De: Madiano Marcheti. Com Chloe Milan, Natália Mazarim, Rafael De Bona e Pamela Yulle. Drama, Brasil, 2019, 85 minutos.
Vocês já devem ter ouvido falar que o Brasil é o País que mais mata pessoas trans no mundo. É assim há 13 anos - e esse deveria ser o tipo de "título" a nos envergonhar. Só que no Brasil de Bolsonaro, que só em 2021 registrou 140 assassinato do tipo, há também uma carência de informações, que converte a transfobia em um crime invisível. O que dificulta a elaboração de políticas públicas que possam, ao menos, amenizar a questão. Muitas ocorrências não são reportadas. Há uma ausência completa de dados e, em uma nação que legitima o ódio, o preconceito e a intolerância, há ainda a reafirmação do padrão heteronormativo - o que parece contribuir ainda mais para o sentimento de apagamento das minorias. O descaso, afinal, é generalizado. E é exatamente sobre isso que trata o ótimo Madalena, de Madiano Marcheti - uma das recentes estreias da Netflix.
O apagamento de pessoas trans é, ao cabo, o assunto da enigmática experiência proposta pelo diretor. Nesse sentido, pouco se sabe sobre a Madalena do título (vivida por Chloe Milan em aparição discreta). Aqui e ali recebe-se pistas que indicam que ela pode ter morrido. Não apenas isso, ter sido assassinada de forma violenta. O cenário é uma pequena cidade do Centro Oeste, cercada por grandes fazendas de plantio de soja. Esse contexto tão brasileiro que envolve o agro pop que que se alia ao padrão hétero, branco, de latifúndios e de caríssimos maquinários agrícolas - que traduz à perfeição o "cidadão de bem" da região, que parece apenas interessado em viver a sua vidinha de festinhas topzeras de final de semana, passeios de caminhonetão e uso de drogas com a broderagem. A morte de Madalena funciona como uma espécie de assombração a rondar a região. E a todos que ali estão.
Nesse sentido, Marcheti faz um exercício de estilo e de contrastes que nos deixa o tempo todo em estado de suspensão. Há algo no ar que sugere o tempo todo uma certa quebra de lógica, que vai no limite entre o deserto verde que bordeja o asfalto (ou a estrada de chão) a parte central da cidade. Em meio a aplicação de agrotóxicos por monumentais implementos - ou mesmo com drones -, há a mata, o rio e o vento que insiste em soprar. E que pode até deixar a tragédia fora do quadro, ainda que ela soe onipresente. Como espectadores não sabemos também como lidar. O assassinato de uma trans que ressurge como um espectro é evidenciado pela música insistente de Tetê Espíndola que toca repetidamente num rádio "abandonado" em uma casa, ou mesmo pela surpresa de um jovem agricultor que se depara com algo inesperado em meio à lavoura. O filme escavoca sensações e nos deixa desconfortáveis. O apagamento, afinal, é esfregado na nossa cara. Morreu alguém. Ninguém viu. Ninguém vê. Alguém verá?
Em entrevista à Rádio França Internacional (com partes reproduzidas no Observatório G) Marcheti explicou que o filme "questiona como nós, como sociedade, permitimos que isso aconteça, e isso continua acontecendo. Então, o espectador fica em uma posição desconfortável porque não sabe o que houve com Madalena e fica imaginando hipóteses para as quais não vai ter as respostas. Tudo isso nos leva a refletir sobre o nosso papel diante os crimes de transfobia no Brasil". Com tintas autobiográficas, a obra também reflete sobre lugares e sobre a tentativa de se encaixar quando não se é parte do padrão. E sobre como o desaparecimento de uma figura que vive à margem pouco alterará na rotina da comunidade. A sensação é de desamparo. De quebra de lógica, de instabilidade. As pessoas trans, afinal, vivem em média 35 anos no Brasil. Mas o diretor evita o panfleto pelo panfleto. O que resulta em uma obra complexa, reflexiva e que rende bastante em uma mesa de discussão.
Nota: 8,0
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