segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

30 Melhores Discos Internacionais de 2023

Devo confessar a vocês que esta foi uma das listas de discos internacionais mais complicada de fazer porque, honestamente, achei este um dos melhores anos da última década em matéria de lançamentos! Foi muita coisa boa. Ou vai ver que fui eu que ampliei a minha dedicação em escutar materiais novos - e, num levantamento prévio, contabilizei mais de 150 álbuns de 2023 conferidos, todos eles mais de uma vez. E nunca é demais mencionar que relações do tipo são um pequeno recorte não necessariamente dos "melhores" - ainda que continue nomeando desta forma - e sim daquilo que mais gostei dentro do que foi possível ouvir. É algo meio que de momento. 

 

 

E, mais, mesmo no último minuto dessa compilação, ainda me deixou incomodado o fato de ter de deixar muita coisa boa de fora. Acho que se elaborasse essa mesma lista no mês que vem - ou na semana retrasada -, talvez um terço dos nomes inclusos seria substituído por outro. Porque a música, afinal, é dinâmica e está, assim como outras artes, em movimento. Muitas vezes elas nos pegam por uma "pontinha", por algo que nem sabemos explicar direito. Um refrão, uma melodia pegajosa, uma letra com a qual nos identificamos. O caso é que nunca houve tanta música boa - e democrática - sendo feita no mundo atualmente. E aqui, apresentamos um pequeno recorte daquilo que mais nos impactou em 2023. Que de quebra, ainda tem um componente adicional: as mulheres dominaram tudo! Boa leitura!

 

30) Christine and the Queens (Paranoïa, Angels, True Love): Existe um problema meio inevitável nos discos "inchados", que é o fato de eles não terem como ser 100% bons o tempo todo. É um risco que certos artistas correm. E uma verdadeira ousadia em tempos de consumo rápido, de tik tok, de instantaneidade e de dispersão em meio a tanta oferta. Tudo isso não impediu o Christine and the Queens de lançar o seu mais ambicioso projeto. Dividido em três segmentos, o quarto trabalho de estúdio de Héloïse Letissier possui 20 músicas distribuídas em (quase) inacreditáveis 96 minutos. A empreitada pode parecer meio excessiva, mas quem se aventurar nela encontrará uma coleção de canções magnéticas, divinas, teatrais e operísticas que levam o pop experimental da artista a um limite que avança para além dos sintetizadores transcendentais (e dançantes) testados anteriormente. Aqui, parece haver um diálogo mais permanente com uma atmosfera mais etérea - algo como um encontro entre o trip hop, a new age e o jazz. É desafiador e nem sempre fácil. Mas é completamente satisfatório em seus melhores momentos, como comprovam as espetaculares Tears Can Be Soft e A Day in the Water. Sofisticado mas caótico, artístico mas compreensível, esse é daqueles discos que jamais imaginaríamos precisar em pleno 2023.

 

29) Slowthai (UGLY): A gente está devastado por dentro, mas sorri. Está com a mente desgraçada mas com a terapia em dia. Finge saúde e frequenta a academia. Come mal e sobrevive em empregos infelizes. Nesse mundo cheio de dores e barulhos por todos os lados parece que nunca estamos plenos, por mais que na fachada a gente faça de conta que está. O clima em UGLY, do rapper Slowthai é mais ou menos esse até no título do projeto - um acrônimo para U Gotta Love Yourself (ao mesmo tempo em que a tradução literal da palavra afirma o contrário). Nesse sentido, enquanto o artista evoca uma raiva que parece vir da alma - que é expressada em seus vocais selvagens, eventualmente gritados,com um pé no hip hop e outro no punk -, os versos percorrem os meandros da alma, fazendo escorrer sentimentos ambíguos. "Você é rei / Você é rainha / Você é gênio" afirma na abertura Yum para, já na sequência, explicitar a sua luta interior (Estou sem motivação / Preciso de uma intervenção). E muito da força do trabalho, o terceiro da carreira do artista, emerge desse universo de paradoxos - como comprova, por exemplo Selfish, que fala sobre amor próprio ao mesmo tempo em que divaga sobre o que as pessoas em volta efetivamente pensam de você. Atualíssimo.

 

28) Blur (The Ballad of Darren): Vamos combinar que o efeito causado pelo Blur é meio curioso. Se por um lado, Damon Albarn e companhia são capazes de lotar estádios - como vinham fazendo em apresentações recentes e pós-pandêmicas -, por outro, parecem ser aquela banda ideal pra festa indie alternativa promovida por aquele bar descolado. E talvez seja justamente essa capilaridade, que os torne tão interessantes. Porque se, por um lado, eles são melhores do que ninguém na hora de conceber canções que olham com certo cinismo pra sua Inglaterra natal, por outro eles sempre foram muito hábeis em investigar sentimentos bastante humanos, colocando no "papel" suas dores, incertezas e temores. Agora, já na casa dos 50 e alguma coisa, os integrantes da banda poderiam ficar de boas, nas suas casas de campo, fazendo shows aqui e ali, engordando as suas contas bancárias e replicando padrões que eram motivo de deboche no passado. Mas e as inquietações? Atualmente, as pessoas precisam lidar com pandemia, extrema direita, guerras, tecnologias e outros temas que, aqui e ali, ganham eco na voz agridoce e melancólica de Albarn. Assim, o nono álbum se converte em um projeto maduro, paciente e melódico, como comprovam as ótimas Barbaric, The Narcissist e The Heights.

