terça-feira, 3 de maio de 2022

Livro do Mês - Herdeiras do Mar (Mary Lynn Bracht)

De: Mary Lynn Bracht. Editora Paralela, 2020, 306 páginas.

O contraste entre a beleza poética da escrita e o argumento comovente é uma das marcas do imperdível Herdeiras do Mar, meu primeiro contato com a obra de Mary Lynn Bracht. Trata-se de um livro duro, quase indigesto, mas que apresenta uma história que é, para muitas pessoas, desconhecida - no caso, sobre as jovens coreanas que, durante a Segunda Guerra Mundial, foram enviadas para regiões longínquas para servirem como "mulheres de consolo" para soldados japoneses. Sim, essa experiência repugnante é vivida por Hana, que é conduzida à região da Manchúria por Morimoto - um soldado japonês linha dura que sequestra a jovem quando ela tinha apenas 16 anos. Sob ocupação japonesa Hana é considera, em sua Coreia natal, uma cidadã de segunda classe, com pouquíssimos direitos. Ainda assim ela orgulha-se em ser uma haenyeo, como são conhecidas as mulheres que trabalham no mar como mergulhadoras marinhas - atividade tão perigosa quanto lucrativa.

Em seu ofício, realizado na Ilha de Jeju, Hana segue de perto os passos da mãe, encarando sua rotina com independência e coragem. Ela também é responsável por Emi, sua irmã sete anos mais nova - o zelo envolve jamais deixa-la sozinha, especialmente em meio às rotinas da praia. Só que em certo dia, um instante de desatenção selaria o destino de Hana que, para proteger sua irmã, praticamente se deixa capturar por Morimoto. Levada ao bordel militar, ela sofrerá as mais duras atrocidades e os mais cruéis abusos sexuais e psicológicos. O sonho de reencontrar sua família é o que a mantém, enquanto encara a seu doloroso dia a dia. Com idas e vindas no tempo, a obra se alternará entre os eventos do passado - no caso o verão de 1943 - e os do futuro, em dezembro de 2011, com Emi, agora aos 77 anos, ainda sonhando com a perspectiva de reencontrar sua irmã. Aliás, por vergonha, ela mantém o ocorrido em segredo dos filhos Hyoung e Yoonhui, o que impactará a vida de todos quando as verdades começarem a vir à tona.


Ao cabo, Herdeiras do Mar pode ser uma jornada tão exaustiva quanto recompensadora. É um livro oportuno sobre o absurdo da guerra, escrito com maestria, e que mantém o suspense até as últimas páginas. Das tentativas de fuga de Hana ao empenho de Emi na busca por informações, a jornada das irmãs é narrada em meio a devaneios febris sobre o passado, num quase flerte com o realismo mágico. Enfraquecida, exaurida, mal alimentada, Hana sofre um processo de desumanização que lhe condiciona a ser "apenas" alguém destinada a satisfazer sexualmente um grupo de boçais. Em trens em que não se sabe o destino e em bordeis, Hana fará amizade - ou algo perto disso - com outras jovens, como é o caso de Keiko. O apoio entre elas, as poucas trocas de palavras, a sororidade, o comportamento empático também contribuirão para que Hana não esmoreça. Com as esperanças sendo renovadas após ela ser enviada para a Mongólia.

Em uma das tantas belas passagens, Hana se isola em sua própria imaginação, se enxergando mergulhada nas profundezas de um oceano, evadindo-se de seu entorno. "Ela aprende a prender a respiração quando um soldado invade seu corpo, e sente como se estivesse lutando para respirar antes de emergir à superfície em busca de ar. Nunca olha os homens no rosto. É melhor nem sequer pensar neles como pessoas. Em vez disso eles são máquinas enviadas a ela ao longo do dia. Ela se concentra na promessa de que tudo vai acabar, porque sempre acaba, e então dorme. Consegue controlar sua mente e escolher o que permite que a invada." São instantes sublimes, quase delicados como este, que servem para evidenciar as contradições entre o evocativo do texto, redigido com grande sensibilidade, e o martírio da história. Uma simples vaca sofrendo em meio ao pasto pode ser uma metáfora para a dor de Hana. Que só será extirpada na marra, à força. Bracht fez um trabalho magnífico em sua estreia. Uma experiência envolvente, inquietante, aflitiva e sensorial, um verdadeiro documento histórico que evidencia a misoginia, especialmente em tempos de guerra, em meio a outros absurdos do processo de colonização.

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