terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Picanha.doc - A Memória Infinita (La Memoria Infinita)

De: Maite Alberdi. Com Paulina Urrutia e Augusto Góngora. Documentário, Chile, 2023, 85 minutos.

Em uma das tantas cenas comoventes de A Memória Infinita (La Memoria Infinita) - documentário chileno que, muito provavelmente, deve estar no próximo Oscar (está na short list) - Paulina Urrutia e Augusto Góngora assistem na televisão algumas cenas históricas, que remontam à época da ditadura militar do País vizinho. E mesmo com o Alzheimer já em um estado de visível avanço, Augusto olha para a tela e afirma, consternado: "Pinochet". Como quem tem na retina ou em algum lugar do cérebro, um tipo de lembrança que não se apaga. E eu sinceramente não sei se esse fragmento foi engendrado de forma proposital ou não pela diretora Maite Alberdi. Mas do jeito que foi filmado gerou um instante muito potente. É difícil, afinal, esquecer dos horrores de um sistema opressor - que gera perseguições a adversários políticos, torturas, mortes. E que parecem guardados mesmo para alguém que vê sua memória esvanecer.

Augusto Góngora, afinal, foi um renomado jornalista cultural e apresentador de TV chileno. Com várias obras lançadas - e um certo ativismo paralelo no que diz respeito ao combate à ditadura Pinochet (algo que pode ser percebido nos detalhes, como no caso da presença de um pequeno cartaz com a palavra "No" nas paredes de sua casa, que alude a um plebiscito realizado após o golpe de Estado). Já Paulina, carinhosamente chamada de Pauli, foi (e ainda é) uma importante atriz no Chile, tendo servido também o País como Ministra da Cultura e das Artes. No filme somos apresentados à rotina do casal, e ao esforço comovente de Paulina para que Augusto não esqueça, que seja, das coisas mais básicas. De que ela é sua mulher, de que eles estão em sua casa, que os livros que estão a sua volta fazem parte da coleção juntada durante toda uma vida. Ao cabo, é uma obra comovente e afetuosa, dura mas também divertida, sobre a persistência nos cuidados com alguém que padece de uma doença tão severa e misteriosa.

Assim, se por um lado o filme diverte quando o próprio Augusto faz piadas a respeito de sua condição, por outro se torna praticamente impossível não se emocionar, como no momento em que Augusto clama pela presença dos amigos, aos quais acusa de ter-lhe abandonado (algo que ocorre em uma madrugada aleatória, quando a doença já apresenta estado avançado). E quem já conviveu com parentes ou amigos que sofreram de Alzheimer sabe o estranhamento que pode gerar o fato de uma pessoa próxima não mais te reconhecer - algo que, para Paulina, é doloroso. Burlando os limites entre a ficção e a realidade, a obra intercala cenas da atriz em ensaios de peças de teatro ou apresentações de dança, com momentos íntimos dela com Augusto. Instantes em que ela também "encena", fazendo o carinhoso papel de memória viva do próprio marido, por meio de repetições exaustivas de informações (mesmo que essa informação seja a respeito dela mesma, que lhe lembra de ser sua companheira).

Com uma riquíssima coleção de imagens de arquivo, a obra permite ver o quão afetuosa foi a vida de Augusto e Paulina em absolutamente todos os momentos. Amorosos, faziam questão de verbalizar esse carinho um pelo outro - o que em tempos tão brutos como os que vivemos (e os que eles viveram também, no Chile de Pinochet), ajuda a dar um calor no coração. Só que todo esse contexto também contribui para que a dor diante do que assistimos aumente. Ainda mais pelo aspecto alegórico do esforço de memória que, no que diz respeito a ditadura, deveria contribuir para a não repetição de certos erros históricos. "Sem memória nós vagamos confusos, sem saber para onde ir", afirma a inscrição introdutória de um dos livros de Góngora, em seu auge como jornalista vibrante e combativo. Suave, a obra vencedora do Prêmio do Júri no Festival de Sundance faz esse paralelo de forma sutil, sem forçar a mão. É difícil não se comover.


Nenhum comentário:

Postar um comentário