 

27) Jess Williamson (Time Ain't Accidental): Jess Williamson estava assistindo ao filme Cenas de Um Casamento (1973) de Ingmar Bergman quando pausou o filme porque simplesmente não conseguia parar de chorar: "é uma representação de um relacionamento desmoronando e eu me identifiquei demais com a forma como a protagonista se sente", explicou a artista. O remédio para apaziguar a dor foi migrar para a sala ao lado onde estava o seu teclado - o que faria com que a canção Two Seasons simplesmente brotasse de sua alma. Uma das músicas mais tristes de seu quinto trabalho, talvez ela funcione como um fio condutor da temática que rege o projeto - que no caso, é a separação. Jess foi casada durante nove anos. E agora parece utilizar a sua música como uma forma de tentar juntar os cacos, desobstruir a dor e, ao cabo, continuar. Sim, numa comparação com outros discos, a artista que mescla country, folk e indie parece uma nota mais melancólica. A estrada anda mais empoeirada, o deserto mais seco. E o coração? Bom talvez não seja acaso a artista ter lançado um de seus melhores álbuns justamente após um rompimento. Vai ver seja parte da cura. De superar essas curvas sinuosas e difíceis - que abrem espaço para a esperança. E que fazem com que a gente se identifique tanto.

 

26) The New Pornographers (Coninue as a Guest): mantendo certa regularidade dentro de uma carreira de mais de 20 anos, é meio natural nos perguntarmos se os canadenses ainda têm lenha pra queimar. A resposta é sim - ainda que as coisas possam ter mudado. Com Continue as a Guest é possível perceber que o DNA do coletivo segue todo lá, seja nas guitarrinhas cheias de fuzz, nas melodias efervescentes, nos vocais multiplicados ou nas letras que operam como fluxos de consciência excêntricos e irônicos. Talvez a diferença agora é que Dan Bejar, Neko Case e companhia não sejam mais os jovens de vinte e poucos anos, que tinham aquela pressa graciosa que convertia os aspectos aleatórios do mundo a em canções simplesmente perfeitas. Só que muita coisa aconteceu e segue acontecendo - de pandemia à guerras. Nesse sentido parece haver uma necessidade de reconfigurar a rota . De alguma maneira isso fica bastante claro na faixa-título, que rumina sobre a necessidade de continuar, mesmo em um cenário de desolação (A maioria de nós não pode se dar ao luxo de desistir). Ok, há aqui e ali espaço para algum movimento a mais, como no caso das animadas Bottle Episodes e Really Really Light. Mas em geral há um charme em envelhecer. Que se encaixa direitinho com a proposta do disco.

 

25) Foo Fighters (But Here We Are): Frida Kahlo já dizia que "a arte mais poderosa da vida é fazer da dor um talismã que cura" - e, bom, não dá pra negar que But Here We Are parece ter sido o veículo ideal para que Dave Grohl tentasse exorcizar a tristeza não apenas pelo falecimento do baterista Taylor Hawkins, mas também de sua mãe, Virginia. Foram quatro meses entre uma morte e outra e, pro bem ou pro mal, os episódios trágicos parecem ter contribuído para que viesse à tona o melhor Foo Fighters dos últimos tempos. Não, não há nenhuma revolução aqui. Mas, em alguma medida, essa também parece ser uma forma de afagar os fãs. De lembrá-los de que eles ainda estão ali. E de que talvez continuar possa ser o caminho pra que as perdas sejam superadas. De forma discreta, a banda não concedeu muitas entrevistas sobre o disco ou deu detalhes sobre as letras e seus significados. Mas não é preciso ser nenhum expert pra perceber que temas como luto, memórias, saudade e outros se espalham por todos os cantos, como comprova a ótima Under You, que tem aquele quezinho de Foo das antigas, unindo refrão ganchudo e barulheira agridoce. Talvez desde Wasting Light (2011) a banda não lançasse um disco tão vigoroso, límpido, liricamente belo e até esperançoso - daquele tipo que todos os atos parecem fazer sentido.
 

 

24) Janelle Monáe (The Age of Pleasure): Talvez seja apenas a vida imitando a arte. Ou mesmo a Janelle Monáe "se guardando pra quando o carnaval chegar". E o carnaval, já diria Chico Buarque, há de chegar. No caso da artista americana, esse desejo de libertação de sistemas opressores que parecia estar no centro da narrativa de discos como o elogiado Dirty Computer (2018), aqui dá espaço para um senso de vitória. De exaltação. Sim, é hora de festejar. De deixar para trás a distopia capaz de evocar cenários de ficção científica, para mergulhar em uma temporada de amor, de paixão, de autodescoberta, de tesão, de hedonismo. Sonhar com um mundo melhor em tempos de guerra, de pandemia e de extrema direita sempre rondando? Vem pra cá que Janelle não coloca o cropped e reage. Ela tira o cropped e arremessa pra longe. Se libera dele. Pra iniciar uma era do prazer. Sim, aquela parcela da mídia especializada essencialmente conservadora considerou pouco interessante esse disco justamente pelo que ele tem de melhor: o caráter menos cabeçudo. "Estou me sentindo tão sexy" sussurra ela em Haute para, logo em seguida, na deliciosamente quente Water Slide, ela emendar um "se eu pudesse me comer agora mesmo eu faria isso". O conceito aqui é a safadeza. E a gente adora.


