De: Ulrich Seidl. Com Michael Thomas, Tessa Göttlicher, Hans-Michael Rehberg e Inge Maux. Drama, Alemanha / Itália / Áustria / França, 2022, 114 minutos.
Porque, por mais que Richie Bravo (Michael Thomas) seja uma figura excêntrica, carismática e performática, há que se admitir o fato de ele funcionar como uma espécie de ponte alegórica entre o arcaico e o contemporâneo, entre o antiquado e o moderno. Ok, evidentemente as suas canções desgraçadamente bregas parecem paralisadas em algum tempo entre a rádio romântica dos anos 80 e o programa de auditório kitsch, mas o caso é que, num comparativo com seu próprio pai - o preconceituoso, intolerante e saudoso do nazismo Ekkard (Hans-Michael Rehberg, em seu último papel da carreira) -, ele até parece alguém mais ou menos oxigenado (sensação reforçada pelo apetite sexual onipresente e pelo senso de juventude tardia, escapista e hedonista mesmo ele sendo alguém de sessenta e poucos anos). Só que quando a sua filha Tessa (Tessa Göttlicher) surge em sua vida para lhe cobrar dezoito anos de pensão nunca pagos, a conta histórica parece ser maior do que o fardo individual. Há que se reparar mais do que algumas centenas de euros.
E, nesse sentido, talvez não seja por acaso que Tessa surja reivindicando uma dívida gigantesca, acompanhada de seu namorado muçulmano. Mais do que isso, a jovem parece habitar uma espécie de comuna improvisada, daquelas que faria o próprio avô morrer de desgosto - lembremos dos contrastes. No meio do caminho do inverno europeu (e curiosamente praiano), Richie moverá mundos e fundos para tentar juntar a grana que compense a sua filha. O que envolverá não apenas as apresentações plastificadas em hotéis gélidos (ainda que os cenários multicoloridos se esforcem em sugerir o inverso), mas a venda do próprio corpo, já que o cantor era uma espécie de sex symbol do passado, como sugerem os pôsteres à moda Elvis Presley que ele preserva em sua casa que, agora, também serve como Airbnb de curiosos. Aliás, há que se destacar a forma louvável como Ulrich naturaliza a sexualidade na terceira idade, convertendo as sequências de transas entre idosos em momentos bastante sensuais e até mesmo, à sua maneira, afetuosos.
Só que, como dito lá no começo, esse não é apenas um drama familiar sobre uma filha que cobra o pai ausente. Nas andanças de Richie chamará a atenção o sem fim de moradores de rua e de imigrantes que habitam as calçadas (inclusive em períodos de nevasca). Em certa altura, o protagonista mostra certo temor em relação ao namorado de Tessa, que ele sequer conhece, fazendo aparentar uma xenofobia entranhada na alma, estruturalmente consolidada. Ainda assim, quando seu decrépito pai que padece de demência insiste em entoar, nos corredores da casa de repouso que reside, uma espécie de hino da juventude hitlerista, Richie cantará ainda mais alto alguma de suas baladas cafonas confrontando o idoso (e seus ideais ultrapassados). Os tempos mudaram, mas os esqueletos parecem incapazes de sair do armário. De serem superados. Há certa naturalização das dores do passado que custam, em alguns casos, a ser oficialmente extirpadas. Como explicar, por exemplo, a sequência em que Emmi (Inge Maux) narra, com a maior tranquilidade, quase aos risos, sobre a vez em que foi abusada sexualmente aos cinco anos de idade? A percepção de certos eventos pode ser nebulosa. A distância temporal também confunde. E o filme arremata todos esses elementos de forma muito coesa.
Nota: 8,5
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