Assim como ocorre com as listas de discos, a dos filmes também não costuma ser muito fácil elaborar. Especialmente porque, nos dias de hoje, as formas de consumo e mesmo a disponibilidade de certas obras, parece obedecer mais ainda uma lógica mercadológica. Sim, porque se na era do DVD precisávamos torcer para que a nossa locadora de estimação comprasse essa ou aquela produção, hoje em dia ficamos reféns das plataformas de streaming - e da sua boa vontade em investir em filmes que, vá lá, talvez não deem tanto retorno. Quando o assunto é o cinema, a coisa é ainda pior: primeiro há o atraso da chegada, especialmente de obras que trafegam no circuito alternativo - sejam elas nacionais ou estrangeiras. Nesse sentido não são poucos os filmes produzidos, por exemplo que são exibidos em festivais, mas que chegam ao grande público dois, às vezes três anos depois - um dos casos gritantes, nesse sentido, é o do nacional O Homem Cordial, que foi concluído em 2019, mas que só deu as caras nesse ano.
Depois há a disputa por salas - especialmente em um contexto de audiência infantilizada, que aguarda ansiosamente o mais novo filme da Marvel, com suas máquinas de propaganda poderosas, que renderão milhões aos cofres dos produtores, com a venda de bonequinhos, lanches do McDonalds temáticos e outros badulaques. Todo esse contexto complexo dá conta da dificuldade de organizar uma lista como essa, porque a gente quase se perde na lógica temporal. Lá pelas tantas eu posso estar conferindo um filme lançado na Mubi, ao mesmo tempo em que me questiono: "esse é o lançamento dessa obra?". Ou ela já circulou antes? Esteve em cartaz? Ou foi direto pro streaming? E todo esse preâmbulo serve pra dizer que a nossa lista com 30 Grandes Filmes é um recorte daquilo que de mais recente chegou às telonas ou ao streaming, na tentativa de ser o mais plural e o mais atual possível. Salientando também que este é um pequeno recorte daquilo que tivemos acesso, já que muitas obras que já estão sendo faladas, ainda não deram as caras por aqui - como é o caso do incensado Vidas Passadas, por exemplo, que deve figurar provavelmente na lista do ano que vem. Boa leitura!
30) Triângulo da Tristeza (Triangle of Sadness): Em uma das primeiras sequências dessa obra do sempre ótimo Ruben Östlund, o jovem e lindo casal formado pela influencer Yaya e pelo aspirante a modelo Carl discute longamente sobre quem deve pagar a conta de um jantar em um restaurante chique em que estão. Ela, pelo visto, ganha mais do que ele e ele culpa o "feminismo de merda" como uma mera muleta inútil no que diz respeito a essas questões mais práticas do dia a dia. "Se os direitos são iguais, as contas não deveriam ser divididas por igual?" é o que parece haver em seu cérebro ruminante. A cena segue, vai pro táxi onde o debate continua, em meio ao barulho incômodo de um limpador de para-brisas velho - que serve para ampliar o caráter caótico (e até absurdo) daquela conversa. Era pra ser uma noite feliz, que não fosse pautada apenas por dinheiro. Não é o que acontece. Assim, bastam alguns minutos do filme para que percebamos que Östlund aponta sua câmera, novamente, para a natureza mesquinha das classes mais abastadas, para a hipocrisia desses estratos sociais e para o abuso de poder que decorre desse cenário. O resultado é uma obra sórdida, mas bem humorada, que não tem vergonha de colocar o dedo na ferida em relação a temas, como, falhas do capitalismo, inutilidade do debate político e podridão humana. Leia a resenha completa.
29) Ela Disse (She Said): "Por quê você tocou os meus seios ontem? Por que eu estou acostumado." Em uma das sequências mais repugnantes desse elogiado drama ficamos chocados com a naturalidade com que Harvey Weinstein assediava suas vítimas. Na gravação vazada pela modelo Ambra Gutierrez transparece toda a angústia de quem, nos jogos de poder dos bastidores de Hollywood, era a ponta mais fraca no que dizia respeito aos casos de violência sexual. Que em 05 de outubro de 2017 viriam à tona no que seria um dos maiores escândalos da história do cinema, encorajando movimentos como o #metoo e Time's Up. Denunciar abusadores, ao cabo, não é tarefa fácil. E é por isso que, ao trazer à tona esse assunto, é preciso valorizar a ousadia não apenas esse filme, mas também quem se debruçou sobre o tema para fazer jornalismo de verdade - caso da dupla de jornalistas Jodi Kantor e Megan Twohey, do The New York Times. Confrontar poderosos dá trabalho. E exige bravura. Ainda mais quando o que está em jogo é o objetivo de interromper um ciclo quase infinito de violência. De alguma maneira é uma obra dolorida mas inspiradora - assim como são outras experiências viscerais de jornalismo, que fazem emergir escândalos. Leia a resenha completa.