23) Everything But the Girl (Fuse): "Você canta para curar o coração partido? / Ou você canta para começar a festa?". Sim, a letra de Karaokê, canção que fecha Fuse, pode até aludir a uma noite aleatória de um bar de São Francisco, onde os clientes se alternam entre a energia vigorosa de Elvis Presley e a sutileza poética de Bob Dylan. Ainda assim não deixa de ser interessante notar como os versos combinam direitinho com aquilo que encontramos desde sempre nas entranhas da música proposta pelo duo britânico Tracey Thorn e Ben Watt. Inferninhos lotados que contrastam com as esquinas solitárias, uma festa fritada às 17h com o sol a pino paradoxalmente alto, ter alguém em casa pra amar mesmo após uma madrugada intensa e hedonista. Há, ao cabo, um quê de orgânico e tecnológico em igual medida na coisa toda. Nesse sentido, é possível afirmar que as canções da banda evocam justamente essa paisagem contrastante em que a festa acontece, enquanto os instantes de introspecção ecoam internamente. "Eu gosto do escuro / Eu gosto do humor" lembra Thorn nos versos da já citada Karaokê. É a escuridão que se une às melodias hipnóticas. É o movimento e a contemplação. É cantar para sarar as feridas. Ou para celebrar. O EBTG ficou 24 anos sem lançar um novo trabalho. E quando voltou, voltou como se nunca houvesse saído.

 

22) Beach Fossils (Bunny): Existem algumas bandas que a gente não dá muita bola, mas tão sempre ali, fazendo seu trabalho com competência a cada novo disco. E é justamente esse o caso dos americanos do Beach Fossils. Em seu quarto registro, eles preservam a tradição do lo-fi e do dream pop que lhes acompanha desde o começo da carreira, mas agora adicionando uma notinha a mais de melancolia em sua sonoridade primaveril. Talvez seja a maturidade, que vem acompanhada dos quase quinze anos de estrada. Ou mesmo o estado das coisas. Mas a guitarrinha agridoce á moda The Cure, que se junta aos vocais estilo Real Estate de Dustin Payseur, seguem trafegando no limite entre o melancólico e o primaveril, entre o nostálgico e o adocicado. Apostando na força dos refrões, esse é aquele tipo de álbum que pode servir de porta de entrada não apenas para a obra do grupo, mas para todo um estilo. Músicas como Don't Fade Away, por exemplo, são sólidas mas sonhadoras, sendo honestas na abordagem do amor,  das relações humanas e da complexidade de tudo (Disse algo engraçado, mas você não me ouviu / Quando disse de novo, com mais clareza, já era). Há outros momentos de brilho, como em Dare Me, Waterfall e Run to the Moon, nesse disco que, assim que se encerra, a gente já quer ouvir de novo.

 

21) Kelela (Raven): Em tempos de redes sociais e de superexposição permanente é sempre meio estranho quando alguém dá uma "sumida" - e foi justamente esse o caso de Kelela que, depois de furar a bolha com o ótimo Take Me Apart (2017), resolveu tirar uma espécie de período sabático aparecendo menos que o normal. Quando os fãs começaram a ficar um pouco mais ansiosos, a artista americana soltou, no segundo semestre do ano passado, o single Washed Away, que era o indicativo que um novo trabalho estava sendo gestado. Sim, a cantora pode ter tido um pequeno período de bloqueio criativo durante a pandemia, mas, mais do que isso, como mulher negra e queer ela estava ampliando a sua bagagem para poder abordar com ainda mais propriedade questões ligadas à igualdade de gênero, vulnerabilidade e senso de comunidade. É desse cenário que surge Raven. Levemente mais experimental que o álbum anterior, mas sem deixar de acenar para as tradições do R&B e da eletrônica sofisticados, o que se tem aqui é uma coleção de canções que conseguem ser etéreas e introspectivas, magnéticas e aconchegantes. É difícil ficar alheio ao vocal aveludado da artista, especialmente em instantes evocativos, como em Happy Ending, Closure, Enough for Love e Contact. Sedutor, transcendente, hipnótico. Faltam adjetivos.


20) Fatoumata Diawara (London Ko): De vez em quando ocorre de algum artista furar a bolha, sendo capaz de utilizar a sua arte como forma de exortação. No caso de Fatoumata Diawara não é nem preciso compreender totalmente as letras de suas músicas - que misturam ritmos africanos, soul, jazz e eletrônica moderna - para que entremos em contato com o ethos da coisa. Há um sentido semiótico que parte da percussão, dos corais, do canto evocativo, ainda que amplo. Nascida na Costa do Marfim e filha de pais malineses, a artista participou de quase uma dezena de filmes e de peças de teatro, sendo também hábil ao empunhar uma guitarra. "Uma garota do Mali com uma guitarra era apenas uma coisa maravilhosa" comentou, ainda no começo de sua carreira, citando a instrumentista Rokia Traoré, que lhe serve de inspiração. Em seu terceiro trabalho de inéditas, coproduzido por Damon Albarn do Blur, a cantora mescla tradição e modernidade, discutindo lutas das mulheres, fundamentalismo religioso, crises de imigração e outros temas, sempre com a potência e a fúria que caracterizam o seu vocal. Peça central do álbum, a fantástica Massa Den fala justamente sobre respeito às diferenças, exaltando o amor. "O amor é livre, o amor não pode ser forçado por ninguém", comentou no material de divulgação. Assinamos embaixo.


