Publicado pela Todavia, Salvar o Fogo é mais uma daquelas tramas de Brasil profundo. Que abraça com carinho a odisseia diária daqueles que não se sentem representados - ainda que isso signifique expor as suas vísceras. O seu íntimo. Em entrevistas de divulgação, o escritor lembrou que os invisibilizados, ao cabo, estão no entorno, no cotidiano. "E estão ’em silêncio’ o tempo todo, nos lugares onde a gente transita. Quem está dirigindo os ônibus? Quem está fazendo aquele trabalho cotidiano de limpeza, muitas vezes, de forma quase mecânica? As pessoas passam por elas e nem as cumprimentam", comentou, salientando ainda que todo mundo tem bagagem, tem história. Em muitos casos ricas histórias. "Se a gente observar as suas vidas, vai descobrir um mundo interior rico, imenso", afirmou ao site Culturadoria. Romper o muro do silêncio e fazer reverberar vozes. Esse parece ser o foco da sua literatura sinuosa, poética, envolvente.
A narrativa caleidoscópica, de idas e vindas e de voltas ao passado - que parecem sempre assombrar o presente - conta com quatro capítulos, com os três primeiros destacando os irmãos Moisés, Luzia e Mariinha, com o último aglutinando todos os pontos a partir de um trágico evento: a morte de seu Mundinho, o patriarca. Numerosa, a família conta com outros irmãos - Joaquim, Zazau, Raimundo. Todos eles já saíram da localidade conhecida como Tapera, pra tentar a vida fora. Invariavelmente todos passam por dificuldades. Não é diferente por exemplo com Luzia, que é motivo de chacota na comunidade por possuir uma corcunda - uma deficiência que é tida como maldita pelos habitantes do local. Sua tragédia se completa quando ela é estuprada e tem um filho que é resultado desse ato de violência. Esse menino irá parar na Igreja, como uma espécie de coroinha - sua mãe é lavadeira no local.
Tudo vai mais ou menos aos trancos e barrancos dentro desse cenário, até o jovem presenciar um caso de pedofilia envolvendo o abade do mosteiro. O que faz com que ele simplesmente fuja dali e passe também a tentar a vida na cidade. Ao cabo, trata-se de uma literatura que se vale do mundano ainda que tenha suas complexidades. E que vai se revelando sem pressa para o leitor. A presença de outros personagens, de figuras relevantes - sejam elas vizinhas, uma bisavó, professores, prostitutas e até cobradores de impostos - ajudarão a compreender ou mesmo verbalizar angústias, anseios, sofrimentos, sonhos. A vida é dura, é árdua, mas todos ali parecem estar em busca de algo. De uma vida melhor. De um futuro. De um romance. De trabalho. De terra pra plantar. O fogo se espalha e funciona como metáfora para uma existência que queima - e não é à toa que ele é o catalisador de tragédias. Mas também esse fogaréu parece ecoar a libertação. A reimaginação. De gestos e gritos sufocados. É um livro imperdível.
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