28) Broker: Uma Nova Chance (브로커): Quem acompanha a carreira do diretor Hirokazu Koreeda sabe que, no cerne de muitas de suas obras, costuma estar a completa desconstrução do conceito de família. Na trama de Broker, uma jovem se aproxima de uma Igreja para deixar useu próprio filho bebê em uma espécie de caixa (um abandono institucionalizado). Junto ao pequeno, apenas um bilhete com a promessa de que ela voltará. Ela volta. Já no dia seguinte, quando ela descobre que o bebê já está em posse de uma dupla de trambiqueiros - um trabalha em uma lavanderia o outro opera um esquema de tráfico de recém nascidos (ambos voluntários da paróquia local). Nesse meio tempo So-young chama a polícia, que passa a investigar o caso nos bastidores. E como se já não bastasse toda a complexidade do caso, a jovem protagonista, sem ter muito pra onde ir, resolve se juntar à dupla na missão de tentar encontrar pais adequados e que estejam dispostos à adotar seu próprio filho. E por mais que no centro da narrativa esteja a ocorrência de um grave crime, o que Koreeda faz, com sua habitual habilidade, é subverter a ordem quando a ideia é apontar mocinhos e bandidos. A trama é intrincada e requer uma boa dose de suspensão da descrença. Mas o resultado compensa. Leia a resenha completa.
27) Verdades Dolorosas (You Hurt My Feelings): Existe uma cena central nesse filme da diretora Nicole Holofcener que, em alguma medida, fornece um resumo do tipo de dilema que move a narrativa. Nela, a escritora Beth resolve fazer uma surpresa ao marido e ao cunhado em meio a uma tarde de amenidades, em que ela está acompanhada da irmã Sarah. Quando chegam em uma loja meio às escondidas, escutam, por acidente, uma conversa entre Don e Mark - justamente o instante em que Don, o marido de Beth, revela a Mark, que é seu cunhado que, bom, talvez ele não tenha gostado tanto assim do novo livro da esposa que, na realidade é apenas um manuscrito que, mais adiante, talvez se torne o seu primeiro romance. Para Beth, que tem no ofício da escrita algo fundamental em sua vida, não poderia haver maior afronta. Com tudo piorando quando Beth escuta algumas duras verdades de uma editora com quem ela está em contato. Será ela uma farsa? Sim, parece um fiapo de história - um "filme sobre o nada", como brincaram alguns críticos estrangeiros, em uma alusão à antiga série estrelada por Julia Louis-Dreyfuss. Mas ao mesmo tempo é uma obra que faz interessantes divagações sobre temas como incertezas profissionais, autossabotagem, crises de meia idade e até esgotamento e desencanto nos tempos modernos. Não é pouco. Leia a resenha completa.
26) O Conde (El Conde): Um filme simples mas, ao mesmo tempo, muito eficiente no retrato dos representantes da extrema direita como essas figuras putrefatas, que insistem em se perpetuar através dos séculos. Mais ou menos assim podemos encarar a experiência com esse ótimo filme do sempre audacioso Pablo Larraín, que converte o general Augusto Pinochet em um vampiro que se arrasta pelos cômodos de seu palácio decadente, como um espectro que é incapaz de, simplesmente, morrer. Algo que, aliás, expressa à perfeição a alegoria do fascismo como uma cadela sempre pronta a entrar no cio, como dizia Bertolt Brecht. Com esse sentimento sendo ampliado justamente pela impunidade, mesmo diante de um sem fim de atrocidades, repressões, torturas, violações dos direitos humanos e assassinatos. Só que, por mais incrível que possa parecer, num mundo que elege Donald Trump e Jair Bolsonaro, e mais recentemente o ultradireitista Javier Milei, na Argentina, esses ideais radicalmente conservadores, intolerantes, excludentes e extremistas, permanecem vivos. Em meio a temores abstratos relacionados a comunismo, Guerra Fria tardia, marxismo cultural e outras variedades de delírios, Larraín constroi uma alegoria sombria mas debochada sobre a natureza recorrente dos sistemas totalitários. De rir de nervoso. Leia a resenha completa.
25) Rimini: Se tem um tipo de cinema que me fascina é aquele que adiciona camadas por baixo de uma superfície que parece ser rasa. Em muitos casos o resultado costuma ser um filme que parte de um microcosmo para, aqui e ali, ir nos fornecendo algumas pistas de que há algo maior do que sugere a eventual simplicidade narrativa. E talvez esse seja o caso desse sugestivo drama agridoce, sobre um cantor decadente que sobrevive de apresentações para idosos saudosistas, que é surpreendido pelo ressurgimento de sua filha, anos depois de tê-la abandonado. Só que este é um projeto alemão, dirigido por Ulrich Seidl. O que significa que esse cenário que abarca as tragédias familiares, talvez seja apenas uma boa desculpa para uma análise mais elaborada da própria Alemanha, com suas feridas históricas que, em tempos de ascensão da extrema direita, ainda alcançam a contemporaneidade. Uma memória que, ao cabo, não se apaga tão facilmente. Porque, por mais que o protagonista seja uma figura excêntrica e carismática há que se admitir o fato de ele funcionar como uma espécie de ponte alegórica entre o arcaico e o contemporâneo, entre o antiquado e o moderno. Somos pessoas complexas e esse filme cheio de graça, de poesia e de comentários sociais potentes, amarra todas essas questões a contento. Leia a resenha completa.