19) Laufey (Bewitched): Musicais de Hollywood, luz do luar suspirante, standards de jazz classudos, dançarinos apaixonados. Vamos combinar que a coleção de imagens mentais possibilitadas pelo segundo disco de estúdio de Laufey é gigante. Como se fosse uma veterana, a estrela saída do Tik Tok apresenta, em alguma medida, para toda uma geração de ouvintes as delícias da música clássica de décadas atrás - mas sem aquele rigor catedrático, que poderia beirar o presunçoso. Ao contrário, a artista nascida na Islândia e que tem ascendência chinesa recupera toda uma influência familiar não apenas de contato com o violino, mas também com discos de vinil de compositoras como Ella Fitzgerald e Billie Holiday. Todo esse cenário aparece em uma coleção de canções oxigenadas, que poderiam muito bem integrar filmes ou animações dos anos 40, sem que nem percebêssemos qualquer diferença. E, mais do que isso, a inspiração não representa uma mera cópia: há personalidade em cada curva, o que confere brilho a um estilo que poderia beirar o anacronismo. O resultado são canções sofisticadas e charmosas, casos de Lovesick, California and Me e From the Start que, de quebra, ainda serão aquela companhia ideal para o jantar romântico, com vinho, luzes baixas, boa gastronomia e lençóis de cetim.


18) Boygenius (The Record): Acho que é possível afirmar que, com o Boygenius, Julien Baker, Lucy Dacus e Phoebe Bridgers atualizaram as definições de "supergrupo". Queridinhas entre os alternativos, as três uniram forças para um trabalho que tem aquele ar intimista de violãozinho no quarto, ao mesmo tempo em que se apresenta como um projeto poeticamente vigoroso, de sólidas composições. Cheio de personalidade, o resultado é um conjunto de canções bastante heterogêneas, que ainda assim estabelecem diálogo entre si. Um bom exemplo disso pode ser visto já na abertura do álbum, onde a suave Without You Without Them, cantada à capella, logo dá espaço a $20, que tem Baker em uma fúria que remete às riot girls dos anos 90, que mais adiante abrirá passagem para a melancólica Emily I'm Sorry, em que a guitarra enevoada de Bridgers brilha. Tudo numa alternância de estilos e de movimentos dentro do disco que podem parecer desconectados, mas que permanecem coesos dentro dos mais de 40 minutos de execução - seja pelo padrão vocal, pela predileção por letras cheias de divagações adultas, sobre medos existenciais ou a respeito das inquietações da alma. E que permitem que qualquer pessoa se identifique. Indo do acústico ao turbulento, o registro ainda reserva como divisor de águas a melhor música do ano: Cool About It. Só resta amar.


17) Sampha (Lahai): Existe um quê de místico, de mágico, de onírico nas sofisticadas composições do músico Sampha. Como se a cada novo contato com esse segundo disco de estúdio, fôssemos levamos a uma espécie de estado de flutuação, que nos possibilitasse observar o todo do alto, a distância, com calma, placidamente. Aliás, a própria capa sugere isso. E os títulos, como na autoexplicativa Suspended. E, mais ainda as letras, como podemos perceber  em Spirit 2.0 (A próxima coisa é que estou vagando pelo céu aberto / E não me sinto tão assustado / Sonhando com os olhos aberto / Estou agarrando o ar). O expediente se repete no single Only (Comecei a olha para baixo / [...] Eu estive nessa rotina como se isso fosse amortecer a minha queda). "Sinto que muito do que escrevi vai entre esse estado de sonho e o desenho de cenários da vida real" resumiu, no material de divulgação. Religião, paternidade, solitude, a importância de um abraço, espiritualidade, metafísica, memórias que esvanecem. Estes e outros temas se equilibram em meio a sintetizadores minimalistas e pianos pulsantes, que se mesclam a ritmos e percussões africanas, unidas a refrãos dançantes. Em alguma medida esse é um disco que cresce a cada nova audição. E sem nunca soar difícil por isso.


