terça-feira, 18 de junho de 2019

Tesouros Cinéfilos - Nós (Us)

De: Jordan Peele. Com Lupita Nyong'o, Winston Duke, Elizabeth Moss, Anna Diop e Evan Alex. Suspense / Terror, EUA, 2019, 116 minutos.

Nas aparências, Nós (Us) é um terror/suspense de estrutura bastante convencional. Em cena assistimos uma família tradicional americana indo passar as férias em uma casa de praia. Há algum trauma relacionado ao passado e não demora para que pai, mãe e os dois filhos passem a ser assombrados por seres do mal, vindos sabe-se lá de onde. Mas o caso é que este é um filme do Jordan Peele - o primeiro depois do sucesso alcançado com o espetacular Corra! E, portanto, por baixo do véu de normalidade dentro daquilo que se espera em uma película do gênero, parece haver uma análise muito mais aprofundada das estruturas que regem a sociedade americana, seus dilemas morais, suas feridas abertas e o mal-estar generalizado que parece sustentar um tecido social em que se sobressai o individualismo, a falta de empatia e, em até certo ponto, a falência do capitalismo como modelo.

As pessoas que atacam a família protagonista moram nos subterrâneos - e atuam como se fossem a sua sombra, reivindicando o seu lugar de direito. Reivindicar o seu lugar, especialmente para uma família negra, dá conta de algo muito maior do que o "vocês estão aí vivendo no bem bom, enquanto nós estamos no submundo, a margem da sociedade". Tem a ver com história, com a escravidão dos negros e a luta por um sistema mais igualitário. Com uma dívida difícil de ser quitada por séculos de atraso e de injustiça racial. O fato de a família acossada pelos seres "do mal" ser também negra - na realidade trata-se de seus duplos - força o espectador a interpretar este simbolismo para algo muito além da simples desigualdade entre brancos e negros (algo que era mais nítido em Corra!), mas para a percepção de que as diferenças estruturais da nossa sociedade são muito mais amplas, com pobres e ricos em lados opostos e uma permanente sensação de medo de alguma coisa (não se sabe o quê) que, em muitos casos, parece acompanhar as classes mais abastadas.


Diferenças sociais. Medo. Paranoia. As classes altas, a gente sabe bem, temem a revolta popular. A "ameaça comunista". Uma tomada de poder. De seus bens. De sua vida luxuosa, hedonista e individualista. E vamos combinar que iniciativas como o Hands Across America - citada no começo da película e que tinha o nobre objetivo de juntar dinheiro para o combate à fome, na África -, não passam de formas de garantir a manutenção do status quo. Por um lado eu faço a caridade e sou bem visto pelos meus pares, pela comunidade. Por outro, vocês continuam pobres. Miseráveis. E não é por acaso que os seres das sombras não têm voz - repare no espetacular trabalho de Lupita Nyong'o na composição de Red e no contraste que se estabelece com Adelaide, a sua versão "família de bem". É o que acontece com os vulneráveis, invisíveis para a sociedade. Falta ser ouvido.

Afora todo o contexto social estabelecido pela película - e, vamos combinar que nada é definitivo nessa análise, já que uma obra dessa envergadura parece abraçar muita coisa ao mesmo tempo, nos fazendo refletir bastante -, o filme também funciona muito bem como suspense. Das sequências de invasão da casa, a tentativa de escapada da família, com direito a busca de ajuda nos vizinhos (que são assassinados pelos seus duplos) há uma série de vertiginosos (e vigorosos) pequenos instantes em que acompanhamos a luta de todos pela sobrevivência. Com ótima trilha sonora, movimentos de câmera e enquadramentos inteligentes e excelentes interpretações dos atores centrais - vamos combinar que não é nada simples compor personalidades totalmente distintas em um mesmo trabalho - Nós passa o recado de forma sutil, fazendo pensar sem esfregar na cara. Já dizia Jeremias 11:11: "eu vou trazer um desastre do qual eles não podem escapar. Apesar de eles chorarem para mim, eu não irei ouvi-los". Sim, tá lá na Bíblia. E a hipocrisia religiosa, de ir à missa aos domingos ao passo que se ignoram os problemas sociais existentes, também está inserida nesse contexto.



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