quarta-feira, 11 de maio de 2022

Pérolas da Netflix - As Boas Maneiras

De: Juliana Rojas e Marco Dutra. Com Isabél Zuaa, Marjorie Estiano e Miguel Lobo. Fantasia / Drama / Terror, Brasil / França, 2018, 135 minutos.

É um drama sobre questões sociais? Um suspense sobre os desafios da maternidade? Ou seria ainda uma experiência de terror que evoca temas folclóricos? É urbano? É rural? É fantasia? Ou realidade? São tantas as possibilidades em uma análise do ótimo As Boas Maneiras, obra de Juliana Rojas e Marco Dutra, que o resultado são mais perguntas do que respostas, ao final da projeção. E não há nada de errado nisso, porque esse é aquele tipo de filme que permanece conosco, nos faz viajar, inferir, discutir. Da indefinição de seu gênero, passando pelo roteiro dividido em duas partes bem delineadas, a obra tem complexidade sem nunca soar excessivamente hermética. Ao cabo trata-se de um resgate da clássica lenda do folclore, mas de um jeitinho bem brasileiro.


Na trama somos apresentados a Clara (Isabél Zuaa), mulher negra que mora em um bairro periférico de São Paulo e que consegue uma vaga como babá do filho da grávida Ana (Marjorie Estiano), em um luxuoso apartamento. A conversa inicial parece cercada de amenidades mas, aqui e ali, já evidencia o contraste entre a dupla de protagonistas: Ana é a burguesa que não é capaz nem de comprar os seus alimentos, ao passo que Clara se empenha em suas funções, por mais que resista à ideia de se tornar também a empregada do local. Em meio a acontecimentos aleatórios - e que são carregados de tensão -, como uma ida até a geladeira de madrugada, ou um passeio pelo bairro no solidão do avançar das horas (Ana é sonâmbula), vai se ampliando a percepção de que algo estranho está prestes a acontecer. Especialmente nas noites de lua cheia, momento em que o mistério aumenta.

 
Enigmática, a "patroa" entrega pouco sobre seu passado. Quando ela encontra uma amiga no shopping esta parece querer evitar ao máximo qualquer contato. Não há namorado ou família presente - o seu aniversário é de uma solidão devastadora. Tanto que Ana convida Clara para uma cerveja nessa noite. Ambas se aproximam, a amizade salta para um algo a mais. É mais um tema que se instala na narrativa. Mais um ponto de quebra de lógica, daqueles em que há confluências entre polos opostos. Como um todo, a obra parece ser uma ampla alegoria sobre distancias que aproximam, sobre segredos que vêm à tona, sobre castelos contemporâneos de conto de fadas urbano. Novamente dá pra se dizer que não há facilidades: há sugestões, gestos, pontas que escapam e que nos encontram. A cena em que Clara vai a um bar, por exemplo, talvez parecesse apenas deslocada se não fosse esse um filme que discute, nas entrelinhas, temas ligados ao trabalho, aos preconceitos por baixo dos panos, ao fluxo geral da vida (quase ordinária em seu cotidiano).

Tecnicamente soberba, a obra é primorosa ao evocar no espectador sentimentos variados - e é incrível como uma simples cena em que Ana está sentada na sala de jantar, com uma ampla janela ao fundo em que se vê uma enorme lua cheia, comunique tanto. A sequência parece uma pintura e há todo um quê de artes plásticas e literatura que saltam da tela a todo instantes - como se estivéssemos em uma espécie de inesperado filme da Disney live action tão nacional quanto peculiar. Outro aspecto relevante diz respeito à trilha sonora, com as composições originais servindo quase como uma expansão do universo onírico da história. O que fica, por fim, é o elogio à capacidade de nossos realizadores de ir além da comédia Globoplay ou do suspense policial, misturando elementos de fantasia e até de sobrenatural para a construção de um universo único que jamais deixa de "conversar" com os tempos que vivemos. Como comprova o mais do que ilustrativo último ato.
 
 

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