sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Lado B Classe A - Mercury Rev (Desester's Songs)

Em uma análise mais "fria" do ponto de vista musical, o ano de 1998 pode ser considerado um tanto quanto curioso. Enquanto Celine Dion e Mariah Carey exauriam o mundo com as chatíssimas My Heart Will Go On e My All - que não paravam de tocar nas rádios - coletivos bacanas como o Mercury Rev se ocupavam de lançar as suas obras-primas. A banda capitaneada pelo faz tudo Jonathan Donahue andava meio sumida quando lançou o clássico Deserter's Songs. Até aquele momento eram apenas três discretos discos - Yerself Is Steam (1991), Boces (1993) e See You On the Other Side (1995) - em que se sobressaia uma espécie de rock alternativo levemente rural, que emulava Neil Young em uma viagem de ácido, e que pouco empolgava (ainda que canções como Chasing A Bee sejam até hoje lembradas com carinho pela maioria dos fãs). Aliás, havia uma certa depressão que quase fez a banda terminar, após uma turnê em 1995.

Tudo mudou com Deserter's, até hoje tido como um dos melhores álbuns daquele final de milênio - que via as boy bands ocuparem as paradas e o nu metal surgir como uma novidade plastificada. O clima onírico, de um certo misticismo, aliado ao o instrumental expansivo que promovia um cruzamento absolutamente saboroso de psicodelia com grandiloquência épica, transformava a audição do registro em um mergulho transcendental, sinistro, divertidamente macabro, como se estivéssemos em meio a algum filme do Tim Burton com trilha sonora do Beach Boys (como definiu na época a Revista Q). A sensação era de devaneio palpável - condição reforçada pela voz enfumaçada e de soprano de Donahue - como se estivéssemos pisando em terreno desconhecido, lúgubre, mas que, aqui e ali, em cada curva imprevista, em cada efeito ou camada surpreendente, desse espaço ao lúdico ou jocoso. O vocalista havia escutado antigos discos infantis. Coletâneas de contos de fadas que, agora, recebiam a sua versão particular.



A abertura com a pastosa Holes, é daquelas capaz de nos fazer imergir na madrugada de surpresas por aquilo que não conhecemos. Há uma riqueza orquestral por trás - que vai para além da guitarra, do baixo e da bateria - e que alcança em instrumentos como clavinete, flauta, órgão, trombone, piano e teclado a complexidade necessária para transformar cada instante em um episódio dessa espécie de conto de fadas obscuro que é o álbum. Aliás, em meio a tantos convidados especiais - no total são quase quinze participantes creditados no registro - há até um tocador de serrote com arco (Joel Eckhouse), no meio. Holes, dug by little moles / Angry jealous spies / Got telephones for eyes / Come t' you as / Friends (Buracos, cavados por pequenas toupeiras / Espiões raivosos e ciumentos / Que tem telefones como olhos / Que vem até você como / Amigos), canta Donahue na viagem literal que recém começa.

O disco segue o seu desfile com outras grandes canções, como Tonite It Shows, Hudson Line e Goddes On A Hiway, cada uma delas levando o percurso para algum lado diferente, como se fosse possível o cérebro fazer saltos deste para aquele ponto em um registro heterogêneo mas ao mesmo tempo bagunçado, capaz de ir no limite da música alternativa e do comercial. Se Endlessly desacelera um tanto com um clima levemente insolente, obras primas de arranjos saborosamente enérgicos e de refrões grudentos como Opus 40 levam o registro para um outro patamar. Não fosse o Deserter's Songs e bandas como Arcade Fire, MGMT, Dirty Projectors e outras tantas que misturam épico e rock psicodélico talvez nem existissem. Aliás, os próprios comandados por Donahue nunca mais conseguiram alcançar o efeito atingido esse disco - eleito melhor do ano pelo semanário NME naquele ano de 1998 -, anda que All Is Dream (2001) também tenha o seu valor.

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