24) Os Banshees de Inisherin (The Banshees of Inisherin): Vamos combinar que, ainda nos dias de hoje, a gente tende a romantizar as relações de amizade. Como se, uma vez estabelecido esse tipo de vínculo, ele teria de durar a vida toda. Dá pra dizer adeus a um amigo de longa data? Sem remorsos, sem dores, sem rancores? Pois o que o diretor Martin McDonagh pareceu pretender nesse oscarizado projeto foi teorizar um pouco a respeito disso. E se num certo dia o seu melhor amigo acordasse e, ao encontrar você, naquele bar de sempre, dissesse um "deu, não quero mais, daqui pra frente é cada um pro seu canto". É isso que Colm faz com Pádraic em um dia nebuloso qualquer, em uma ilha no costa da Irlanda, em meio à Guerra Civil local. Como sempre faz em sua rotina, Pádraic acorda cedo, faz o manejo dos animais e vai até a casa de Colm para convidá-lo para a taverna do pequeno vilarejo - o que fazem juntos a sabe-se lá quantos anos, religiosamente. Só que Colm cansou dessa rotina. Dessa vidinha vazia. E comunica isso à Pádraic com uma sinceridade excruciante. A partir daí e com esse fiapo de história, temos uma narrativa que se aproveita dessa rotina ordinária de seus personagens para tecer uma teia cheia de simbolismos sobre duas personalidades diametralmente opostas que colidem. Uma preciosidade. Leia a resenha completa.
23) Tenho Sonhos Elétricos (Tengo Sueños Electricos): "Tenho sonhos elétricos. Onde meu pai, quando não pode consertar algo, arrebenta-o no chão. Ele fica bravo, grita, xinga. Nos amamos aos gritos, às vezes com golpes. É isso que somos. Uma horda de animais selvagens sonhando com seres humanos. Às vezes é preciso várias vidas pra entender que a raiva que nos atravessa não nos pertence". É quase no final desse filme costarriquenho premiado no último Festival de Locarno, que Martín lê um poema improvisado que, de alguma maneira, resume a sua relação turbulenta com a própria filha, Eva. Ambos parecem estar sempre aos trancos e barrancos, no limite entre o amor e o ódio, entre o carinho amoroso e o conflito cheio de agressividade. É a complexidade do ser humano que parece estar no centro da estreia da diretora Valentina Maurel. Somos imperfeitos, afinal, e que atire a primeira pedra quem nunca exagerou na dose quando o assunto são as relações familiares. E, em alguma medida, esse é um projeto pequeno, que parte de um microcosmo, para uma análise mais ampla desse tipo de vínculo. O resultado é uma obra intimista e naturalista, angustiante mas afetuosa. Um tipo de cinema que não nos deixa alheios. E que reforça a potência da produção latino-americana. Leia a resenha completa.
22) Os Cinco Diabos (Les Cinq Diables): Vicky é uma menininha de oito anos com uma habilidade especial: por meio de cheiros, de aromas, ela consegue viajar no tempo. E assim vivenciar experiências do passado de uma forma meio mágica. Quase mística. E, não bastasse esse dom, ela tem um comportamento de verdadeira devoção quando o assunto é a sua mãe Joanne (Adèle Exarchopoulos), uma instrutora de natação. A premissa desse filme, não dá pra negar, é curiosa. E te captura de uma forma quase instantânea. Na trama, mãe e filha residem em uma pequena cidade montanhosa que está ao redor de um enorme lago gelado (o Les Cinq Diables do título original). E é nele que Joanne, acompanhada da filha, tem o hábito de nadar. Para conter os efeitos do frio na pele, a professora utiliza um produto - uma espécie de creme selante. Que é espalhado no corpo da mãe pela filha. A sobra dessa pasta, Vicky coloca dentro de um vidro (uma etiqueta indica que aquele é o frasco com os cheiros da mãe). Após mais algumas alquimias, que envolvem outras misturas, a pequena inala o conteúdo do pote. E desmaia. Sendo justamente esse o instante em que ela consegue viajar para o passado. E será em meio a esses sonhos bastante realistas, que Vicky descobrirá como uma tragédia abalaria a vida de sua família. Impactante. Leia a resenha completa.
21) O Cafetã Azul (Le Bleu du Caftan): Em uma das mais belas cenas desse filme marroquino, o casal Mina e Halim está em uma conversa bastante íntima, reveladora daquilo que pode ter sido um importante recorte de suas vidas. Aos prantos, Halim afirma ter tido muito medo de desonrar a esposa, por não ter conseguido superar aquilo que, aparentemente, ele acredita ser uma espécie de "mal". Naquela altura, o espectador já tem ciência da homossexualidade mantida em segredo pelo homem - como revelam os encontros às escondidas em saunas locais. E que se estendem para a forma afetuosa com que ele lida com o seu jovem funcionário, o dedicado Youssef. A resposta de Mina diante da manifestação do marido? O acolhimento. "Eu não poderia ter tido mais orgulho de ter sido sua esposa", retruca, de forma enternecedora. Um direcionamento diferente do previsto. E que eleva a obra a um outro patamar. Como se fosse uma alegoria para os próprios cafetãs - que são túnicas lindamente ornamentadas, com costuras complexas e que costumam ser utilizadas por muçulmanos e judeus -, a obra da diretora Maryam Touzani é pura sutileza e suavidade na abordagem de seu tema. O que dá uma dimensão da potência do projeto, que arrancou aplausos em sua exibição no Festival de Cannes. Leia a resenha completa.