16) Tirzah (Trip9love...???): Se tem uma artista que transita bem entre o experimental e o acessível, esta é a inglesa Tirzah. Se em alguns momentos as suas melodias sofisticadas parecem envoltas em névoas intransponíveis, em outros os elementos descomplicados dos versos parecem um convite à simplicidade. Foi assim com os elogiados Devotion (2018) e Colourgrade (2021), com o expediente se repetindo neste recente trabalho. Ao cabo, esse é aquele tipo de disco que vai te ganhando aos poucos, a a cada nova investida ao encontro dos sussurros hipnóticos da artista. Sim, a coisa toda pode parecer meio hermética num primeiro momento, dados os efeitos eletrônicos complexos, as quebras de andamento nunca óbvias ou a condução evidentemente enigmática, que cruzam com naturalidade estilos como R&B, trip hop, bedroom pop e minimal wave. Mas o resultado é palatável, suave, harmonioso - como pode ser percebido na envolvente u all the time, que começa com um pianão classudo que, ali adiante, se encontrará com um sintetizador levemente poluído, que encaixará direitinho com o minimalismo dos efeitos e com o vocal límpido. Atmosférico, sombrio e melancólico. Mas sem deixar de ser aconchegante. É esse o resumo da ópera.

 

15) Mitski (The Land Is Inhospitable and So Are We): Talvez Laurel Hell, o acessível disco anterior, seja uma das raras exceções na carreira da Mitski. Famosa por certo hermetismo que envolve letras bastante poéticas e melodias com menor apelo comercial, a artista se soltaria mais no trabalho lançado no ano passado, flertando em alguma medida com o pop classudo e soturno dos anos 80. Só que com esse sinuoso sétimo álbum, parece haver uma espécie de retorno para uma sonoridade menos previsível. O que não significa que não haja beleza. A canção inaugural, chamada Bug Like an Angel, por exemplo, poderia ser apenas um countryzinho genérico como qualquer outro, tocado ao violão. Nada que não tenhamos ouvido. Mas como se já não bastasse o inesperado coral gospel que invade a canção no meio do caminho, há ainda a letra metafórica em que temas ligados à família e a religião se cruzam em versos cheios de simbolismos (Há um inseto parecido com um anjo preso no fundo / Do meu copo, com um restinho sobrando). O tipo de contraste entre a sofisticação e a suavidade do tom, que parecem colidir o tempo todo com os temas mais pesados, com reflexões e dores cotidianas. Claro que não significa que não haja espaço para um respiro, como percebemos na graciosa My Love Mine All Mine, uma das grandes músicas do ano.

 

14) Allison Russel (The Returner): Aqui temos o famoso caso do "melhor disco do ano que ninguém ouviu". E é uma pena, já que essa artista que mistura folk e country com R&B e soul merecia mais visibilidade. Afinal, nessa sequência do ótimo Outside Child (2021) é tudo muito bem encaixado. Primeiro há o vocal que beira o sublime - naquele tipo de canto evocativo que alude ao sul dos Estados Unidos (ainda que ela seja canadense). Depois, há as melodias envolventes, que podem ir do contemplativo ao dançante às vezes na mesma canção. E, por fim, há as letras. E a própria história de vida da artista, que cresceu sofrendo uma série de abusos físicos, mentais e sexuais de seu pai adotivo. Como mulher negra, foi um caminho quase natural a sua música (e a sua arte) pender para certo ativismo. Demons, por exemplo, com seu coral gospel e instrumental polido, pode soar como uma peça de mera celebração a olhares desatentos. Mas há uma fúria que emerge da letra antirracista (Parada na esquina esperando o ônibus escolar / Ela disse que eu tive muito azar / Em ter o cabelo e a pele ruins / E eu simplesmente não entendi isso). Só que o violino festivo, os sinos que tocam, os barulhos que se expandem e se encolhem, as palmas e outros elementos surgem pra lembrar que há luz no fim do túnel. "Demônios não gostam da luz do sol", lembra a cantora na mesma música. Infalível.


13) The Clientele (I Am Not There Anymore): O estilo encharcado, enevoado, das melodias do Clientele - com referências em suas letras às cidades provincianas e seus subúrbios úmidos, gramados e cerquinhas brancas, pássaros vacilantes e finais de tarde incertos -, vamos combinar, sempre foram uma marca registrada. O bucolismo que se mistura com o concreto, a chuva matinal e a grama cortada, os sonhos cintilantes que se mesclam à realidade, o rádio que toca uma música triste na penumbra da sala - tudo nas canções do coletivo evocam esse sentimento meio mágico, capaz de conferir certo verniz à rotina, às coisas cotidianas. E não é diferente com o excelente sétimo disco. Ninguém afinal fala de fontes de água, de janelas opacas e de luzes furtivas que percorrem vielas, da forma como Alasdair Maclean e companhia - e basta ver os títulos das canções (Chalk Flowers, Through the Roses, Garden Eye Mantra) para que tenhamos a dimensão precisa desse expediente. No limite entre o indie pop nostálgico, o jazz contemporâneo e a eletrônica minimalista, o trabalho é pura personalidade indo do experimentalismo à suavidade dos arranjos em questão de segundos. O que resulta num disco de grande beleza, daqueles que nos fazem formar imagens mentais palpáveis, conforme percorremos suas curvas.


