Kiarostami, possui muitas das características que resumem o movimento. Para começar trata-se de uma experiência absolutamente minimalista, que parte de um fiapo de história - e bota fiapo nisso - pra analisar o todo. Depois, há um forte caráter documental, capaz de converter o naturalismo em uma espécie de estética própria. Não há nada necessariamente grandioso em termos sonoros ou visuais. O virtuosismo técnico tem mais a ver com os movimentos inovadores de câmera do que com as ambientações que são simples, cotidianas. O ritmo pode até ser lento, mas há por trás um sem fim de significados em meio a alegorias e metáforas políticas, sociais, culturais, religiosas. Ao cabo, o cinema surgido após a Revolução Islâmica é plenamente dotado de sentidos. De um humanismo palpável. Ainda que arranque mergulhado em uma atmosfera modesta, quase meramente episódica.

Pois nessa pequena joia do cinema asiático, a narrativa começa em uma sala de aula, onde um grupo de alunos de apenas oito anos sofre uma carraspana de seu severo professor - o motivo é aquela baguncinha típica que rola antes da aula começar. Só que para o pequeno Nematzadeh (Amhed Amhed Poor) a situação é mais complicada já que já é a terceira vez que ele esquece o seu caderno e é nesse contexto que o educador ameaça: "se houver novo esquecimento, será expulso". Ao final da aula em meio a agitação e aos atropelos, Nematzadeh acaba machucando o joelho numa queda, sendo socorrido pelo melhor amigo Ahmad (Babek Ahmed Poor), um menino generoso e leal. No rebu que envolve passar uma água no ferimento, Ahmad se dá conta, ao chegar em casa, que ficou com o caderno do amigo por engano. O amigo que será expulso se não levar o material no dia seguinte. E, bom, é a partir daí que o protagonista empreende uma verdadeira via-crúcis na tentativa de descobrir onde fica a casa do amigo para tentar lhe entregar o caderno livrando-o, assim, de sua dolorida sina.


Olhando assim pode parecer quase ingênuo, simplório. Mas a partir da trajetória de Ahmad será possível perceber a discussão de uma série de temas nas entrelinhas - que vão do caráter arcaico do sistema educacional, passando pelo conceito de invisibilidade infantil, pelo poder da amizade, até chegar à carga vivida pelos pequenos, fruto de um modelo que visa a disciplina a partir do trabalho e do respeito pleno aos adultos, independente da circunstância. Em certa altura da projeção dois idosos dialogam sobre como educar uma criança. Um deles, o avô de Ahmad, lembra que, quando novo, seu pai costumava lhe dar uma bala toda a semana e uma surra a cada duas semanas. "Tinha dias que a bala ele esquecia, mas a surra não", garante, dando a entender de que esse padrão deve ser perseguido na formação da próxima geração. Ao que o outro homem retruca: "mas e se não houver motivos para uma surra?". É nesse tipo de contraste típico das narrativas iranianas, que reside uma boa parte da força argumentativa.

Indo de lá para cá com o caderno debaixo do braço, Ahmad atravessa montanhas, "viaja" a pé para cidades vizinhas, bate de porta em porta, investiga, pergunta, pensa que chegou no lugar certo mas não e até roda em círculos. Há um quê de mesquinharia nesse cotidiano em que ninguém se importa, ninguém ouve, em que o curso normal das coisas segue, enquanto a angústia do pequeno se expressa em pequenos gestos, em olhares tão doces quanto aflitivos, em um desespero que cresce. De alguma forma há uma instabilidade meio permanente que parece brotar da incerteza sobre tudo - tanto nos silêncios, como na repetição quase infinita das mesmas frases (normalmente em vão). Ao cabo trata-se de uma obra poética mas angustiante, morosa mas viva, que traça um paralelo com o tipo de drama visto em clássicos do neorrealismo italiano, caso de Ladrões de Bicicletas (1948), sobre um sujeito que tem a sua bicicleta roubada, o que o impede de trabalhar. Vale demais.


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