20) Still: A História de Michael J. Fox (Still: A Michael J. Fox Movie): Existe uma cena desse valioso documentário que dá uma dimensão da forma como o astro da trilogia De Volta Para o Futuro encara, atualmente, o fato de conviver com a Doença de Parkinson. Nela, é resgatada - de forma muito breve - a participação do ator na série Curb Your Enthusiasm, em 2011. É um instante pequeno em que Fox interpreta a si próprio, entregando uma lata de refrigerante a Larry David (na trama do episódio eles são vizinhos). Quando este tenta abri-la ela simplesmente explode na sua cara - e a sua reação indignada é absolutamente hilária. E nem é necessária uma explicação sobre como os movimentos espasmódicos incontroláveis, que são típicos de quem sofre da doença, devem ter agitado a lata. É claro que até ser capaz de brincar com sua própria condição, o astro que foi um dos mais incensados dos anos 80, viveu um período de profunda dor e, naturalmente, até de negação a respeito do Parkinson. E toda essa trajetória de ascensão como estrela mirim até a impossibilidade de exercer a profissão que ama, formam a matéria-prima do filme dirigido por Davis Guggenheim - uma experiência que nunca minimiza os efeitos devastadores do Parkinson, mas, ao mesmo tempo enche a tela de ternura, de afeto, de bom humor e até de esperança. Leia a resenha completa.
19) Passagens (Passages): Quem acompanha a carreira do diretor Ira Sachs sabe que muitos de seus filmes têm como principal matéria-prima a complexidade das relações humanas - e não é diferente com esse. Aqui, a trama versa sobre as nossas incertezas na seara amorosa e sobre como parecemos ser seres eternamente insatisfeitos. Ou que nunca sabem bem o que querem - o que invariavelmente resultará em sofrimento, em irresponsabilidade afetiva e em escolhas nem sempre acertadas. Com aquele senso de urgência metropolitana típico do cinema alternativo, o filme já abre de forma metalinguística: Tomas (o sempre ótimo Franz Rogowski) está concluindo seu mais novo projeto e, em uma festa, conhece a jovem professora de séries iniciais Agathe (Adèle Exarchopoulos, que sempre é uma presença luminosa em tela). Após uma noite de diversão, os dois acabam transando. Só que tem um detalhe: Tomás é casado com o professor de inglês Martin (Ben Whishaw) há quinze anos e, quando chega em casa ao amanhecer não apenas revela o que ocorrera na noite passado, como ainda garante ter sentido algo que não sentia há muitos anos. A partir daí o que vemos é uma série de idas e vindas, de dúvidas e de incertezas, em um caleidoscópio cheio de intensidade, que expande e comprime um dos temas mais universais do cinema. Vale cada segundo. Leia a resenha completa.
18) Crescendo Juntas (Are You There God? It's Me Margaret): Uma das produções mais carismáticas, cativantes e divertidas da temporada. Assim pode ser resumida a experiência com esse filme de Kelly Fremon Craig. Aliás, essa é a prova viva de que não é preciso muita invencionice na hora de fazer uma obra sobre amadurecimento. Sobre as dores e incertezas que surgem na pré-adolescência. É tudo muito gracioso, singelo, realista - o que também envolve as interpretações de todo o elenco, especialmente da jovem Abby Ryder Fortson. É ela que é a Margaret, do título original. Que, sim, do alto de seus onze anos, evocará Deus de uma maneira meio torta, sempre que tiver alguma dúvida, medo ou anseio. Aliás, a sua primeira angústia real ocorre quando, ao retornar de um passeio de escola, seus pais anunciam que se mudarão de Nova York para Nova Jersey. E quem já teve de se mudar na infância sabe o quão doloroso isso pode ser. Novos amigos, novos colegas de aula, nova vizinhança. Nova casa. Novo tudo, na real - e caberá à nossa simpática protagonista lidar com tudo isso. A gente vê por aí tantas comédias simplesmente forçando a barra na hora de tentarem (em vão) ser engraçadas. Essa aqui consegue naturalmente. Sendo apenas nostálgica e agridoce. Imperdível. Leia a resenha completa.
17) Doente de Mim Mesma (Syk Pike): Uma metáfora perfeita para o transtorno da personalidade narcisista - que parece estar bem em alta, especialmente nas redes sociais. Assim podemos resumir a experiência desse filme norueguês, que leva até o limite a ideia de fama e de vaidade a qualquer preço. Misturando a sátira do comportamento mesquinho das classes abastadas de Ruben Ostlund com o body horror de David Cronenberg, a obra nos apresenta ao casal Signe e Thomas - ela funcionária de um bar de Oslo, ele um artista plástico especializado em produzir esculturas feitas com móveis materiais roubados. Só que o problema é que Signe está com ciúmes da atenção que Thomas tem recebido. E a oportunidade de atrair algum "holofote" pra si surge quando uma mulher é atacada por um cachorro, sendo a protagonista a primeira a socorrê-la. Com sua roupa manchada de sangue, a jovem vaga pela cidade, enquanto relata aos amigos a história do salvamento épico - uma narrativa que vai ganhando tintas a cada dia mais exageradas. Em tempos em que influencers fazem de tudo para chamar a atenção pensar em uma alegoria do tipo nem parece ser um exagero. Vale tudo pela fama? Aqui, o que percebemos é que o comportamento perturbado de Signe pode ser ao mesmo tempo repugnante e patético em sua busca desenfreada por migalhas em formato de cliques. Leia a resenha completa.