12) Arlo Parks (My Soft Machine): A maciez e a sofisticação dos arranjos. Um jeito de cantar sussurrante, que aconchega. As letras repletas de citações culturais e de histórias cotidianas - de amor, de amizades, de relações familiares - tornam Arlo Parks uma das artistas mais interessantes da atualidade. E ainda que My Soft Machine não tenha o brilho do trabalho inaugural - o ótimo Collapsed in Sunbeans (2021) -, a artista aposta novamente na mistura de R&B, jazz, pop e eletrônica, utilizando sua poética simples e criativa como veículo para íntimas composições, que parecem se revelar aos poucos, sem pressa. O resultado é um trabalho cativante, que se alterna entre sintetizadores primaveris e guitarras eficientes. Um bom exemplo dessa mescla pode ser percebida na saborosa Weightless, uma canção ao mesmo tempo açucarada e dolorosa sobre a experiência de amar alguém, mas receber de volta apenas migalhas de afeto (Você está tão fechado, eu estou esgotada / Mas eu brilho no caso raro / De você me dizer que eu sou seu raio de sol / Eu estou faminta por sua afeição). Ao cabo, é o tipo de música que nos faz abrir um sorriso, mesmo com o coração devastado - tudo isso pela beleza ecumênica dos versos, que se junta a uma melodia estranhamente dançante. É difícil ficar alheio.

 

11) Kali Uchis (Red Moon In Venus): Falar de paixão, de amor (e de tesão) quando o assunto é música pode até ser um lugar comum. Mas não para Kali Uchis. Afinal de contas, tem que ter muita autoestima e senso de preservação para se libertar de uma pessoa sem ficar ressentido ou amargo - como ela faz, por exemplo, no single I Wish You Roses (Mas se você e meu coração algum dia forem em caminhos diferentes / Vou me certificar te dar essas bênçãos, pois elas são tudo o que tenho), que integra esse envolvente terceiro trabalho. Aliás, a lua vermelha em Vênus é a deixa para um registro que mistura desejo, desgosto, fé e honestidade. O resultado é uma diversidade de composições que mesclam dores e alegrias, sempre banhadas em ambientação cósmica, etérea. Misturando R&B, afrobeat, disco music, soul, pop e psicodelia, Uchis é pura classe mesmo quando seus versos soam bastante realistas no que diz respeito aos relacionamentos. Ainda assim, não significa que o amor não está em alta. Ele ondula sempre amparado pela voz sussurrada da artista, como pode ser percebido na noventista Blue. Vulnerabilidade, confiança, desejo, querer escapar para algum lugar onde apenas se possa ficar "chapado" com quem você ama. Para a artista o amor é uma experiência completa. E só se vive ela mergulhando de cabeça.


10) Wednesday (Rat Saw God): Vamos combinar: é nas contradições da vida na pequena cidade que reside a força da poesia ao mesmo tempo turbulenta e contemplativa dos americanos do Wednesday. Nesse sentido, o grupo é capaz de unir a ambientação pacata do povoado poeirento - onde os moradores sentam tranquilos nos alpendres das casas ajardinadas ao entardecer -,com o clima intempestivo da juventude que, nesses mesmo locais, se encontra em postos de gasolina de beira de estrada para cervejadas que avançarão madrugada adentro. Barulho e placidez. Ruído e calmaria. Por vezes se alternando como uma espécie de metáfora da própria existência. Ao cabo, e a despeito das inúmeras semelhanças com bandas alternativas dos anos 90 - e que grupos como Waxahatchee e Hop Along replicam na atualidade, com igual qualidade - aqui temos um conjunto de canções que transbordam personalidade, levando o ouvinte por um caminho incerto. Se Chosen to Deserve é quase um single possível de ser executado no mesmo bloco radiofônico em que estarão o Alvvays e The War On Drugs, em outro instante somos tragados por letras que acenam para uma inesperada ironia "A América é uma criança mimada que ignora o luto", debocha a cantora Karly Hartzman na sinuosa Quarry. É uma forma de resumir a ideia toda.

 

9) Sufjan Stevens (Javelin): "Este álbum é dedicado à luz da minha vida, meu querido parceiro e melhor amigo Evans Richardson, que faleceu em abril. Ele era uma pessoa absolutamente preciosa, rara, cheia de vida, excepcional em todos os sentidos". A mensagem deixada por Sufjan Stevens no Tumblr, no dia do lançamento de seu nono disco de estúdio deu a pista: em meio a beleza quase mística de suas melodias, há uma profundidade poética que emerge da dor. Stevens está de luto e não é a primeira vez. Já havia sido assim no elogiadíssimo Carrie & Lowell (2015), que ele concebeu como uma homenagem à sua falecida mãe. E agora, com o retorno ao que ele sabe fazer de melhor - no caso, as canções contemplativas, de instrumentação simples, acústica - ele entrega uma nova coleção de músicas bastante diretas, sem firulas. E dilacerantes, claro. Evidentemente que se engana quem pensa que economia signifique desatenção. Muito pelo contrário, já que a maioria das canções inicia intimista, com o vocal em um falsete introduzindo temas complexos de amor, de perdas e de sofrimento em meio à incertezas que, mais adiante, crescerão entre corais de vozes, efeitos eletrônicos majestosos e até refrãos grandiosos. Como comprova a bela Will Anybody Ever Love Me?.

