segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Livro do Mês - Suíte Tóquio (Giovana Madalosso)

Editora Todavia, 2020, 210 páginas.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM ALGUNS SPOILERS]

Uma das partes mais impactantes e, paradoxalmente divertidas, de Suíte Tóquio, livro da paranaense Giovana Madalosso, ocorre já no terço final. Nela, Fernanda, uma das protagonistas, está começando a entrar em desespero por causa do desaparecimento de sua filha Cora. Já foi até a polícia, já percorreu a cidade, tudo meio em vão. A solução encontrada por Cacá, o marido gratiluz de Fernanda? Dispor um baralho de tarô na mesa de centro da bela casa em que residem, pra ver o que dizem as cartas. "O meu oráculo", como ele afirma. Não bastasse o absurdo da sequência em si, Cacá ainda faz questão de retirar a carta com um movimento devagar, supostamente calculado - aquela coisa de terapeuta holístico de ocasião, um tipo de negócio que a classe média adora (e que talvez os ajude, em alguma medida, com seus males). Quando vê um carro na carta, Cacá fica exultante. "O carro indica iniciativa, conquista", comenta o homem para, mais adiante, concluir: "ela certamente não foi a pé, e sim de táxi".

E eu admito a vocês que essa é a só a ponta do iceberg no que diz respeito ao desleixo de Fernanda e Cacá, em relação a criação de Cora. Pais ausentes e narcisistas, parecem muito mais preocupados com suas próprias existências - que incluem hedonismos escapistas e prazeres furtivos, que dão conta do completo vazio existencial que percorre suas almas. Fernanda é uma diretora de conteúdo de um programa de TV e é sondada para um cargo mais alto no canal em que trabalha. Anda pra lá e pra cá em viagens pelo Brasil, prestando contas para a produtora estrangeira a respeito de um documentário que está filmando. Numa dessas andanças, conhece (e se apaixona) por Yara, uma diretora de fotografia daquele tipo descolada, que não parece muito interessada em se prender a alguém. Ainda mais se esse alguém for uma mulher casada, insatisfeita com o seu casamento meia bomba e que, de quebra, ainda tem uma filha. Sobre Cacá, ele é apenas o marido "falso bobo", que a gente nem entende bem que papel que tem nesse mundo.

Tanto é que, quando o livro começa, nem chegamos a nos surpreender com os eventos em si: a obra inicia com Maju, a empregada do casal "sequestrando" Cora. Sim, do susto inicial, afinal de contas o roubo de crianças é um crime grave e uma chaga que assola o País e assombra pais dia e noite, a uma certa compreensão das intenções por trás do seu ato, não demora muito. E aqui, a meu ver, está o mérito inicial de Giovana: ao burlar os limites maniqueístas da equação óbvia entre mocinhos e bandidos, a escritora adiciona complexidade aos seus personagens (e a sua trama). Maju é a mulher de vida humilde que sempre foi uma espécie de segunda mãe para Cora. Aliás, talvez em alguns casos até primeira mãe (como a gente já cansou de ver por aí). Supostamente da "família" foi contratada por Fernanda para um regime quase servil, que envolvia dias seguidos de trabalho e eventuais folgas quinzenais - e nestas tinha direito, tal qual uma prisioneira de fato, a uma visita íntima em seu quartinho (a tal Suíte Tóquio do título).

Com uma prosa fluída, a autora conduz a trama em duas linhas narrativas. Em uma delas, Maju e Cora iniciam a sua jornada de ônibus, numa espécie de road movie improvisado. Que resultará acidentado mais adiante, quando perdem suas malas e a condução, indo parar em um motel decadente, tendo ainda de se virar a pé e em caronas pouco convidativas de caminhoneiros de beira de estrada. Nesta parte, também será possível perceber como Maju teve uma vida sofrida, também do ponto de vista do amor (o que parece estar diretamente relacionado a sua absurda rotina como doméstica, que lhe impedia de ter uma vida pra chamar de sua). Já na outra linha, acompanhamos a pasmaceira do casal central, com suas crises pessoais mesquinhas, suas idas e vindas e a inacreditável demora até constatar o que havia ocorrido com sua própria filha - um descaso que, vá lá, talvez beirasse o criminoso. O que também nos faz pensar sobre os delitos ocorridos no romance. Ao cabo, aqui temos a obra pé na estrada típica, com a vida dos personagens sendo movida por uma eterna busca de qualquer fiapo que seja - de ternura, de amor, de afeto, de sexo ou de redenção. Um projeto imperdível, vertiginoso e excentricamente cômico.


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