16) Oppenheimer: Talvez o maior filme do ano. Gigantesco. Contado em três linhas narrativas distintas, que talvez exijam um grau de atenção um pouco maior, para que nenhum detalhe escape. Sim, são três horas que talvez virem seis, pela necessidade de repetir a experiência para uma maior apreciação. A complexidade é um mérito? Não sei. Alguns críticos gastam tempo falando do quão problemático é o caráter excessivamente expositivo das obras de Christopher Nolan. Afinal, não basta apenas apresentar as imagens - sempre exageradas, hiperbólicas. É preciso martelar aquilo que se vê, com um texto. Uma explicação a mais. Um diálogo que reforça. Mas é um filme sobre mecânica quântica! Que volta no tempo para contar os bastidores de um dos mais controversos projetos científicos da história quando, em meio a Segunda Guerra Mundial, um grupo de cientistas conduziria o desenvolvimento das primeiras armas nucleares de destruição em massa. Claro que em meio a discussões éticas e de fundo moral, o caráter questionável do protagonista quase se dilui em meio ao pano de fundo político. Com todas as suas contradições, traições e reviravoltas. Ao cabo, aqui, temos uma obra exuberante também tecnicamente - e que deverá lavar a baia no Oscar. Leia a resenha completa.
15) Alcarràs: Agricultura familiar x agronegócio. Êxodo rural x sucessão. Tradição x modernidade. São muitos os antagonismos que surgem, sutilmente, no filme de Carla Simón, que foi o enviado da Espanha para a mais recente edição do Oscar. Ao cabo esta é daquelas obras em que até parece que não tem muita coisa acontecendo, mas que ganha força justamente por apresentar as complexidades da vida no campo de forma extremamente orgânica, naturalista. Aliás, poucas vezes assisti a um filme sobre as dificuldades (e burocracias) que envolvem a rotina de uma família de produtores - no caso, os Solé - que fosse tão realista. Na trama, a rotina idílica da colheita de pêssegos é quebrada por um problema na documentação das terras que a família arrenda. Sem a formalização eles perdem qualquer possibilidade de barganha quando o filho do dono anuncia o desejo de retomar o terreno (após a morte do pai) para a instalação de uma usina de energia fotovoltaica (com dezenas de placas solares). Contemplativa, vibrante, ensolarada e autêntica, mas que utiliza seu microcosmo para uma análise mais ampla da sociedade, a obra funciona mais ou menos como os painéis solares que geram tanta discórdia - reservam energia, resgatando-a de onde nem parece haver. Um achado. Leia a resenha completa.
14) Contratempos (À Plein Temps): Em uma das cenas centrais desse filme francês, a protagonista Julie está em uma importante entrevista de emprego. Durante a conversa, a recrutadora estranha o fato de ela morar em um bairro afastado do centro de Paris e, mesmo sendo mãe de duas crianças, estar pleiteando um emprego ali. "Você poderia passar longos dias por semanas por aqui, mesmo morando tão longe?" questiona a funcionária do RH. Julie nem titubeia em afirmar que isso não lhe preocupa. Que está focada na realização de seus projetos a longo prazo. Julie tenta não demonstrar, mas no momento da entrevista ela está devastada por dentro. Está em um trabalho que lhe consome física e psicologicamente - não bastassem as horas e horas dentro de ônibus e trens, ainda precisa lidar com o assédio moral constante de sua chefe e com os caprichos excêntricos dos hóspedes do hotel de luxo em que atua. Depois, há a angústia de, como mãe solo, ter de articular de forma permanente a estada de seus filhos em babás improvisadas. Julie está sempre correndo. Correndo literalmente. Sem dinheiro, sem ânimo, sem forças, sem vida. Ao cabo, esse é um filme pequeno mas de grande força sobre como o capitalismo pode destroçar a cabeça do cidadão comum. Dia após dia, indefinidamente. Dolorido é pouco. Leia a resenha completa.
13) Tár: Em uma das tantas ótimas sequências do premiado filme de Todd Field, a maestrina Lydia Tár (papel de Cate Blanchett) discute longamente com um dos seus alunos no conservatório Julliard, sobre a possibilidade de reger uma obra de Johann Sebastian Bach. De forma meio envergonhada, tímida, o jovem se enche de coragem para dizer à Lydia que não possui nenhum interesse em Bach. "Honestamente como uma pessoa de cor, não binária, eu diria que a vida misógina de Bach torna meio impossível para mim levar sua música a sério". Lydia na sequência debocha do assunto lembrando que, sim, Bach deixou 20 filhos para o mundo. Assim como um volume considerável de composições. O que a faz questionar em seguida o que as suas prodigiosas habilidades no leito conjugal teriam a ver com sua arte. É possível separar a obra do artista? Pode até soar como tema menor dentro de uma obra tão cheia de floreios, de magnitude e de volúpia como é o caso dessa, mas a atual cultura do cancelamento e as decorrentes campanhas de ódio que se instalam nas redes sociais com o intuito de destruir reputações, parece estar no cerne desse ambicioso projeto. Ao cabo, essa é uma obra que discute a complexidade humana, suas incongruências e virtudes. O que não é pouco. Leia a resenha completa.
