terça-feira, 22 de agosto de 2023

Novidades em Streaming - Tenho Sonhos Elétricos (Tengo Sueños Electricos)

De: Valentina Maurel. Com Daniela Marín Navarro, Reinaldo Amien Gutiérrez e Vivian Rodriguez. Drama, Costa Rica / França / Bélgica, 2022, 104 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM ALGUNS SPOILERS]

"Tenho sonhos elétricos. Onde meu pai, quando não pode consertar algo, arrebenta-o no chão. Ele fica bravo, grita, xinga. Nos amamos aos gritos, às vezes com golpes. É isso que somos. Uma horda de animais selvagens sonhando com seres humanos. Às vezes é preciso várias vidas pra entender que a raiva que nos atravessa não nos pertence". É quase no final de Tenho Sonhos Elétricos (Tengo Sueños Electricos) - filme da Costa Rica premiado no último Festival de Locarno -, que Martín (Reinaldo Amien Gutiérrez) lê um poema improvisado que, de alguma maneira, resume a sua relação turbulenta com a própria filha, Eva (Daniela Marín Navarro). Ambos parecem estar sempre aos trancos e barrancos, no limite entre o amor e o ódio, entre o carinho afetuoso e o conflito cheio de agressividade. É a complexidade do ser humano que parece estar no centro da estreia da diretora Valentina Maurel. Somos imperfeitos, afinal, e que atire a primeira pedra quem nunca exagerou na dose quando o assunto é as relações familiares.


E, em alguma medida, esse é um projeto pequeno, que parte de um microcosmo, para uma análise mais ampla desse tipo de vínculo. Eva parece buscar afeto em todas as partes - encontrando migalhas aqui e ali não apenas do pai, mas também da mãe Anca (Vivian Rodriguez). E ser uma adolescente de 16 anos em um cenário de pais separados em que não se é adulto o suficiente para assumir certas responsabilidades, e nem se é mais criança para comportamentos infantis, costuma ser sinônimo de bomba-relógio que parece sempre pronta a explodir. Há ternura mas também há raiva. E Eva trafega de uma casa a outra, indo de um ambiente mais taciturno para outro mais boêmio - o que resultará em uma rotina fervilhante de incertezas. Na casa da mãe, herdada de um parente, há um dia a dia mais tumultuado com obras que ocorrem, um gato amedrontado e uma irmã (Adriana Costa Garcia) pequena que parece distante pelo peso da idade - Eva, em contrapartida, já está com os desejos sexuais escorrendo pelos dedos (quase literalmente).



Na casa do pai um ambiente cultural e de boemia, de discussões literárias, de cinema, de esculturas, de bebedeiras e de liberdades - que vão do cigarro ao sexo. Martin se separou de Anca, uma dançarina "aposentada", e ficou com a parte legal da coisa toda. Ambos talvez queiram o bem-estar da filha, cada um a sua maneira e as turras, como em qualquer família. Equilibrar desejos, sonhos, frustrações parece uma dificuldade para todos ali. Martin é o esquerdomacho atormentado - um pobretão que sonha em viver de sua arte, mas que mal tem dinheiro para alugar um apartamento que preste (e não deixa de ser comovente o instante em que Eva constata que sua futura residência terá apenas um quarto). Já Anca parece mais apagada em suas preocupações domésticas, rotineiras, simplórias, de quem provavelmente abandonou a carreira para cuidar da família. E que precisa lidar com conflitos que, de tão simples, parecem complexos.

Em linhas gerais não é muito fácil gostar desses personagens. Ou de enxergá-los em todas as suas dimensões. E talvez seja justamente aí que resida a beleza da coisa toda - afinal, quem consegue ser afável o tempo todo? Eva, por exemplo, parece se apaixonar por um amigo de seu pai, mas como passar pano para um homem de quarenta e poucos anos que não tem pudor em se relacionar com uma jovem de 16? Dá pra normalizar isso tudo? Com sua câmera bastante íntima, Valentina propaga os tumultos interiores em sequências barulhentas, caóticas, mas cheias de nuances, com a câmera surgindo em muitos casos colada ao rosto daqueles que acompanhamos. Não há muito espaço pra respiro, para ar livre, para fôlego. É tudo muito intenso, vertiginoso - o que é reforçado por instantes como aquele em que Martin "descobre" a maneira como Eva perdeu a virgindade. É uma obra intimista e naturalista, angustiante mas afetuosa. Um tipo de cinema que não nos deixa alheios. E que reforça a potência da produção latino-americana.

Nota: 8,5


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