sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Livro do Mês - Diorama (Carol Bensimon)

Em junho de 1988 eu tinha apenas sete anos, mas lembro de forma muito nítida das chamadas do Correio do Povo em letras garrafais, que atualizavam o leitor sobre o famigerado Caso Daudt. Eu ainda era criança para ter a real dimensão os desdobramentos do crime que pararia o Estado - no caso o assassinato do deputado José Antônio Daudt, em circunstâncias jamais esclarecidas. Mas tenho essa recordação. De que era algo sério, impactante. E que permaneceria na memória dos gaúchos - como se fosse um diorama entre o nítido e o abstrato, a recriar aquele acontecimento ocorrido bairro Moinhos de Vento. Em que dois tiros de espingarda foram ouvidos. Aliás, Diorama é também o título do quarto livro da escritora gaúcha Carol Bensimon - e meu primeiro contato com a obra da autora. Por sinal, a representação artística tridimensional, bastante realista, que recria cenas cotidianas para fins de exposição ou entretenimento é a metáfora mais que perfeita para o caso nunca solucionado. Mas que parece assombrar as famílias envolvidas.

Morando há muito tempo nos Estados Unidos, a protagonista do romance, Cecília Matzembacher, é uma taxidermista que trabalha em um museu de história natural restaurando animais. É um ofício meticuloso, minucioso que visa a preservar a memória de espécies diversas a partir da reformulação de seus ecossistemas. Em resumo, trata-se de extrair a pele para reconstruir animais mortos - o que antigamente também se conhecia pelo pelo verbo "empalhar". Em meio a rotina de trabalho ao lado do colega Greg - com quem divaga sobre a vida, cotidiano e amores (a relação de Cecília com o músico Jesse está em crise), ela recebe uma ligação vinda diretamente de Porto Alegre: após um AVC, Raul Matzenbacher, o pai de Cecília está mal de saúde. Só que retornar para a capital gaúcha será revisitar memórias de infância que, 30 anos depois, pareçam presas a um passado distante. Ainda que, como já dito, sigam ainda vivas. Mais ou menos como as corças ou lobos que protagonizam os cenários vibrantes construídos construídos com esmero por Cecília.

Ocorre que, anos atrás, Raul foi acusado de assassinar o deputado e seu colega de bancada no PMDB, José Carlos Satti. Cecília na época tinha nove anos e pouco compreendia daquilo que ocorria no seu entorno - fossem as animadas caçadas no meio do mato no interior de São Gabriel ou mesmo a rotina de convivência com os irmãos Vinícius e Marco, com quem passava os dias entre audições de Echo and the Bunnymen, Depeche Mode e The Cure. Rememorar esse cenário que culminaria no Caso Satti (a adaptação do Caso Daudt) é reencontrar um núcleo familiar esfacelado, que é completado pela mãe Carmen, uma dondoca porto-alegrense que, nos dias de hoje, se orgulha de defender políticos de extrema direita em uma luta abstrata contra o comunismo. Aliás, Carmen pode ser a chave para a motivação do crime, já que, encorajado pelo ciúme - não apenas da mulher, mas dos ideias políticos progressistas e oxigenados de Satti - Raul pode ter se sentido impelido à violência extrema. Ou não?

Repleto de ambiguidades e de idas e vindas, Bensimon constroi seu livro com uma prosa saborosa que discute, nas entrelinhas, temas como o homossexualismo em uma região conservadora, a preservação da camada de ozônio (uma novidade nos agora distantes anos 80) e mesmo a espetacularização de casos de violência. Em uma rima direta com os dioramas em si - e a possibilidade de permitir uma viagem nostálgica a partir desse tipo de montagem -, a autora refaz acontecimentos do passado, juntando uma e outra peça, na tentativa de esclarecer o real envolvimento de seu pai no crime. Uma tarefa complexa que envolve uma família disfuncional e um crime que se entrelaça com o universo dos amimais empalhados. "Em Diorama, os Matzenbacher são um retrato [...] dos valores tortos de 'defesa da família' tentando justificar um ato de violência. Ao fim e ao cabo, ficará evidente que o mal que a família causa é muito maior do aquele que supostamente está do lado de fora", comentou a escritora em entrevista ao Estado de Minas, explicando como esse tipo de violência encontra eco na atualidade. 

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