Editora Alfaguara. Tradução Leiko Gotoda. 2002, 578 páginas.
Depois de Norwegian Wood, Kafka à Beira-Mar foi a minha segunda experiência de leitura com Haruki Murakami. Resumidamente é um livro muito bom, que tem uma boa dinâmica - até por ocorrer em duas linhas temporais distintas, o que minimiza a exaustão - ainda que exija um pouco mais do leitor, especialmente por conta das suas voluptuosas 578 páginas. Digamos que talvez não seria a obra que eu recomendaria pra quem está querendo adentrar no universo do escritor japonês. A menos que você já esteja acostumado com os "calhamaços". Assim como Norwegian é um livro fluído, mas talvez mais adulto. Ainda que, aqui e ali, aposte no realismo mágico, na fantasia, no subconsciente e no universo onírico em sua composição. "Uma viagem fabulosa através da identidade, da mitologia, da filosofia e dos sonhos", como resumiria o Boston Globe em sua resenha.
A trama, como já dito, envolve dois enredos distintos inter-relacionados que, inevitavelmente se cruzarão. Em capítulos alternados, conhecemos a história do jovem Kafka, um adolescente de 15 anos que, para tentar fugir de uma maldição familiar edipiana foge de casa meio que sem rumo, com o objetivo de tentar encontrar a mãe e a irmã. Em sua jornada, encontrará abrigo em uma suntuosa biblioteca particular na tranquila cidade de Takamatsu - espaço que é dirigido pela enigmática bibliotecária senhorita Saeki (mulher elegante, de modos discretos). No local, Kafka fará amizade com a esperta Oshima enquanto desvendará, paulatinamente, segredos que envolvem seu passado. Na outra linha temporal acompanharemos a história de Satoru Nakata, um homem idoso que, após passar por um trauma na infância, adquire excêntricos poderes sobrenaturais.
Um desses poderes envolve a capacidade de conversar com gatos. Habilidade que foi adquirida após Nakata acordar de um coma que envolve um estranho incidente ocorrido em uma floresta na província de Yamanashi, onde várias crianças teriam desmaiado sem muita explicação. Após o episódio, o homem acordou sem nenhuma memória e sendo incapaz de ler e escrever. As limitações o levaram a um trabalho como auxiliar de marcenaria. E em meio período como localizador de gatos perdidos. Situação que lhe conduzirá, em certa altura da trama à residência de um certo Johnny Walker (sim, na história são muitos os trocadilhos com nomes conhecidos e figuras da cultura geral), famoso por assassinar gatos. Nakata acaba matando Walker, o que lhe fará pegar a estrada pela primeira vez na vida, fazendo uma inesperada amizade com um generoso caminhoneiro de nome Hoshino. O destino da dupla depois de tantas andanças? A mesma Takamatsu, onde Kafka está morando de forma improvisada.
A narrativa cheia de situações inusitadas envolve de chuva de sanguessugas, passando por floresta "encantada", até a capacidade de ver o passado a partir de um quadro na biblioteca. É uma trama engenhosa que mescla referências do mundo pop com tragédias gregas, numa odisseia que aborda temas diversos como, luto, memória, destino e até mesmo o poder das artes (especialmente da música na comunicação) - e não é por acaso que uma sonata de Beethoven é utilizada como metáfora redentora para a vida daqueles que acompanhamos. Metafísico, o livro também aborda a natureza e a nossa relação com ela, sendo comoventes as descrições de Kafka de sua existência solitária e elegíaca em uma espécie de chalé, que é emprestado por Oshima quando o jovem passa a ser suspeito de um assassinato. Drama, mistério, romance torto, tudo com certo senso de humor, a obra nos leva ao limite entre o material e o abstrato, entre o mundano e o filosófico. Parece ser um mergulho em muitos temas que envolvem a obra de Murakami. O que não é pouco.
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