De: Rodrigo Sorogoyen. Com Denis Ménochet, Luiz Zahera, Diego Anido e Marina Foïs, Drama / Suspense, Espanha, 2022, 138 minutos.
As Bestas (As Bestas) não é apenas um filme. É uma aula de cinema. Daquelas que deveriam ser exibidas em cursos superiores para estudantes que se pretendem cineastas. Uma experiência que nos deixa maravilhados com o poder dessa grande arte. Em alguma medida, e nas aparências, essa poderia ser apenas uma narrativa sobre a desavença entre duas famílias vizinhas com filosofias, ideais e projetos - históricos, de agricultura, institucionais, de vida em sociedade - distintos. E que, não demorará muito, colidirão de maneira inescapável. Em uma análise mais ampla, porém, não deixa de impactar a forma como o diretor Rodrigo Sorogoyen insere temas como, xenofobia, tradições, colonialismo e meio ambiente, tornando aquele microcosmo como uma espécie de reflexo do todo. Parece que a cada dia estamos mais dispostos a odiar, a sermos intolerantes. A sermos incapazes de escutar o outro lado, entender suas motivações. E para, a partir daí, a coisa descambar pra violência, é um passo. O barril de pólvora parece sempre pronto a explodir.
Em uma das cenas centrais da obra, o francês Antoine (Denis Ménochet), convida os seus vizinhos Xan (Luiz Zahera) e Lorenzo (Diego Anido) para um drinque no boteco local. E para uma conversa franca. Os três moram em uma pequena vila na Galícia, no noroeste da Espanha. Antoine, um intelectual de vida financeira aparentemente bem resolvida, está no local acompanhado da esposa Olga (Marina Foïs) há cerca de dois anos. Em sua propriedade planta verduras orgânicas, enquanto se empenha em reformar antigas residências que possam, mais a frente, atrair interessados. Já Xan e Lorenzo são os agricultores convencionais nativos - dois sujeitos rudes, na meia idade, que ainda moram com a mãe e que lutam diariamente por uma condição melhor de vida. Para os dois, os ideais de Antoine e Olga não passam de caprichos de burgueses afetados, que desconhecem a realidade, as dificuldades e os anseios do povo dali. Já o casal crê em algum tipo de utopia empreendedora - semelhante a dos endinheirados que adquirem propriedades rurais para transformá-las em produtos oferecidos no Airbnb.
A vida idílica, bucólica, pode ser um ideal para aqueles que se cansaram da rotina pasteurizada, urgente e tecnológica da cidade grande - e isso não está em discussão. Mas as mágoas de Xan e Lorenzo são maiores, tem outros recortes, já que acreditam que a presença do casal forasteiro no local reduz as oportunidades para eles. Como por exemplo, em uma situação em que os moradores foram convocados a votar ou não pela presença de uma empresa interessada em implantar um sistema de energia eólica na região - o que lhes colocaria em lados opostos. "Você está aqui há dois anos brincando de fazendinha, enquanto eu estou há 52 anos e Lorenzo a 45", argumenta Xan, antes de completar de forma dolorosa: "e estamos fartos de sermos miseráveis. E não sabíamos que éramos miseráveis até os cretinos da eólica chegarem e nos oferecerem um bom dinheiro". Para Xan e Lorenzo aquilo poderia representar o passo nunca dado. Para Antoine, a sustentabilidade é uma filosofia de vida que lhe faz votar contra projetos tão invasivos para o ecossistema local. É complexo. E tenso. Aliás, capaz de converter um simples jogo de dominó no bar, em uma das sequências mais inquietantes dos últimos anos.
Com longos planos sequência, a obra tem como uma de suas forças os diálogos - sempre íntimos, pesados, dilatados atmosféricos. Uma mera conversa sobre modelos de cultivos e uso da terra de maneira adequada na produção limpa, pode adquirir contornos mais carregados. Tudo parece estar sempre no limite da ebulição, mesmo que não pareça estar havendo muita coisa. A ambientação geral é cinzenta, a geografia sinuosa do local pode ser ao mesmo tempo ampla e espaçada, mas também apertada, quando o assunto é a linha divisória entre as propriedades, os limites estabelecidos. As provocações, a agonia e o desalento são reforçados pela trilha sonora vigorosa de notas rasgantes, que nunca soa invasiva, e pelas interpretações naturalistas, nunca caricaturais - auxiliando também o fato de o projeto não ser excessivamente maniqueísta ou panfletário, ainda que o roteiro, baseado em fatos reais, pareça conduzir o espectador para uma determinada direção. Repleta de contrastes e de camadas, essa é uma experiência evocativa, que cresce justamente diante de suas sutilezas. É imperdível. De ver e rever.
Nota: 10
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