quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Tesouros Cinéfilos - O Cafetã Azul (Le Bleu du Caftan)

De: Maryam Touzani. Com Lubna Azabal, Saleh Bakri e Ayoub Missioui. Drama, Marrocos / Bélgica / Dinamarca / França, 2022, 122 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM ALGUNS SPOILERS]

Em uma das mais belas cenas de O Cafetã Azul (Le Bleu du Caftan), o casal Mina (Lubna Azabal) e Halim (Saleh Bakri) está em uma conversa bastante íntima, reveladora daquilo que pode ter sido um importante recorte de suas vidas. Aos prantos, Halim afirma ter tido muito medo de desonrar a esposa, por não ter conseguido superar aquilo que, aparentemente, ele acredita ser uma espécie de "mal". Naquela altura, o espectador já tem ciência da homossexualidade mantida em segredo pelo homem - como revelam os encontros às escondidas em saunas locais. E que se estendem para a forma afetuosa com que ele lida com o seu jovem funcionário, o dedicado Youssef (Ayoub Missioui). A resposta de Mina diante da manifestação do marido? O acolhimento. "Eu não poderia ter tido mais orgulho de ter sido sua esposa", retruca, de forma enternecedora. Um direcionamento diferente do previsto. E que eleva a obra a um outro patamar.

Como se fosse uma alegoria para os próprios cafetãs - que são túnicas lindamente ornamentadas, com costuras complexas e que costumam ser utilizadas por muçulmanos e judeus -, a obra da diretora Maryam Touzani, do ótimo Adam (2019), é pura sutileza e suavidade na abordagem de seu tema. Em cada close em que os tecidos são delicadamente trabalhados por Halim, parece haver um diálogo direto com a forma com que ele lida com sua sexualidade - sempre discreto, sem chamar a atenção, sem descambar para excessos. Mas sem deixar de vivê-la - com a conivência comovente de Mina, que padece de um câncer terminal. A homossexualidade no Marrocos é proibida e pode levar as pessoas à prisão. O que dá uma dimensão da potência do projeto, que arrancou aplausos em sua exibição no Festival de Cannes, e que foi o enviado do País ao Oscar desse ano (numa daquelas contradições que só a arte é capaz de alcançar).

 


Na trama, acompanhamos a rotina de Halim e Mina como alfaiates da medina de Salé. Em meio ao dia a dia de atendimento de clientes, de organização logística e de busca por certa pureza na confecção de suas peças (como verdadeiros artesãos), que podem levar meses para ser concluídas - o que leva até mesmo à insatisfação de alguns -, eles contratam Youssef como um aprendiz. Enquanto os dois homens parecem se aproximar mais a cada novo encontro, o que é apresentado sem nenhuma pressa, com trocas de olhares, silêncios calculados, mãos que se roçam, Mina sofre com os efeitos de sua doença. E por mais que o casal possa parecer eventualmente afastado, como pode acontecer com aqueles que estão juntos há muito tempo juntos, a sua cumplicidade carinhosa se sobressai nos detalhes - seja no respeito com que Halim cuida de Mina nos momentos mais íntimos, seja na forma como eles debocham de uma cliente desagradável, que os destrata exigindo pressa na produção do cafetã azul que dá nome a obra.

Aliás, é justamente nesse paradoxo entre tradição e modernidade, entre conservadorismo e contemporaneidade, que parece residir uma das forças do projeto. Fechado para ideias mais oxigenadas ou menos retrógradas, o mesmo Marrocos avança para processos mais tecnológicos na hora de elaborar as suas vestes que, atualmente, podem ser feitas com máquinas de costura. Halim parece lutar contra isso e o encantamento com Youssef também tem a ver com isso: o jovem gosta do ofício milenar. Mas há mais nesse combo de contradições e que servem como verdadeiras pílulas para discussão de outros assuntos. Em uma ótima sequência, por exemplo, Mina convida Halim para irem a um bar assistir a um jogo de futebol - o que em tempos de Copa do Mundo Feminina, com o Marrocos sendo o primeiro árabe da história a se classificar para o torneio, não deixa de ser uma bela rima. Autêntico, cheio de empatia, imprevisível. E, ainda, com interpretações magníficas do trio central. É impossível sair da mesma forma desse filme.


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