Se interpretado ao pé da letra, um bom filme como este A Bruxa (The Witch) pode ter efeito contrário e servir justamente para que religiosos mais fervorosos utilizem a película para embasar opiniões no estilo "viu no que dá desrespeitar a Igreja ou os seus símbolos"? Algo que, pode-se dizer, seria lamentável se ocorresse e que retiraria da obra uma de suas maiores virtudes - a de utilizar a transição para a fase adulta e o reconhecimento da sexualidade de uma mulher jovem, como uma metáfora para a ruína e a destruição de uma família inteira. Ainda que a película de Robert Eggers não esteja completamente livre de tal associação, dado o seu conteúdo e a forma como é apresentada a história, o diretor estreante parece confiar plenamente na capacidade interpretativa de seu público - o que por si só, não deixa de ser uma bela virtude.
A trama se passa em uma comunidade extremamente religiosa da Nova Inglaterra, no começo do século XVII. É lá que vive o casal William (Ineson) e Katherine (Dickie) e seus cinco filhos. Ainda que levem uma vida cristã, a obra inicia justamente com a expulsão da família do local por terem o seu "modelo de fé" questionado pelas autoridades locais. Sem ter para onde ir, os sete integrantes se instalam em um local isolado, à beira de um bosque. À escassez de comida e os poucos recursos disponíveis se somam a uma outra tragédia: o desaparecimento misterioso do filho mais novo, um bebê recém-nascido, justamente quando este estava aos cuidados da filha mais velha do casal, a adolescente Thomasin (Taylor Joy). A desconfiança inicial de que o bebê pudesses ter sido capturado por um lobo, aos poucos vai dando lugar a outra probabilidade, esta um tanto mais sinistra: a de ter sido sequestrado por uma bruxa que poderia viver na floresta.
Não é preciso ser nenhum adivinho para saber que, essa crise inicial com o sumiço do caçula, vai ser o estopim para o desmantelamento do núcleo familiar, conforme as suas suspeitas começam, aos poucos, a se concretizar. A situação piora quando o jovem Caleb (Crimshaw) também desaparece após uma saída de campo para tentar resgatar o irmão, em uma jornada que contava também com a presença da irmã. As seguidas desgraças ocorridas com a família fazem com que os pais - especialmente a mãe - desconfiem que Thomasin possa ser uma bruxa, que enfeitiçou todos os integrantes. O fato de o recém-nascido não ter sido batizado ainda, quando da expulsão da comunidade, tornam a situação ainda mais comovente, uma vez que todos parecem cientes de estarem experienciando uma espécie de "ira divina" a partir dos fatos ocorridos.
Ainda que, aqui e ali,Eggers não resista aos sustinhos no estilo "bigorna caindo", é preciso que se diga que o diretor - que venceu o Festival de Sundance do ano passado, em sua categoria - costura a trama utilizando muito mais as sugestões do que as imagens óbvias, apresentando, durante a projeção, uma série de figuras de linguagem que sugerem a decadência familiar, por obra apenas de seus integrantes e não por qualquer tipo de bruxaria, ação sobrenatural ou raiva de Deus. Quando o foco de visão de Caleb passa a ser o decote da Thomasin e, a filha mais velha, ao mesmo tempo, passa a ser uma espécie de "protegida" do pai, a impressão que se tem não é outra que não seja a de incômodo provocado por uma jovem na flor da idade - e pela mais pura incapacidade de TODOS os integrantes da família em lidar com este fato. Eventualmente Thomasin parece ser uma bruxa? Sim, parece. Mas mais do que isso: ela é uma simples moça.
Baseado em relatos reais do que seriam os "ataques de bruxas" em uma Inglaterra ainda muito distante da Era Vitoriana, o filme tem ainda como mérito o uso de um inglês arcaico, que torna ainda mais realista a percepção dos eventos ocorridos. Com uma paleta de cores eventualmente escurecida e acinzentada, a fotografia, assim como a trilha sonora, contribuem para que o suspense quase sufocante permaneça com o espectador praticamente durante toda a projeção - e não deixa de ser fascinante a capacidade do realizador de gerar um clima de tensão que mostra o mínimo possível e sugere muito mais, como mostram as cenas na floresta e a presença de animais, como o bode. O final exagerado e meio "ao pé da letra" no que diz respeito aos relatos podem decepcionar alguns - e ampliar a sensação sobre aquilo que é descrito lá no primeiro parágrafo desta modesta resenha. Mas, ainda assim, no que diz respeito ao exercício de estilo, pode-se dizer que este A Bruxa está acima da média.
Nota: 7,8
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