quarta-feira, 5 de julho de 2023

Livro do Mês - Salvar o Fogo (Itamar Vieira Júnior)

A cada novo livro de Itamar Vieira Júnior uma ideia parece cada vez mais consolidada: a de que seus trabalhos buscam dar voz às minorias, aos vulneráveis sociais, aos marginalizados. Aqui não temos mulheres de classe média em seus dilemas suburbanos ou homens de meia idade em crise existencial - um tipo de literatura que alcançaria talvez sem muita dificuldade uma boa comunidade de leitores. Ao contrário, agindo quase como um Guimarães Rosa da nova geração - guardadas todas as proporções, naturalmente -, o autor baiano aposta no microcosmo que parte de narrativas familiares para uma análise do todo. O texto aqui é o do chão batido, da natureza em simbiose com o homem, dos conflitos territoriais, das instituições poderosas - seja o Estado ou a Igreja - que tentam silenciar o gritos dos excluídos. Das tradições, do folclore, da religião. Da luta. Da política. Do corpo. Foi assim com o elogiadíssimo Torto Arado - nosso livro favorito de 2020. É assim com o recém chegado Salvar o Fogo.

Publicado pela Todavia, Salvar o Fogo é mais uma daquelas tramas de Brasil profundo. Que abraça com carinho a odisseia diária daqueles que não se sentem representados - ainda que isso signifique expor as suas vísceras. O seu íntimo. Em entrevistas de divulgação, o escritor lembrou que os invisibilizados, ao cabo, estão no entorno, no cotidiano. "E estão ’em silêncio’ o tempo todo, nos lugares onde a gente transita. Quem está dirigindo os ônibus? Quem está fazendo aquele trabalho cotidiano de limpeza, muitas vezes, de forma quase mecânica? As pessoas passam por elas e nem as cumprimentam", comentou, salientando ainda que todo mundo tem bagagem, tem história. Em muitos casos ricas histórias. "Se a gente observar as suas vidas, vai descobrir um mundo interior rico, imenso", afirmou ao site Culturadoria. Romper o muro do silêncio e fazer reverberar vozes. Esse parece ser o foco da sua literatura sinuosa, poética, envolvente.



A narrativa caleidoscópica, de idas e vindas e de voltas ao passado - que parecem sempre assombrar o presente - conta com quatro capítulos, com os três primeiros destacando os irmãos Moisés, Luzia e Mariinha, com o último aglutinando todos os pontos a partir de um trágico evento: a morte de seu Mundinho, o patriarca. Numerosa, a família conta com outros irmãos - Joaquim, Zazau, Raimundo. Todos eles já saíram da localidade conhecida como Tapera, pra tentar a vida fora. Invariavelmente todos passam por dificuldades. Não é diferente por exemplo com Luzia, que é motivo de chacota na comunidade por possuir uma corcunda - uma deficiência que é tida como maldita pelos habitantes do local. Sua tragédia se completa quando ela é estuprada e tem um filho que é resultado desse ato de violência. Esse menino irá parar na Igreja, como uma espécie de coroinha - sua mãe é lavadeira no local. 

Tudo vai mais ou menos aos trancos e barrancos dentro desse cenário, até o jovem presenciar um caso de pedofilia envolvendo o abade do mosteiro. O que faz com que ele simplesmente fuja dali e passe também a tentar a vida na cidade.  Ao cabo, trata-se de uma literatura que se vale do mundano ainda que tenha suas complexidades. E que vai se revelando sem pressa para o leitor. A presença de outros personagens, de figuras relevantes - sejam elas vizinhas, uma bisavó, professores, prostitutas e até cobradores de impostos - ajudarão a compreender ou mesmo verbalizar angústias, anseios, sofrimentos, sonhos. A vida é dura, é árdua, mas todos ali parecem estar em busca de algo. De uma vida melhor. De um futuro. De um romance. De trabalho. De terra pra plantar. O fogo se espalha e funciona como metáfora para uma existência que queima - e não é à toa que ele é o catalisador de tragédias. Mas também esse fogaréu parece ecoar a libertação. A reimaginação. De gestos e gritos sufocados. É um livro imperdível.

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