quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Cinema - Holy Spider

De: Ali Abbasi. Com Zar Amir Ebrahimi e Mehdi Bajestani. Drama / Suspense, Dinamarca / Alemanha / França / Suécia, 2022, 115 minutos.

Vamos combinar que nos últimos anos a gente cansou de ouvir os representantes de extrema direita do País afirmarem que estavam em uma "cruzada do bem contra o mal". Embalados em uma aura supostamente sacra - o que envolveu um verdadeiro aparato religioso de templos evangélicos, pastores, bíblias e cantores de música gospel - os bolsonaristas investiram-se da suposta missão divina de extirpar do País a demoníaca ala de esquerda do Brasil. A mistura de fanatismo religioso e pânico moral retroalimentados por fake news, se consolidaria como uma das principais estratégias dos grupos conservadores no sentido de tentar moldar uma sociedade que estivesse de acordo com suas crenças. Qualquer desvio de rota que não fosse representativo dos valores da família tradicional, ou que significasse um mínimo de pluralidade, de diversidade, já seria o suficiente para o recrudescimento de discursos de ódio, de preconceitos, de intolerância. Estado laico? Nada disso, o mito sempre dizia que as "minorias deviam se curvar às maiorias". O tipo de radicalização que, evidentemente, encontrava eco entre os fanáticos.

Sim, a gente sabe que o Irã não é o Brasil - e que lá a obstinação religiosa pode ter desdobramentos ainda mais controversos (pra dizer o mínimo). Como costumo dizer, o problema dos fiéis não é crença em si e sim o fã-clube. Aquela capacidade de levar até o limite os seus dogmas, na tentativa de tentar impor a todo custo a sua religião - o que envolve desde marginalização de outras crenças (no Brasil, especialmente as de matriz africana), intervenção da esfera religiosa na discussão de políticas públicas (como no caso do aborto ou da bizarra tentativa de implantação de uma Escola Sem Partido) e oposição à minorias ou a grupos marginalizados. Isso sem falar nos casos de corrupção que essa equação é capaz de gerar - como no episódio que envolveu o Ministério da Educação (e a pateticamente institucionalizada propina em barras de ouro). Em meio a tudo isso entra ainda o discurso moralista, de restabelecimento de algum tipo de ordem e de salvação contra os pecados - e é aqui que entra, finalmente, o filme que é objeto dessa resenha, no caso o assombroso Holy Spider, que está em cartaz nas salas de cinema do País e que foi o enviado da Dinamarca ao Oscar (chegou até a short list).

Na trama dirigida por Ali Abbasi - do desconfortável e excêntrico Border (2018) - acompanhamos a história inspirada em eventos reais do assassino em série Saeed (Mehdi Bajestani) que sob a desculpa de "limpar as ruas da decadência", estrangulou 16 prostitutas na sagrada cidade iraniana de Mashhad. Acreditando estar fazendo o certo - sob as bençãos de Alá - Saeed vive uma vida doméstica convencional, enquanto trabalha no dia a dia na construção civil. Mas é no turno da noite que ele se converte naquele que se tornaria conhecido como Assassino Aranha - alcunha dada por conta do método utilizado por ele (o que envolvia atrair as vítimas para o seu próprio apartamento, enquanto a esposa e os três filhos estavam ausentes). As autoridades não parecem estar lá muito interessadas em resolver efetivamente o caso - a ordem é ignorar crimes ligados à religião. Situação que só será alterada com a obstinada jornalista Areez (Zar Amir Ebrahimi, que venceu o prêmio de Atriz no Festival de Cannes desse ano), que chega de Teerã determinada a investigar mais de perto os violentos crimes.

É claro que a tarefa não será fácil - e o machismo que ainda ronda certos países mais conservadores é evidenciado já na chegada de Areez ao hotel que, sem ter um marido a tiracolo, quase é impedida de fazer o check in no local. E será nesses pequenos instantes que Abbasi reforçará suas ideias - seja na violência que poderá ser não apenas física mas psicológica ou mesmo no descaso da polícia. Em um dos melhores diálogos, por exemplo, o investigador da polícia afirma que o trabalho da jornalista é o de "informar as pessoas e não assustá-las, de não perturbar a opinião pública". Ao que ela responde que ela não precisa assustar a sociedade: "ela já está assustada". Aliás, qualquer semelhança com o Brasil da pandemia talvez não seja coincidência. Com ótima trilha sonora e fotografia que reforça o caráter claustrofóbico de noite mais escura que a noite, o filme ainda apresenta uma ou outra surpresa, com direito a uma conclusão pouco otimista e que talvez explique, ao menos em partes, esse ressurgimento ocasional de políticas extremistas.

Sem romantizar excessivamente o assassino - o tipo de crítica que envolve outros programas de true crime -, a obra mostra que o fascismo, a misoginia e o preconceito podem estar muito mais próximos do que imaginamos (e vai saber dos segredos daquele simpático vizinho idoso que frequenta a missa todos os domingos e que diz que vota no Bolsonaro "contra tudo que está aí, né?"). Sim, pode parecer exagero de minha parte comparar um serial killer com os extremistas de direita que circulam livremente pelas esquinas de nosso País. Mas em um cenário em que um torturador é tido como herói por uma fatia bem grande da sociedade, não é de se duvidar de nada. "Ninguém vê nada em uma noite tão escura" argumenta Saeed enquanto conduz mais uma de suas vítimas ao covil. Talvez o problema seja esse mesmo: se ocorrer um genocídio de crianças indígenas na frente do "cidadão de bem", ele é capaz de fechar os olhos e fingir que não viu. Mas experimenta falar em aborto. Ou mesmo possibilitar às mulheres a decisão sobre o que fazer com que seus próprios corpos. É a hora que a "aranha" arma a sua teia.

Nota: 9,0

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