Ainda é incerto inferir que a vida imitando a arte (ou o contrário) tenha dado um gás a mais para que a publicação alcançasse um público maior. Mesmo assim ela tem tido mais visibilidade, com direito a premiações internacionais e até entrada em listas de prestígio como a de 10 Melhores Livros de 2020 do New York Times. Lançada por aqui pela editora Moinhos, a obra tem chamado a atenção como uma novela que fica no meio do caminho entre uma distopia clássica à moda de 1984 ou Fahrenheit 451 e um romance catástrofe no estilo dos de J.G. Ballard. "Com uma arquitetura sutil de camadas e mecanismos, e sempre intensa e evocativa, a publicação atravessa os gêneros (ciência, ficção, distopia, ecocatástrofe) e se instala em um território único, à borda do horror, mas sem se submergir desse abismo: um espaço desolador, mas não livre de esperança" resume o crítico literário Ramiro Sanchiz, na orelha do livro.
Em alguma medida é o cataclismo ambiental que conduzirá o mundo à ruína - e a forma como a autora descreve a mortandade de peixes como evento inaugural em uma praia do Sul dos Estados Unidos é tão cheia de detalhes, tão realista, quanto perturbadora. Não há muita explicação plausível pro episódio, que não seja a ação humana. No romance, é possível perceber que já é meio tarde e sobreviver nesse cenário é tentar coletar os cacos em meio a uma rotina que envolve toques de recolher governamentais (especialmente em áreas de risco) e a ausência de uma alimentação em qualidade e quantidade - a "gosma rosa", na realidade, é uma espécie de embutido gelatinoso e industrializado que é fornecido pelo Estado à população, para que esta não morra de fome. Fora o problema da infecção em si, que poderá entrar por qualquer frestinha, pelo vento, como um "redemoinho picante e ácido", que descamará a pele, gerando um mal estar generalizado como uma gripe muito forte. "Não esqueça sua máscara" lembrarão os avisos do Ministério da Saúde vindos pela TV. Ironia das ironias.
A protagonista (sem nome) se ocupa de cuidar do pequeno Mauro, um menino que parece ter algum tipo de síndrome que faz com que ele coma sem parar (inclusive objetos). Já o ex-marido Max, está em uma ala do hospital conhecida como os crônicos - daqueles sem muita solução, sem piora nem melhora, num estado meio permanente, como que aguardando algo que nunca chega. Orbitando o trio central há ainda Leonor, a irascível mãe da protagonista, uma senhora de difícil trato que torna tudo ainda mais complexo nesse dolorido universo de caos - os livros nunca lidos, as conversas incompletas ou nunca ditas. E como grande personagem há ainda a opressora cidade portuária ocupada por algas rosas e tóxicas que surgem junto ao vento vermelho, como se fossem um outro tipo de materialização da natureza à moda The Last of Us. Há um sentimento permanente de desalento, de opressão, quase uma claustrofobia permanente que evoca uma cidade (e um mundo) doente, individualista, cheio de privações - e que só poderá encontrar algum tipo de paz nas relações. "Para mim, o mais importante era explorar os laços afetivos, toda a gama cinzenta de relações humanas complexas e, ao mesmo tempo, construir um pano de fundo distópico”, resumiu a autora em entrevista ao Estado de Minas.
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