12) Afire (Roter Himmel): Alguém brincou no Letterboxd que esse filme poderia muito bem se chamar "Retrato de Um Incel em Chamas", dado o comportamento ressentido do escritor Leon - personagem central desse filme de Christian Petzold, premiado pelo Júri no Festival de Berlim. Na trama, Leon vai com seu amigo Félix até uma casa de praia junto ao Mar Báltico. A ideia do primeiro é concluir seu segundo romance, enquanto o segundo busca inspiração para construir um portfólio fotográfico. Só que no local se deparam com a inesperada presença de Nadja, uma jovem carismática, de sorriso irresistível que perturbará a rotina de Leon. Pouco habilidoso socialmente, o jovem se incomodará com absolutamente tudo que não lhe diga respeito: idas à praia, transas alheias, ou qualquer atividade cotidiana. Com tudo piorando com a presença do salva-vidas Félix. Utilizando o fogo - simbolizado pela onipresença de incêndios florestais no entorno - como uma alegoria para conflitos internos, Petzold mira nesse microcosmo para um exame do comportamento humano, com seus preconceitos, irracionalidades, incômodos e egocentrismos. Leon, ao cabo, é um narcisista que sequer percebe o mundo à sua volta desabando. "Nem tudo é sobre você" lembra Nadja em certa altura. Uma lição que o hostil Leon, com sua arrogância indecente, levará para a vida.
11) Paloma: "Eu num sei nem por onde começar... [...] Seu Papa. Meu nome é Paloma. Vivo e trabalho aqui em Saloá como agricultora e, às vezes, faço bico de cabeleireira. Vivo amigada com o meu marido Zé. Com ele crio a minha filha Jennifer, o presente mais maravilhoso que Deus me deu. Nasci homem, mas sou mulher. Me considero fia de Deus como qualquer outra pessoa. Já me batizei, fiz a primeira eucaristia, a crisma, agora só falta realizar o meu maior sonho que é casar na Igreja. E eu sei que só o senhor pode autorizar isso." Vamos combinar que não poderia ser mais comovente o instante em que Paloma dita à sua amiga Kelly uma carta com esse pedido singelo: o de poder casar. Com véu, grinalda, Igreja decorada e tudo que se tem direito. Como mulher trans, ela já está familiarizada com as barreiras impostas pela própria Igreja e seus dogmas um tanto ultrapassados. Aliás, ela sequer pode entrar na Igreja, numa daquelas contradições legítimas do Brasil - esse País conservador e cheio de fé, capaz de converter pessoas periféricas e minorias em admiradores da extrema direita, das elites e de outras instituições poderosas. Pode ser difícil entender por quê Paloma, como mulher negra, nordestina, trans, analfabeta e pobre deseja tanto se casar da forma mais tradicional possível? Pode. Mas o filme do sempre ótimo Marcelo Gomes ajuda a entender. Leia a resenha completa.
10) Holy Spider (عنکبوت مقدس): Vamos combinar que nos últimos anos a gente cansou de ouvir os representantes de extrema direita do País afirmarem que estavam em uma "cruzada do bem contra o mal". Embalados em uma aura supostamente sacra - o que envolveu um verdadeiro aparato religioso de templos evangélicos, pastores e bíblias - os bolsonaristas investiram-se da suposta missão divina de extirpar do País a demoníaca ala de esquerda do Brasil. A mistura de fanatismo religioso e pânico moral retroalimentados por fake news, se consolidaria como uma das principais estratégias dos grupos conservadores no sentido de tentar moldar uma sociedade que estivesse de acordo com suas crenças. Estado laico? Nada disso. O tipo de radicalização que, evidentemente, encontrava eco entre os fanáticos. Sim, a gente sabe que o Irã não é o Brasil - e que lá a obstinação religiosa pode ter desdobramentos ainda mais controversos (pra dizer o mínimo). Nesse sentido, o enviado da Dinamarca no último Oscar é um trabalho poderoso sobre uma jornalista obstinada que chega a Teerã com a missão de investigar uma onda de crimes violentos, que pode ter a ver com intolerância. Fascismo, misoginia, preconceito - às vezes mais perto do que imaginamos. As discussões são amplas nessa obra que lembra que o extremismo tem de ser permanentemente combatido. Leia a resenha completa.
9) Sem Ursos (Khers Nist): Um filme sobre alguém tentando fazer um filme em que as coisas dão muito errado, em meio a um contexto político de opressão, de censura e de proibições. Pode até parecer uma distopia crítica ao totalitarismo, mas é apenas a vida do diretor iraniano Jafar Panahi, que segue em sua luta (quase) solitária no sentido de tentar exercer a sua profissão. Preso em 2010 sob a alegação de "cometer crimes contra a segurança nacional do País e propaganda contra a República Islâmica" (também conhecido como tentativa escancarada de silenciamento por parte do Governo), Panahi também foi proibido pelo Tribunal Revolucionário Islâmico de dirigir qualquer obra, escrever roteiros, dar entrevistas e sair do Irã. Por 20 anos. Em meio a respostas internacionais e apoio de organizações, o realizador se empenha em, às escondidas, dirigir filmes. É desse cenário conturbado que resulta essa comovente e provocativa produção, vencedora do Prêmio do Júri no Festival de Veneza. Rodado secretamente no Irã e estrelado pelo próprio Panahi, o filme se aproveita de suas limitações técnicas e geográficas para um exercício metalinguístico e semidocumental poderoso. Fazer filmes é um suplício para Panahi. Mas ele não desiste - o que não deixa de ser um alento. Leia a resenha completa.