 

8) CMAT (Crazymad, For Me): Sempre fico impressionado quando me deparo com algum artista que, aparentemente, não tem a atenção que merece - caso da CMAT. Como assim as pessoas não estão simplesmente falando dela? Segunda colocada na nossa relação do ano passado, com o singular If My Wife New I'd Be Dead, Ciara Mary-Alice Thompson retorna com este registro em que novamente mistura o indie, o folk e o pop colorido, em letras divertidamente cínicas, povoadas por referências culturais diversas e que falam de relacionamentos tóxicos, de tramas mal resolvidas e de dilemas cotidianos de forma afiada, debochada, imprevisível. Preservando a personalidade do trabalho anterior, a irlandesa converte suas composições em hinos cheios de sarcasmo que, com seu apelo comercial irresistível, parecem prontos para serem cantados a plenos pulmões pelo público. Um bom exemplo desse expediente pode ser encontrado na festiva e nostálgica Where Are Your Kids Tonight?, dueto com John Grant em letra que parece olhar para o passado na hora de refletir sobre o futuro. Já quando reduz velocidade, como no caso da espetacular Vincent Kompany, a artista mantém a sua verve que pende pra leve excentricidade na hora de debochar de si própria. Vale ser descoberta.

 

7) Paramore (This is Why): Há um ano o Paramore decidiu trocar a imagem do álbum homônimo de 2013, que mostrava os três então integrantes da banda em uma foto de capa clássica de banda. Se você abrir algum serviço de streaming e procurar o disco, irá encontrar uma foto de Hayley Williams de costas, vestindo uma jaqueta com a frase grow up que, no bom português, significa "cresça". Talvez a cantora e principal nome do trio estivesse nos dando um recado: já estamos com trinta e poucos anos. Mas, se você compartilha os gloriosos trinta ou quarenta e alguma coisa sabe que a vida não é um lugar seguro, confortável e previsível. O capitalismo corrói nossa saúde mental, os relacionamentos acabam e nos deixam ainda mais solitários do que parecia possível, uma pandemia ou mais uma guerra incompreensível podem simplesmente ocorrer e, bem, precisamos lidar com isso. E, discutir todos os processos e traumas desse crescer meio que na marra, é o que o coletivo de pop emo faz com maestria em seu sexto álbum. Levemente mais intimista, com boas doses de melancolia raivosa, ainda que sempre insinuante, o resultado é um conjunto de canções sensíveis, honestas, divertidas e até esperançosas, como comprovam Big Man, Little Dignity, Running Out of Time e Crave.

 

6) Kara Jackson (Why Does the Earth Give Us People to Love?): "Por quê a terra nos dá pessoas para amar? / Para em seguida levá-las embora, para fora de nosso alcance?". A pergunta melancólica feita na faixa-título do álbum de estreia de Kara Jackson não é por acaso. As dores do mundo, ao cabo, formarão a matéria-prima de boa parte das 13 canções do disco. Qual o sentido de tudo isso? "Estamos apenas esperando a nossa vez?". questiona a artista enquanto seu violão flui como uma espécie de extensão evocativa do completo absurdo do luto. Algo que, somado a sua voz angustiada, apenas amplia o sentimento de vazio. Sim, Jackson pode ser apenas uma jovem de 23 anos. O que não significa que ela esteja imune às perdas. E perdas aqui podem também ter um sentido meio literário. E literal. Ou estarem diretamente relacionadas ao amor - e suas desilusões e paixões desastradas. "Quando eu tiver limpado meus lençois / Não venha me ligar para ver que / Não sou tão maternal / Não vou beijar sua bochecha" afirma em Free, num misto de deboche e sobriedade que envolve um aceno a adultos infantilizados. Jackson se apropria desses temas com elegância, mesclando estilos como blues, alt country e folk, reafirmando o poder da mulher. De tirada em tirada, quem ganha é o ouvinte.

 

5) Jessie Ware (That! Feels Good!): Vamos combinar que é muito bom ver um artista da música se reinventando. Afinal, estabelecer diálogo com outras sonoridades ou mesmo percorrer outros caminhos, não deixa de ser uma forma de sair do lugar comum. Nesse sentido, quem acompanha a carreira da Jessie Ware sabe que, da artista que apostava em canções de ambientações mais etéreas, recheadas por melodias mais evocativas, pouco restou. De um certo desgaste do estilo em projetos bastante pessoais como Glasshouse (2017) ao revival da disco music em What's Your Pleasure? (2020), concluído em plena pandemia, o que conferimos foi um processo transformador. Que, agora, com o quinto trabalho de estúdio, parece ser o ponto alto de maturação. Partindo exatamente de onde parou no projeto anterior - que tornavam as pistas de dança com seus globos espelhados, gelo seco e hipnose luxuosa, algo palpável - a cantora e compositora investe numa nova leva de canções que não apenas referenciam artistas do final dos anos 70 e início dos 80, como conferem originalidade a um gênero que, aqui e ali, poderia soar apenas nostálgico. O que pode ser comprovado em gemas como Pearls, Free Yourself e e Beautiful People, que prestam tributo a Chic e a Chaka Khan, sem perder a personalidade.


