sábado, 24 de setembro de 2016

Cine Baú - Farrapo Humano (The Lost Weekend)

De: Billy Wilder. Com Ray Milland, Jane Wyman, Howard da Silva e Philip Terry. Drama, EUA, 1945, 101 minutos.

Em uma época em que os Estados Unidos mal superavam os efeitos de sua Lei Seca - que baniu nacionalmente a fabricação, o transporte e a venda de bebidas alcoólicas, o que resultou em um aumento desenfreado do comércio ilegal até meados dos anos 30 -, o clássico Farrapo Humano (The Lost Weekend) permanece até hoje como um filme ousado, rico em sua abordagem e repleto de grandes interpretações. E que, não por acaso, se mantém como um dos principais registros cinematográficos a respeito da degradação humana por conta do abuso do álcool. A obra de Billy Wilder - que recém havia feito o elogiadíssimo Pacto de Sangue (1944) - tem a sua ação decorrida em apenas um final de semana. E o que deveriam ser para Don Birnam (Ray Milland) três dias de passeio ao lado do irmão, como forma de celebrar os dias de "limpeza", se torna uma melancólica e dolorosa batalha de um homem contra o seu vício.

Não é por acaso que o filme já começa com uma bela panorâmica que mostra o improvável local em que Birnam esconde uma garrafa de uísque barato, com o objetivo de levá-la para o passeio, sem o conhecimento do irmão. Mesmo a descoberta do estratagema não o impede de sair para a rua para tomar alguns "martelinhos" em um bar próximo a seu apartamento, enquanto aguarda o horário de partida do avião que lhes conduzirá - para completo contragosto do dono do estabelecimento, já alertado a respeito do comportamento errático de Birnam. E o fato de roubar US$ 10 que deveriam servir para o pagamento da senhora responsável pela limpeza, já dá uma ideia de que, em seu caminho rumo ao abismo e ao prazer momentâneo proporcionado pelo álcool, nada lhe impedirá. (e não será surpresa vê-lo, mais adiante, abusando de discursos autocomiserativos, de mentiras e de trucagens diversas que lhe possibilitem conseguir qualquer trocado para seguir enchendo a cara)



Não é preciso ser nenhum adivinho para saber que Birnam, a despeito das preocupações de sua namorada Helen (Jane Wyman), perderá o voo. Sozinho em casa, não lhe restará nenhum outro interesse que não seja o de beber - e por mais que o protagonista demonstre alguma boa vontade em relação a seus novos projetos como escritor, um certo bloqueio criativo também funcionará como gatilho para o (literal) mergulho no álcool. Tanto que a busca por um estabelecimento aberto para a penhora de sua máquina de escrever, será um dos momentos mais devastadores dessa película, que não faz nenhuma concessão na hora de mostrar a embriaguez como modo de vida. Isso sem falar em outro momento deste triste tratado sobre o alcoolismo, em que Birnam tenta roubar uma bolsa de uma mulher em um restaurante, sem sucesso, sendo posteriormente humilhado por todos os presentes.

Tratando o alcoolismo como aquilo que realmente é - no caso, uma doença - a obra conduz o protagonista a uma situação extrema, em que ele se encontrará em uma espécie de hospital público decadente, repleto de alcoólatras que gritam, esperneiam e dizem ter delírios, visões e outras reações, fruto da abstinência. E se Wilder, ao lado do roteirista Charles Brackett, desenha Nova York como uma cidade poeirenta em que o calor parece ser escaldante - repare no suor absolutamente permanente no rosto nervoso de Birnam - outros detalhes, como a fotografia (de John F. Seitz) levemente turva e mais escurecida nas cenas em que a embriaguez aumenta, também conferem a película um aspecto totalmente evocativo no que diz respeito a visão de mundo de um bêbado. Algo reforçado por sutilezas como as diversas "marcas" arredondadas, formadas pelo fundo umedecido do copo sobre o balcão do bar, capazes de denunciar, mesmo sem mostrar claramente, a quantidade de doses consumidas pelo sujeito.



Ainda que o Código de Produção de Hollywood tenha imposto um final feliz - de acordo com o livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer -, até hoje, assistir a Farrapo Humano se torna um exercício quase insuportável, conforme nos defrontamos com a derrocada de um homem que parece não ter mais nenhuma motivação para viver (que não seja afundado na bebida). E evitando fazer juízo de valores, o filme, de maneira inteligente, mantém aquelas pessoas que amam Birnam a seu lado, mesmo nos momentos mais extremos. O tema espinhoso - especialmente para a época - não impediu a Academia de conceder a obra o Oscar na principal categoria da noite - distinção dada também a Wilder (diretor), Miland (ator) e Brackett e Wilder (roteiro). O reconhecimento a Wilder, por sua vez, pavimentou o caminho para que, mais tarde, ele entregasse outras obras-primas, como Crepúsculo dos Deuses (1950), A Montanha dos Sete Abutres (1951), Quanto Mais Quente Melhor (1959) e Se Meu Apartamento Falasse (1960), em uma das filmografias mais versáteis da história do cinema.

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