8) Decisão de Partir (헤어질 결심): Existe uma sequência bastante simbólica desse filme de Park Chan-wook que, instantaneamente, se tornaria uma das minhas preferidas do ano. Nela, um detetive reconstrói o trajeto que, ele supõe, possa ter sido percorrido até a ocorrência de um assassinato - o que envolve a escalada de um rochedo bastante íngreme. Em certa altura ele atinge um local conhecido como Pico do Óleo, um espaldar bastante liso, que o faz escorregar, quase cair. Como uma espécie de Sísifo do Oriente ele persiste, resvalando aqui, avançando ali. Tal qual o personagem do ensaio clássico do existencialista Albert Camus, ele pretende encontrar algum sentido - nesse caso, em um crime sem solução. Mas, ao cabo, parece se deparar apenas com um ambiente desconexo, sem lógica. A escorregada metafórica talvez demore para servir de evidência para algo que parece estar sendo esfregado desde o começo em sua cara. E essa demora em perceber, pode fazer com que seja tarde demais. Sim, pode parecer meio filosófico mas, aqui e ali, isso também é parte da experiência dessa obra que foi a enviada da Coreia do Sul no último Oscar. Um thriller hitchcockiano, fragmentado, enigmático e cheio de ambiguidades, que brinca com conceitos narrativos, aproximando e afastando, confundido e organizando. Filmaço! Leia a resenha completa.
7) A Menina Silenciosa (An Cailín Ciúin): Em tempos de tanta brutalidade e violência como os que vivemos, é sempre bom assistir a uma obra tão afetuosa como esta, a enviada da Irlanda ao último Oscar. Aliás, esse é o tipo de produção que nos faz refletir sobre a importância da cortesia e da civilidade como um caminho para nos livrar do ódio. Na trama, a jovem Cáit é uma menina de olhos curiosos, que parece mais acostumada a ouvir do que falar. O que talvez se explique pela existência em meio a turbulência de uma família numerosa, chefiada por um pai negligente e abusivo e por uma mãe estressada e aflita - que está novamente grávida. E, como uma forma de tentar desafogar a casa, Cáit é enviada para a casa da prima da mãe - uma carismática e elegante senhora de nome Eibhlín que, ao lado do taciturno marido Séan, toca uma propriedade de produção de leite. E não demora para que a cautela inicial da pequena, evidenciada pelo seu olhar sempre amplo, ainda que tímido, vá dando lugar à confiança conforme os dias passam naquele verão do começo dos anos 80. De forma hábil, o diretor estreante Colm Bairéad pontua os contrastes entre ambas as casas, mostrando a importância do acolhimento como alternativa para a efetivação da convivência pacífica. Um filme evocativo, singelo. E brilhante. Leia a resenha completa.
6) Close: Léo e Rémi são dois meninos na faixa dos 13 anos, que moram na zona rural da Bélgica. Melhores amigos, fazem absolutamente tudo juntos: brincam, andam de bicicleta, tocam oboé, dormem. Aliás, dormem até na mesma cama. A relação é íntima, cheia de afeto e bastante naturalizada pelas famílias de ambos os garotos. Tudo corre mais ou menos bem até o final do verão, quando eles começam a estudar no Ensino Médio. Novas vivências, experiências. Amizades. Em certo dia uma das colegas pergunta, de forma bastante despretensiosa, se eles estão juntos. Se são namorados, uma vez que o carinho entre eles é palpável. Léo estranha a pergunta. Fica incomodado. Nega veementemente. Tudo piora quando eles passam a sofrer bullying de outros colegas. Comentários homofóbicos. Que brotam do entorno. Léo resolve que, talvez, seja melhor se afastar de Rémi. Uma decisão que, definitivamente, impactará a vida de todos. Poucas vezes a construção da noção de masculinidade na juventude foi abordada de forma tão impactante como nesse ótimo filme do diretor Lukas Dhont. Disponível na Mubi, essa obra comovente e primaveril é cheia de sutilezas, de silêncios e de planos fechados, sendo paradoxalmente potente em sua abordagem. Leia a resenha completa.
5) Retratos Fantasmas: Uma obra nostálgica, metalinguística e poética, que funciona como uma espécie de fluxo de consciência sobre uma sociedade em transformação que, ao mesmo tempo que parece evoluir em alguns aspectos - como no caso da tecnologia -, retrocede em outros. Mais ou menos assim é possível resumir - e de acordo com a minha leitura, já que esse é um projeto amplo, cheio de camadas, de caminhos e de possibilidades - a experiência com o documentário de Kleber Mendonça Filho. Enviado para representar o Brasil no Oscar, este é um trabalho evocativo, sensível e bastante autobiográfico não apenas sobre o processo de fazer cinema, mas sobre como a nossa bagagem ou as vivências pessoais influenciam em nossa caminhada. Em alguma medida, compreenderemos como grande parte das obras de Mendonça partem de memórias da sua infância e da juventude no Recife. Sons, cheiros, objetos, luzes, a arquitetura dos espaços, as relações familiares e até mesmo os latidos do carismático cachorro do vizinho, contribuirão nessa colcha de retalhos que formará cada roteiro, cada narrativa pensada pelo diretor. O resultado é uma obra alegórica e afetuosa, que reverencia o passado, ao mesmo tempo em que olha com certo desalento para o futuro. Leia a resenha completa.
4) Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon): um épico ao estilo da Hollywood clássica, estilo Assim Caminha a Humanidade misturado com Sangue Negro. Assim pode ser resumida a experiência com o mais recente filme de Martin Scorsese - e um dos grandes favoritos à indicações na próxima edição do Oscar. Imponente, mas sem deixar de ser intimista, a obra volta cem anos no tempo para mostrar como a Tribo Osage, de Oklahoma, se tornou uma das mais ricas do planeta, meio que do dia para a noite, após a descoberta de petróleo em suas terras. E, claro, o óleo que jorra do chão atrairá não apenas trabalho, dinheiro e crescimento, como muita ambição. É nesse contexto do pós Primeira Guerra que chaga ao local um certo Ernest (Leonardo DiCaprio), que passará a trabalhar como motorista de um poderoso proprietário de terras chamado William King Hale (Robert De Niro). Só que os problemas, de fato, iniciam quando Ernest se aproxima de Mollie (Lily Gladstone), se apaixonando por ela. O que, paradoxalmente, resultará em uma sequência inexplicável de mortes entre os Osage. Cheio de ambiguidades, o projeto deixa o espectador em dúvidas sobre a real intenção do protagonista - especialmente diante da voluptuosa herança que está em posse de Mollie. Um filme espectacular, que dá conta da complexidade das relações no nascedouro do Século 20.
3) Anatomia de Uma Queda (Anatomie D'une Chute): "Eu não dou a mínima para a realidade. O julgamento não é sobre a verdade. É sobre o que parece a verdade". A frase dita pelo advogado Vincent surgirá, com pequenas variações, mais de uma vez durante os quase 150 minutos do filme dirigido por Justine Triet, que foi exibido no Festival Varilux. Na trama, Sandra é acusada de, talvez, ter matado seu próprio marido em circunstâncias misteriosas e de difícil explicação para a Justiça. E, depois do surgimento de uma gravação que envolve uma pesada discussão entre o casal, apenas um dia antes da morte de Samuel, o advogado tenta de toda a forma lembrar Sandra que, vá lá, talvez a realidade dos fatos não seja tão importante assim. O que vale mesmo é a aparência da coisa toda. E, em alguma medida, é possível afirmar que é é nesse contexto que reside o brilhantismo da obra, que venceu a mais recente Palma de Ouro do Festival de Cannes. Ao cabo, essa é uma produção que nos arremessa de lá para cá o tempo todo, nos deixando em dúvida sobre os acontecimentos. Sandra é culpada mesmo? Ou a queda que resulta em morte foi um acidente? São muitas perguntas e não haverá respostas óbvias nessa obra cheia de ambiguidades e de um magnetismo irresistível. Leia a resenha completa.
2) Barbie: Ao sair do cinema a sensação que ficou foi a de que esse era o único filme possível para a boneca mais famosa do mundo. Estamos no final de 2023 e ainda parece meio incrível que pautas feministas ou que envolvam questões ligadas à importância da igualdade de gênero precisem ser permanentemente lembradas, marteladas. Mas o caso é que o óbvio, em muitos casos, precisa ser dito. Reiterado. Que isso seja feito justamente (e paradoxalmente) por meio de um brinquedo que funcionaria, por décadas, como o exemplar máximo do estereótipo feminino fetichizado é algo digno de aplausos. "Ãin, porque a Mattel vai ganhar rios de dinheiro com o hype em cima da obra". Sim, vai. E ela ri meio que na nossa cara dessa contradição. Mas é também preciso elogiar a percepção de que o mundo evoluiu e, vá lá, talvez nos dias de hoje já não faça mais sentido uma comédia agridoce com a Barbie e o Ken feita somente para agradar adolescentes vestidas de rosa. Em meio a tantas discussões de twitter, o caso é que nenhuma obra mobilizou tanto - de tiozões cringe incomodados com o discurso à mães horrorizadas que se identificaram no sigilo com aquilo que viam (por mais que Igreja e a família de bem dissesse o contrário). Barbie foi um evento. Que nós amamos. Leia a resenha completa.
1) As Bestas: Vamos combinar que essa joia do cinema espanhol, exibida no mais recente Festival Varilux, não é apenas um filme. É uma aula de cinema. Daquelas que deveriam ser discutidas em cursos superiores para estudantes que se pretendem cineastas. Em alguma medida, e nas aparências, essa poderia ser apenas uma narrativa sobre a desavença entre duas famílias vizinhas com filosofias, ideais e projetos - históricos, de agricultura, institucionais, de vida em sociedade - distintos. E que, não demorará muito, colidirão de maneira inescapável. Em uma análise mais ampla, porém, não deixa de impactar a forma como o diretor Rodrigo Sorogoyen insere temas como, xenofobia, tradições, colonialismo e meio ambiente, tornando aquele microcosmo uma espécie de reflexo do todo. Parece que a cada dia estamos mais dispostos a odiar, a sermos intolerantes. E para, a partir daí, a coisa descambar pra violência, é um passo. E nessa obra cheia de camadas o que temos é a complexidade do sujeito e suas motivações apresentadas nunca de forma maniqueísta. Com longos planos sequência, diálogos íntimos e potentes e uma ambientação cinzenta, essa é uma experiência evocativa, que cresce justamente em suas sutilezas. Ninguém sai igual depois desse filme. Leia a resenha completa.
E pra vocês, quais os melhores filmes da temporada? Comenta com a gente!
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