terça-feira, 31 de maio de 2022

Livro do Mês - Véspera (Carla Madeira)

Vamos combinar: existem escritores que possuem uma capacidade única de se conectar com os leitores e, a meu ver, esse é justamente o caso da mineira Carla Madeira. Lançado pela Record, Véspera foi o minha segunda leitura da autora - a primeira foi o impressionante Tudo É Rio, que narra a inesquecível história do "triângulo amoroso" formado por Dalva, Lucy e Venâncio. E, sério, ambos os livros são difíceis de largar, no melhor sentido da palavra. Com personagens cheios de ambiguidades que, em muitos casos, tomam atitudes extremas (e até eticamente questionáveis), cada obra mergulha em um universo bastante particular, em que temas como masculinidade tóxica, opressão sexual, hipocrisia e violências cotidianas chegam no formato de torrentes - caudalosas, vigorosas, imprevisíveis. Mas, nos dois casos, o cenário geral dos protagonistas não se modifica, com a presença de mulheres fortes em meio a uma sociedade patriarcal.

Ainda assim não se trata de mero panfletarismo, já que autora se apoia em sutilezas, mesmo quando as sequências parecem bastante visuais. Quando, no primeiro capítulo de Véspera, Vedina abandona o próprio filho Augusto, em uma calçada de uma avenida movimentada - uma decisão impensada, completamente estúpida, no calor do momento de uma discussão -, esta se se apresentará mais adiante como uma figura atormentada por uma série de frustrações, o que a condyz a essa situação limite. O seu marido Abel, irmão gêmeo de Caim e que vive à sombra desse - como se fossem espectros opostos numa carcaça igual, sendo Abel o lado mais sombrio, taciturno e Caim o mais luminoso e extrovertido -, também guarda uma série de segredos obscuros que remetem à juventude e que, em meio a tragédias familiares grandes ou pequenas, parecem sempre prontos para vir à tona.



Em linhas gerais estamos diante de uma narrativa que é costurada em dois tempos que correm paralelamente - com passado e presente se encontrando e se recombinando, como uma espécie de elipse que alude a vésperas e contemporaneidades. Em uma dessas narrativas voltamos à juventude de Caim e Abel, que são nomeados dessa forma pelo pai, o beberrão Antunes Filho, como uma forma de punir a própria esposa Custódia (e a revelia desta). Na outra linha Vedina, é a mãe que roda em círculos enquanto, completamente arrependida da decisão tomada segundos antes e que deixaria Augusto à própria sorte, se empenha em decidir o que fazer após o desaparecimento do menino. Ligar para a polícia? Admitir que ela própria abandonou seu filho pequeno em uma rua movimentada? Inventar algum tipo de história que serviria de álibi?

De alguma forma, estamos diante de uma obra sobre rejeições variadas e sobre como lidamos com elas - abandonos que podem surgir já no colégio em meio ao bullying dos colegas, na ausência de um pai pouco amoroso, na fase adulta diante da negação de interesses amorosos. Como sofremos com isso e de que forma evoluímos é o que fará com que nos tornemos quem somos - o que não impedirá que questões que estejam escondidas no inconsciente surjam de maneira inesperada. Vedina certamente não queria abandonar Augusto, assim como Caim não queria se decepcionar com Abel, numa alusão metafórica mais do que perfeita à história bíblica. No centro de tudo está o casamento problemático e marcado pela frustração entre Vedina e Abel, o que também simboliza algum tipo de abandono. Com diversas personagens secundárias interessantes - caso dos padres Tadeu e Alberto, que possuem personalidades opostas, ou mesmo Veneza, a desejada melhor amiga de Vedina -, temos aqui uma obra magnética, daquelas que reverbera por muito tempo depois, em sua irrepreensível análise sobre a condição humana.

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