segunda-feira, 31 de julho de 2023

Livro do Mês - Solitária (Eliana Alves Cruz)

Quartinho da empregada. Esse tipo de espaço que alude a um Brasil pós-abolicionismo e que funcionou por muito tempo como um cômodo reservado aos trabalhadores domésticos - em muitos casos posicionado em um ambiente apartado da "casa grande" ou dos locais de circulação da família - é um dos principais cenários do ótimo Solitária, obra mais recente da escritora Eliana Alves Cruz. Ainda assim, por mais que o título sugira, este é um livro que narra, à sua maneira, uma história de libertação. De luta para se livrar dos grilhões em um País que ainda parece experimentar um orgulho mesquinho relacionado à classe social. A senzala atual, afinal, é simbolizada por aquele cômodo pequeno, precário, naturalmente distante, isolado. É nesse cubículo mal iluminado, sem janelas, que vivem Eunice e sua filha, Mabel.

Essa "solitária" improvisada dá na cozinha, junto à lavanderia do apartamento gigante de dona Lúcia, a patroa que, ao lado do marido Tiago, tenta conferir certo ar de normalidade àquela rotina de segregação. Em um microcosmo em que Eunice atua numa espécie de invisibilidade constante - lavando, passando, cuidando da filha da patroa em uma rotina excruciante e permanente -, o que se tem nesse condomínio é a metáfora arquitetônica perfeita de um Brasil de retrocessos. No entorno de Eunice, uma série de outros serviçais fazem o conjunto funcionar à contento das elites - do carismático e abnegado porteiro Jurandir, passando pela auxiliar de enfermagem dona Hilda, até chegar ao eletricista Marcolino, todos ali coabitam em um universo de distinções em que tecem suas redes de sociabilidade, com os empregados preservando a solidariedade e o apoio coletivo como forma de não sucumbir a esse controle.



Só que esse tecido tão bem estruturado - ao menos nas aparências - começará a ruir quando um crime horrendo ocorre: a morte de uma criança que, de forma inexplicável, cai de um dos andares mais altos. Um lapso cotidiano, que poderia passar batido? Talvez, se não fosse o fato de que o caso ocorre justamente no apartamento de dona Eunice. Entrelaçando histórias, Eliana separa o livro em dois longos capítulos, que são narrados de acordo com as percepções e memórias de Eunice e de Mabel, com cada uma das histórias, ainda que parecidas, sendo percebidas de maneira distinta. "Mãe, a senhora precisa se libertar dessas pessoas", implora a filha que, já na fase adulta, adquirirá uma consciência que extrapolará os limites do condomínio de luxo. Como estudante cotista que pôde chegar a um curso de Medicina, Mabel será o balizador para a quebra dessa estrutura tão enraizada do racismo sistemático.

Com uma prosa ágil, intensa, fluída e assertiva, a autora nos convida a uma série de reflexões sobre esses contrastes ainda vivos em um País que mal recolhe os cacos de um governo de extrema direita. Olhando com resignação para o passado, Eunice é a força em combustão que ensinará Mabel e não se dobrar para esse sistema. O que fará com que a jovem compreenda a lição e olhe com audácia para o futuro o que, num movimento inverso, também poderá mobilizar a própria mãe. Com perspicácia, Eliana entrelaça as histórias para revolver o imaginário do trabalho doméstico no Brasil, ainda tão apegado ao seu passado escravocrata, fazendo nos lembrar o tempo todo de que há pressa: o amanhã é para ontem. Questões urgentes como a pandemia, o debate sobre ações alternativas e a luta por direitos reprodutivos acentuam o sabor contemporâneo da trama. Como diz a orelha da publicação, Solitária dá provas do quão incontornável se tornou reelaborar não apenas a história, mas as sobrevidas do Brasil colonial. "E ao fazê-lo mostra como é possível enfrentar o desafio moral e ético de abordar essas experiências de vida sem replicar gratuitamente a violência que as sustenta, nem reencarnar um pacto oculto de subalternidade. [...] Um romance de libertação".

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