4) Lana Del Rey (Did You Know That There's a Tunnel Under Ocean Blvd): Vamos combinar que, a cada lançamento da Lana os fãs jamais se decepcionam, porque ela simplesmente entrega tudo - e não é diferente com o oitavo disco de estúdio. E eu não sei se é exagero de minha parte, mas eu fico particularmente feliz em viver em uma época em que posso acompanhar uma artista tão completa. Lana é música, mas também é outras artes. É poesia, cinema, literatura, dança. Suas letras longas, interpretadas de forma lenta, por vezes sussurrada, sem pressa, parecem compor a trilha sonora de algum filme alternativo que será exibido no Festival de Sundance. É romântico, mas elegíaco, sexy, mas vulnerável - às vezes até na mesma música, como fica claro no single A&W, que consegue colocar na mesma letra a inocência da infância e a sensualidade da vida adulta. Com 16 músicas e quase 80 minutos de duração, o álbum pode ser meio excessivo para o ouvinte ocasional. Mas, ao cabo, esse é um disco para quem gosta desse universo de romances estranhos, tortos e ocasionalmente enfumaçados, com a artista posando de femme fatale aqui, para ali adiante ressurgir melancólica e niilista do jeitinho que amamos. Seja refletindo sobre perdas familiares (Fingertips) ou sendo nostalgicamente apaixonada (Sweet). Não há muito o que falar: apenas ouvir

 

3) Olivia Rodrigo (GUTS): Eu preciso ser honesto e dizer que não acreditava que a Olivia Rodrigo pudesse superar a famosa "prova do segundo disco". Depois do sucesso estrondoso de Sour, era meio natural que rolasse certa pressão. Da indústria, dos fãs, da mídia, de todo o entorno. E o que a artista fez diante desse cenário? Não apenas converteu o próprio tema das incertezas diante da fama na matéria-prima ideal para as suas letras, como ainda deu a GUTS um sabor bastante agridoce, com um perfume juvenil à beira da vida adulta. Crescer e amadurecer, vamos combinar, nunca é fácil. E amadurecer nesse ambiente inóspito da fama parece ser ainda mais complexo. Nesse sentido, talvez não seja por acaso que muitas de suas letras não apenas dialogam com as dores e as incertezas de quem mal está chegando aos 20 anos - seja no campo dos relacionamentos, das amizades, das festas e bebedeiras -, como ainda parecem fazer um permanente aceno para o meio em que ela está inserida. E Olivia tem uma capacidade única de falar de coisas  íntimas, do universo dela, e ainda assim fazer o público de identificar. Tenho 42 anos e terminei o disco berrando que "tudo fica melhor, mas e se não melhorar?". Já faz uns 25 anos que eu não sou adolescente, mas senti que era pra mim. Acho que era pra todos nós.


2) Caroline Polachek (Desire, I Want to Turn Into You): Um conjunto de músicas etéreas, hipnóticas, que parecem produto de uma outra dimensão - mas que, de forma paradoxal, nunca foram tão materiais, tão humanas, tão reais. Mais ou menos dessa forma pode ser definido o segundo trabalho de Caroline Polachek. Dos clipes borbulhantes às produções limpas, dos sintetizadores penetrantes aos efeitos digitais e barulhinhos criativos (estalos de dedos, assovios, zumbidos) que preenchem cada ato, não há nada que pareça deslocado ou fora de tom. Um bom exemplo de tudo isso pode ser observado em Fly to You, que promove um encontro entre Dido e Grimes e que, de alguma maneira, resume o tipo de ambientação encontrada no trabalho - uma união entre a sofisticação da primeira e o experimentalismo estranho da segunda. Do flamenco de Sunset (que parece uma trilha perdida de The White Lotus), passando pela inesperada gaita de foles que dá um clima todo escocês à Blood and Butter, até chegar ao trip hop de Pretty in Possible, a mescla de estilos parece trabalhada de forma orgânica, jamais soando como algo para forçar a barra ou para mero exibicionismo de Tik Tok. Polachek deu um passo largo em relação a estreia solo Pang, de 2019. E se consolidou entre as gigantes.

 

1) Chappell Roan (The Rise and Fall of a Midwest Princess): De um lado a garota provinciana da pequena cidade. De outro, a jovem que sonha ser uma dançarina em uma boate queer de um grande centro. A dicotomia existente entre a jovem do meio oeste americano nascida em uma típica família conservadora do Missouri e esse desejo de voar para longe para viver o sonho urbano pós-adolescente é aquilo que parece guiar, em alguma medida, esse espetacular álbum de estreia da cantora Chappell Roan. Juntando doses dançantes de Katy Perry e Olivia Rodrigo, mescladas com violão country estilo início de carreira de Taylor Swift, a artista prova que quando o assunto é o pop não é necessário reinventar a roda. Com personalidade e muito senso de humor, Roan vai no limite entre a capacidade de rir de si e a autoaceitação, numa mistura absurdamente saborosa de música de balada com tintas sombrias. Um bom exemplo desse expediente pode ser encontrado no divertido single Pink Pony Club, onde Roan imagina um encontro aleatório dela com a sua religiosa mãe em uma casa noturna famosa por acolher gays - E mamãe, todo sábado / Eu posso ouvir o seu canto sulista a mil milhas de distância. "Eu só queria fazer algo simples e bobo" comentou ela em entrevistas de divulgação. Ás vezes é o que basta pra lançar o melhor disco do ano.

 

E pra vocês, galera? Quais foram os grandes discos de 2023? O que faltou? Muita coisa, né, com certeza. Nos ajudem a construir essa relação e bora ouvir o que falta, antes do ano fechar!


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