Em uma época em que os Estados Unidos mal superavam os efeitos de sua Lei Seca - que baniu nacionalmente a fabricação, o transporte e a venda de bebidas alcoólicas, o que resultou em um aumento desenfreado do comércio ilegal até meados dos anos 30 -, o clássico Farrapo Humano (The Lost Weekend) permanece até hoje como um filme ousado, rico em sua abordagem e repleto de grandes interpretações. E que, não por acaso, se mantém como um dos principais registros cinematográficos a respeito da degradação humana por conta do abuso do álcool. A obra de Billy Wilder - que recém havia feito o elogiadíssimo Pacto de Sangue (1944) - tem a sua ação decorrida em apenas um final de semana. E o que deveriam ser para Don Birnam (Ray Milland) três dias de passeio ao lado do irmão, como forma de celebrar os dias de "limpeza", se torna uma melancólica e dolorosa batalha de um homem contra o seu vício.
Não é por acaso que o filme já começa com uma bela panorâmica que mostra o improvável local em que Birnam esconde uma garrafa de uísque barato, com o objetivo de levá-la para o passeio, sem o conhecimento do irmão. Mesmo a descoberta do estratagema não o impede de sair para a rua para tomar alguns "martelinhos" em um bar próximo a seu apartamento, enquanto aguarda o horário de partida do avião que lhes conduzirá - para completo contragosto do dono do estabelecimento, já alertado a respeito do comportamento errático de Birnam. E o fato de roubar US$ 10 que deveriam servir para o pagamento da senhora responsável pela limpeza, já dá uma ideia de que, em seu caminho rumo ao abismo e ao prazer momentâneo proporcionado pelo álcool, nada lhe impedirá. (e não será surpresa vê-lo, mais adiante, abusando de discursos autocomiserativos, de mentiras e de trucagens diversas que lhe possibilitem conseguir qualquer trocado para seguir enchendo a cara)
Tratando o alcoolismo como aquilo que realmente é - no caso, uma doença - a obra conduz o protagonista a uma situação extrema, em que ele se encontrará em uma espécie de hospital público decadente, repleto de alcoólatras que gritam, esperneiam e dizem ter delírios, visões e outras reações, fruto da abstinência. E se Wilder, ao lado do roteirista Charles Brackett, desenha Nova York como uma cidade poeirenta em que o calor parece ser escaldante - repare no suor absolutamente permanente no rosto nervoso de Birnam - outros detalhes, como a fotografia (de John F. Seitz) levemente turva e mais escurecida nas cenas em que a embriaguez aumenta, também conferem a película um aspecto totalmente evocativo no que diz respeito a visão de mundo de um bêbado. Algo reforçado por sutilezas como as diversas "marcas" arredondadas, formadas pelo fundo umedecido do copo sobre o balcão do bar, capazes de denunciar, mesmo sem mostrar claramente, a quantidade de doses consumidas pelo sujeito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário