segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

30 Melhores Discos Nacionais de 2023

Se tem uma lista que tenho muito carinho é a dos Melhores Discos Nacionais. E sempre considero que, com ela, vem a grande responsabilidade de tentar ouvir o máximo possível de lançamentos, a fim de divulgar uma relação que seja a mais democrática possível, explorando gêneros e artistas os mais variados - e que deem conta ao menos de parte da produção brasileira do ano. E, assim como ocorreu com o levantamento dos discos internacionais, a constatação é de que esse foi mais um ano espetacular para a nossa música que, ao cabo, nunca foi tão diversificada na história. Para além do sertanejo universitário, o ouvinte atento pode encontrar aqui obras variadas de indie, de rock alternativo, de R&B, de funk, de eletrônica, de trap e de MPB, claro. 

 


De artistas consagrados que saem de um hiato de tempos pra celebrar trinta anos de carreira - caso do Pato Fu -, passando por iniciantes que já chegam com cara de experientes (caso da Uyara Torrente, que deu um tempo n'A Banda Mais Bonita da Cidade pra investir na carreira solo), o caso é que temos aqui uma variedade de ritmos e de estilos, num levantamento elaborado com calma, tentando não deixar escapar nada. Tentando, como eu disse. Porque uma lista como essa pode não ser necessariamente sobre os melhores. E sim sobre aquilo que se conseguiu ouvir em um período de 365 dias. Com o mínimo de atenção e de dedicação. De repetição. E, se faltou alguma coisa, convido vocês a construírem juntos. Listas, afinal, muitas vezes são subjetivas. E certamente não se encerram em si.

 

30) Julio Secchin (Erupçando): Vamos combinar que a música do carioca Julio Secchin chega a ser quase irritantemente simples. E, por mais contraditório que isso possa parecer, esse é um elogio. Até mesmo porque não deixa de ser um mérito a capacidade de fazer música pop, ensolarada, descomplicada e que vai direto no coração. O artista, afinal, nunca negou o fato de conversar com os jovens por meio de sua arte - e os números impressionantes de Festa de Adeus (2019), seu primeiro trabalho, não deixam mentir. Agora, com Erupçando, a mistura de indie, MPB, música caribenha e funk parece ainda mais expandida, com as suas letras funcionando ao mesmo tempo como divagações cotidianas bem humoradas (e românticas), mas sem deixar de lado o poder do afeto quando tudo a volta parece estar desmoronando. "Pessoas nasceram, pessoas queridas partiram. Mas uma coisa ficou cada vez mais forte: acreditar e insistir no amor é um ato de resistência - pessoal e coletiva", salientou no material de divulgação que, inevitavelmente, alude aos tempos recentes, especialmente os do contexto da pandemia. Peça central do álbum, a divertida 1000 Contatinhos brinca sobre o amor nos tempos de muitas conexões, especialmente as virtuais, mas de escassez de apego emocional ou de responsabilidade afetiva. Acerto total.

 

29) Uyara Torrente (Montada em Seu Cabelo): Quem vê a vocalista d'A Banda Mais Bonita da Cidade esbanjando personalidade nas apresentações ao vivo do coletivo, que costumam arrastar fãs bastante devotos Brasil afora, quase nem acredita que ela começou no mundo da música meio que "no susto" - como ela revelou em entrevista ao Plural. Agora, doze anos depois de viralizar com o clipe da canção Oração, uma das mais queridas dos curitibanos, a artista finalmente lançou seu primeiro trabalho em carreira solo. "A Banda me preparou, me legitimou e me fortaleceu até que eu pude de fato assumir esse lugar, e, naturalmente, veio o desejo de descobrir outros caminhos", comentou no mesmo bate papo. O resultado são dez canções em que Uyara empresta a sua já tradicional habilidade vocal, expandindo a sua arte para além do caráter lúdico, que sempre caracterizou o seu grupo. Claro, não significa que estamos diante de uma grande revolução sonora, mas canções como a releitura de Sereia (de Lulu Santos e Nelson Motta), além de Ela Vem, Sol de Meio Dia e, especialmente, Pudera, com sua cadência refrescante, parecem explorar outros arranjos e possibilidades criativas. "Montar esse disco foi como fazer um quebra cabeças de mim mesma", resumiu no material de divulgação.

 

28) Troá! (Deboche): Já dizia o escritor Nick Hornby que o "sarcasmo e a compaixão são duas qualidades que tornam a vida na Terra tolerável". E, em alguma medida, é interessante notar como essa frase parece resumir à perfeição a experiência com o segundo trabalho das meninas do Troá!. Concebido durante e no pós pandemia, o projeto parece ser resultado daquele ideal de que rir (especialmente de si) pode ser mesmo o melhor remédio. E como Manuella Terra e Carolina Mathias, as integrantes da banda, têm uma amizade de mais de dez anos, é bastante palpável o entrosamento, que resulta em uma coleção de nove canções que mesclam MPB e rock alternativo, em que os sintetizadores se destacam. "Esse é um projeto onde, na sonoridade, a gente conseguiu encontrar a nossa essência. Acredito que a gente passou muito tempo pesquisando, indo a muitos shows, ouvindo muita coisa, vendo muita coisa, fazendo novos amigos, para entender qual era o corpo desse disco", explicou a dupla no material de divulgação. Um bom exemplo desse contexto pode ser percebido na pegajosa Vamo Misturar as Coisas, que tem melodia oitentista e, talvez, uma das melhores letras do ano  (Nada é mais urgente / Do que tudo que eu não digo / Dias, eras, ages, pesquisando um sentido / Pra descobrir um fato histórico / Tudo que foi em 97 é lindo / Menos você). Genial!

 

27) Rubel (As Palavras, Vol. 1 & 2): Tim, Bernardes, BK, Bala Desejo, Milton Nascimento, Liniker, Luedji Luna, Xande de Pilares. Quem olha pra diversidade de estilos das participações especiais do terceiro álbum de Rubel, pode ter certeza do caráter heterogêneo do trabalho. Pensado como um projeto que busca ampliar os horizontes para além dos limites da MPB, o disco parece olhar com mais carinho para os versos, para as frases, para as letras, utilizando-as como âncora para uma análise mais profunda do Brasil atual. "Eu acho o meu trabalho, e de algumas vertentes da música brasileira, comportados demais, sabe?", destacou em entrevista para a Revista Rolling Stone, citando como exemplo o diálogo com o funk, estabelecido em PUT@RIA, canção de título autoexplicativo. Aliás, os mais "puristas" poderão estranhar toda essa diversidade - uma cacofonia de fragmentos, de vozes e de estilos que se mesclam e promovem um encontro entre o forró, o pagode, o hip hop, a eletrônica, o spoken words, o funk e, claro, a MPB. Pode até soar confuso em uma primeira audição. Talvez até estranho, especialmente para quem se acostumou às ambientações que marcariam canções como Partilhar ou Quando Bate Aquela Saudade. Mas, ao cabo, Rubel mostra que não está estagnado. Que não está preso no mesmo lugar. E isso merece ser destacado.


26) Mahmundi (Amor Fati): Se há algo que podemos perceber no quarto trabalho de Mahmundi é a existência cada vez mais clara de uma personalidade própria - uma espécie de "cara" pra sua música. Que faz com que o material seja de fácil identificação. Quem acompanha a artista desde o começo da carreira talvez já esteja habituado com as suas melodias aconchegantes, que alternam instantes solares e otimistas com momentos mais poéticos e profundos. Aqueles que aguardam insistentemente por grandes novidades ou revoluções a cada novo disco talvez não vejam nada de mais nessa nova leva de canções que misturam MPB, pop, rock, soul e jazz. Ao mesmo tempo parece ser esse mesmo sentimento de familiaridade que torne a experiência com esse álbum tão agradável. Não há grandes invenções. E quando apertamos o play não demora para que estejamos ambientados ao novo projeto - com todo o estoicismo evocado pelo título. Misturando a filosofia de Nietzsche, com David Lynch e comédias românticas noventistas, a artista explica que o conceito de amor ao destino parece ser uma espécie de linha guia do disco. Um bom exemplo que resume esse expediente pode ser encontrado em Sem Necessidade - parceria com o gaúcho Taguá Taguá. É o tipo de música que flui redondinha, que flerta com a psicoldelia e que nos faz abrir aquele sorriso.

 

25) Tatá Aeroplano (Boate Invisível): Quem acompanha a carreira do paulista Tatá Aeroplano sabe exatamente o que vai encontrar a cada novo registro - no caso, aquela mistura saborosa de psicodelia oitentista, MPB e rock alternativo (que, aliás, já era a marca do Cérebro Eletrônico, banda da qual foi um dos fundadores). Mas qual seria o diferencial, então, deste sétimo registro solo? "Acho que a marca aqui é o improviso, com as músicas nascendo ora por meio da bateria, em outras por meio do baixo, do piano ou dos sintetizadores, com o Thales Castanheira gravando tudo", resumiu o artista no material de divulgação. Tatá explica que o álbum foi uma construção coletiva em parceria com Bruno Buarque, Dustan Gallas, Junior Boca, Kika e Malu Maria, tendo início em uma imersão em estúdio em que simplesmente não havia canção nenhuma. Esse estilo meio fluído pode ser percebido nos arranjos soltos, com aquela cara de "não sabemos bem onde vamos chegar, mas estamos indo" - o que é reforçado pelas letras cheias de repetições que emergem de músicas como Gente na Praia, Canto Mistério e No Fusca com T-Rex, além da ótima faixa-título, que cita New Order descompromissadamente, como um convite à celebração (mas sem perder a melancolia).

 

24) OUTROEU (A Mágica por Trás da Forma): Fosse uma banda do final dos anos 90 ou começo dos 2000 e o OUTROEU certamente estaria em todas as paradas de sucesso das rádios - muito provavelmente no mesmo bloco de LS Jack, Nila Branco e KLB. Isso significa que não haja espaço para a dupla Guto Oliveira e Mike Tulio? De jeito nenhum. Em linhas gerais o mundo anda tão cheio de complexidades, tão pesado, que parece que já não temos mais tempo de curtir música apenas por curtir. E é justamente esse clima nostálgico, de fim de tarde primaveril, que talvez remeta a tempos mais simples, que, paradoxalmente, é o grande trunfo, o ponto fora da curva dos músicos naturais de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. No que diz respeito a sua discografia, esse terceiro registro também representa uma mudança de rumos - sutil, saindo um pouco do folk alternativo, que era a marca de Encaixe (2019), por exemplo, para adentrar em um terreno mais dançante, de sintetizadores polidos e efeitos eletrônicos aconchegantes. Tudo com muita personalidade, sem jamais pender pra breguice. O resultado são canções solares, cheias de ganchos, efeitos e refrões grudentos, daquelas de fácil identificação e feitas sob medida pra todo mundo cantar junto nos shows - casos de Da Boca Pra Fora, Ninguém Precisa Saber e Meu Bem.

 

23) Jaloo (Mau): Não foram necessárias muitas audições para perceber que, com Mau, a cantora Jaloo parece estar muito mais à vontade. Não que ela não estivesse nos primeiros trabalhos - os elogiados #1 (2015) e ft. (pt. 1) (2019) -, mas aqui ela surge muito mais segura. E muito mais madura. Especialmente na hora de celebrar o seu lado feminino. Como um ser em mutação, ela abandonou completamente o visual de cabeça raspada que se via nos materiais de divulgação do disco anterior - que a colocava num lugar que emulava mais o masculino -, para surgir de cabelos longos, maquiada, com salto alto. "Tudo faz parte de um ciclo, de um momento e também do meu processo criativo. Vivo em constante movimento", comentou em entrevista ao Ig, salientando ainda que o feminino já havia emergido há tempos. "Eu só não tinha compartilhado com o público", pontuou. O resultado são canções que, como de praxe, mesclam estilos variados de forma muito criativa - levando a estética tecnobrega, o forró e os ritmos latinos e periféricos até o limite, especialmente quando encontram a música eletrônica, o trap, o R&B e o dream pop. Nesse sentido, não é por acaso que alguns arranjos parecem saídos de algum filme de ficção científica gravado no região norte do País. É uma mistura coesa, rara, cheia de personalidade e que resulta em canções que já nascem clássicas, como Ocitocina.

 

22) Ava Rocha (Néktar): "Bebamos esse mel de manhã, esse rio de tarde, enchente de noite. Vazar pelos poros, navegar as próprias veias. Derramar entre as pernas, pingando nas línguas, dos amores aos venenos purificadores, até as orelhas virarem asas e pés em forma em forma de língua vestirem barcos para navegarem." O estilo poético com que a carioca Ava Rocha descreve o seu terceiro disco de estúdio dá algumas pistas sobre o tipo de música que o ouvinte encontrará em Néktar. Às vezes comercial em outras erudita, em certos momentos samba noutros música eletrônica alternativa, o caso é que poucas artistas conectam tão bem o acessível e o experimental, o popular e o fragmentado. "O meu popular quer dizer que ele é um disco mais direto, que está mais arraigado a uma alma cultural brasileira mais facilmente identificável", explicou em entrevista à Revista Noize, em que comentava também sobre os aspectos cinematográficos, um tanto teatrais, de sua obra. Um bom exemplo desses antagonismos pode ser encontrado em músicas como Seringueira na Veia, que mistura o bucolismo da percussão tribal, com efeitos eletrônicos minimalistas, em uma letra sobre o fluxo da natureza em metáforas sobre as veias que fluem como rios. O expediente se repete em Barco nos Pés com sua letra insinuante e metafórica (Vestindo a garoa, lavando a alma do País inteiro / Pra amanhecer).

 

21) Mateus Fazeno Rock (Jesus Ñ Voltará): Fazer uma espécie de junção entre o rock mais virtuosístico e o hip hop saído de periferia. É mais ou menos esse o cenário que movimenta o segundo álbum do cearense Mateus Fazeno Rock. Nascido na periferia e convivendo com as diferenças sociais desde muito novo, o artista encontraria em discos de bandas como Silverchair e Nirvana o primeiro contato com o rock. Só que, sendo preto,  o problema foi não se identificar com aqueles branquelos loiros, que muitas vezes apareciam em videoclipes ou em fotos nos discos, no auge do movimento grunge. O que o motivaria a mais tarde, contrapor esse modelo meio hegemônico (e até previsível) de produzir música. O resultado são discos como esse Jesus Ñ Voltará em que somos bombardeados por uma miscelânea de estilos - de punk e funk, passando por rap, dub, reggae e R&B. Um bom exemplo dessa complexidade se estende para a letra de Pose de Malandro / Me Querem Morto em que o cantor divaga sobre masculinidades negras e arquétipos envolvendo os "crias da comunidade". "É um lugar ambíguo, de empoderamento e de vulnerabilidade", explicou à Revista Noize. Há outros momentos de brilho em que o violão se mescla com percussões e batidas eletrônicas elegantes - caso de Nome de Anjo e Pode Ser Easy.


20) Marina Sena (Vício Inerente): Sim, a gente sabe que a Marina Sena se envolveu em uma série de polêmicas nesse 2023, com direito a algumas decisões, no mínimo, questionáveis. Mas, é preciso separar a obra da artista e, acusações de queerbait a parte, em seu segundo trabalho, a mineira segue fazendo música boa como poucas. A cantora, aliás, nunca escondeu o desejo de ser famosa e se o primeiro álbum, De Primeira (2021), atingiu em cheio os corações dos frequentadores de festivais alternativos foi com este disco que ela alcançou o grande público. Com melodias mais acessíveis, batidas urbanas e letras bem mais diretas, o resultado aqui são canções muito mais sensuais e confiantes do que no bucólico e levemente mais experimental disco anterior - algo que pode ser visto já na estética da capa do projeto. "Acho que é por ser ousado que eu ganho respeito, porque o público fala ‘Nossa, minha artista não morreu. Minha artista está ai'", comentou em entrevista à Revista Noize. Nesse sentido, singles como Tudo Pra Amar Você e Olho no Gato exalam um ar de modernidade, de atitude, que é evidenciado também pela mistura de estilos, que vão de pop e música eletrônica, passando por funk, drill e regaetton, com muito uso de autotune e uso da voz como instrumento. Temos a nossa Rosalía? Talvez. Se vocês estiverem preparados pra essa conversa.


19) Julia Mestre (Arrepiada): Talvez nem fosse necessário Julia Mestre verbalizar que Rita Lee foi a grande inspiração para o seu segundo registro em carreira solo. Afinal, bastam os primeiros acordes da faixa-título que abre o trabalho após uma pequena introdução, para que sejamos arremessados diretamente pra fase setentista da artista, que nos deixou em maio desse ano. O que é reforçado pelo vocal absurdamente semelhante da integrante do Bala Desejo. "Rita Lee é para mim a maior compositora do Brasil, uma grande referência. Tenho em casa quase um altar para ela", comentaria em entrevista à Carta Capital. Confinada por causa da pandemia, Julia se aplicou em audições frequentes dos álbuns de 1979 e 1980 de Rita Lee que, coincidentemente, levam apenas o nome da artista. Aliás, são desses registros músicas como Doce Vampiro, Mania de Você e Lança Perfume que, aqui e ali parecem se espalhar nas composições cheias de personalidade de Julia, evocando o estilo de romances entortados, por vezes sombrios e essencialmente brasileiros, que marcariam a obra de sua predecessora. Sem abrir mão de questões contemporâneas, Julia adiciona elementos bucólicos e eventualmente oníricos, mesclando estilos e instrumentos - de sanfona a triângulo, passando por sopros e cordas - e abordando feminilidade e gênero em um projeto cheio de camadas, que parece se revelar aos poucos.


18) Jards Macalé (Coração Bifurcado): Uma das coisas que me pega muito em discos como Coração Bifurcado - vigésimo da carreira bastante prolífica do octogenário poeta e compositor Jards Macalé - é o contraste entre a sofisticação das melodias e o estilo vocal embebido do artista, algo que vai no limite entre a música de cabaré e as rodas musicais improvisadas, como se saídas de peças de teatro encenadas em casas noturnas do subúrbio. Aliás, de forma complementar, não deixa de ser interessante notar como ele praticamente conclama o ouvinte a cantar junto na graciosa Cante, que fecha o trabalho (A melhor coisa do mundo além do amor). Aliás, a beleza evocativa dos versos está em todas as partes, por todos os cantos, e Macalé parece ser uma espécie de inegável voz da experiência na hora de cantar as coisas do amor, suas dores e incertezas, como comprova a dobradinha Amor In Natura e a faixa título, que abrem o álbum para nos lembrar que "Um amor faz sofrer / Dois amor faz chorar", mas também que "O amor tem asas longas de anjo / E ai de quem tem as pernas curtas". Mais adiante o expediente se repete em canções de títulos autoexplicativos, como Mistérios do Nosso Amor - esta com participação especialíssima de Maria Bethânia -, O Amor Vem da Paz e Pra Um Novo Amor Chegar. Com participações de Ná Ozetti, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Guilherme Held e outros instrumentistas da nova geração, o projeto é pura personalidade. De ouvir mais de uma vez.

 

17) Pato Fu (30): Devo confessar a vocês o fato de não ser fácil falar do Pato Fu sem ser tomado pela paixão. É uma das bandas da vida, e aí é aquilo: bastaram duas canções desse décimo registro de inéditas pra que eu já estivesse entregue ao irresistível carisma e à doçura indefectível do grupo. "Faz tanto tempo / Que não vejo você / Faz tanto tempo já / Que até dá medo de saber / O que anda pensando", anuncia já na abertura da inaugural Fique Onde Eu Possa Te Ver - como se fosse uma velha amiga, querendo saber das novidades, em uma canção prosaica com o DNA da banda. E como se já não bastasse a entrada triunfal, o ato seguinte é a política Silenciador, que faz um contraste perfeito entre a delicadeza da melodia e a fúria dos versos (Mais um milagre na capela / Da fé brotou o empreendedor / Deus fala pelo cano de meu revólver / E a bíblia é o meu silenciador). Aliás, assim como ocorreu no ano passado com o Planet Hemp, a impressão que temos é a de que sequer houve um hiato de quase dez anos. Ok, a desculpa pode até ser os trinta anos de carreira. Mas o Brasil anda dureza e é muito bom ver esse recorte mais afrontoso que resulta em canções imperdíveis como A Besta e Curral Mal-Assombrado. Claro, as baladas cotidianas, açucaradas e primaveris não deixaram de existir. Mas o mundo mudou. E é bom perceber que o Pato Fu caminha junto.


16) Ian Ramil (Tetein): Talvez tenha sido a paternidade. Ou mesmo um fiapo de esperança nesse 2023 que finaliza. Mas o caso é que com esse álbum, o gaúcho pareceu menos furioso do que no provocativo e iconoclasta Derivacivilização (2015), o trabalho anterior. Ao cabo, não é só certa delicadeza que parece emergir das melodias mais econômicas ou menos expansivas que parecem influenciadas pelo nascimento da pequena Nina, há seis anos. As letras também surgem mais polidas, menos inconsequentes. Não, não é que o pelotense tenha perdido o espírito questionador. Mas como disse a repórter Andressa Leonarczik, do Jornal do Comércio "quando nasce uma filha também nasce um pai". E em um álbum elaborado ainda antes da pandemia não parecia haver mais tanto sentido esse pendor mais urgente para certos debates. "Não é um disco que fala sobre a paternidade. Mas ele é por causa da paternidade", resumiu na mesma entrevista. O resultado é uma coleção de canções de ambientação mais sutil - como é o caso da própria faixa-título, que parte de uma palavra inventada pela pequena, ou mesmo a graciosa Cantiga de Nina, um samba-canção que homenageia Cartola e que foi concebida quando Nina não tinha nem um mês de vida. "Foi um processo bem diferente, muito mais delicado e tem a ver muito com o processo criativo que vem desse lugar" comentou em bate papo com o Estados de Minas


15) Letrux (Letrux Como Mulher Girafa): O estilo bastante teatral de Letícia Novaes, a Letrux, ganha tintas galhofeiras, coloridas e libidinosas em seu terceiro trabalho em carreira solo. Após o clima sorumbático do anterior - que tinha o título autoexplicativo de Letrux aos Prantos (2020) -, era a hora de, com o perdão do trocadilho, "soltar as feras". Talvez fosse a pandemia chegando ao fim. Ou a simples necessidade de sair da toca e mudar de ares. Mas o caso é que com o novo projeto, produzido por João Brasil, a artista utiliza a alegoria do animalesco pra falar de sentimentos visceralmente humanos. Construindo um projeto ao mesmo tempo divertido, selvagem e poético - numa montanha-russa artística que vai do pop ao psicodélico, com uma parada no rock mais direto e dançante, sem firulas. Literal em alguns momentos, abstrato em outras, o disco parece dar um novo rumo para a carreira da cantora e compositora, ainda que isso não represente necessariamente uma revolução. É pé no chão. O resultado disso é um passeio na floresta em que músicas de nomes, como, Zebra, Crocodilo, Aranha e Hienas se intercalam com pequenas vinhetas sonoras que funcionam quase como um rascunho musical (uma forma de aproximar o público do que acontece no mundo real das produções). É pura personalidade. 


14) Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo (Música do Esquecimento): "Eu não vou fazer / Qualquer canção / Só pra dizer / O que eu sinto agora". Vamos combinar que não deixa de ser um paradoxo uma banda marcada por certa anarquia, converter uma pequena música em um manifesto metalinguístico meio as avessas - como é o caso de Qualquer Canção. Mas talvez seja justamente essa ironia da coisa toda, esse bom humor acima de tudo, que torne o trabalho dos paulistas tão interessante. Um pouco menos caótico que o elogiado e homônimo álbum de estreia, aqui o coletivo parece apresentar uma maior coesão - mesmo com cada canção tendo personalidade própria. Se, no primeiro disco, cada música era um caminho à parte, agora a banda parece ter finalmente encontrado uma sonoridade própria. "Isso não significa menos diversidade estética: o que era pop ficou mais pop; o que era experimental, mais experimental; o que era lírico, mais lírico; e o que era rock and roll, mais rock and roll", explicou a banda no material de divulgação. Um bom exemplo dessa evolução que vai no limite entre o experimentalismo e o acolhimento está na lisérgica As Coisas que Não Te Ensinam na Faculdade de Filosofia que contrasta psicodelia minimalista na melodia com força poderosa na letra (O que fizemos pra chegar aqui / E quem nós vamos enganar amanhã?).


13) ÀIYÉ (Transes): Conectar passado e presente, ancestralidade e porvir, em um caldeirão sonoro de possibilidades. Mais ou menos assim é possível resumir a experiência com o segundo registro de inéditas da carioca Larissa Conforto que, desde que saiu da banda Ventre, responde pelo nome de ÁIYÉ (que significa Terra na língua Iorubá). Nesse sentido, se por um lado as percussões tribais acenam para os orixás, para a espiritualidade, para o terreiro, por outro lado os sintetizadores cibernéticos movimentam as suas melodias para o futuro, numa espécie de cruzamento sofisticado entre Clara Nunes e Djavan, com Flying Lotus e Arca. "O disco carrega a minha pesquisa das histórias do tambor, por isso ele é diverso. Você vai achando as coisas, vai ficando com tesão de misturar tudo aquilo, de ver como soa" comentou em entrevista à Revista Noize. Um bom exemplo dessa diversidade, pode ser percebida na dobradinha Diablo XV e Flui. Se a primeira é um reggaeton que não faria feio em algum dos registros de Rosalía, a segunda bem que poderia ser um cântico religioso, marcado pela espiritualidade - mistura que também tem a ver com o fato de a artista ter morado por muito tempo na Europa. "Estou falando sobre sexualidade, vida e amor, então os orixás entram nesse lugar de auxílio", frisou no mesmo bate papo.

 

12) Rico Dalasam (Escuro Brilhante Último Dia no Orfanato Tia Guga): Só o fato de ter sido o primeiro rapper a ter se assumido gay nesse Brasil tão cheio de contradições, já coloca Rico Dalasam um patamar acima. E, como se não bastasse ser um negro periférico nascido e crescido em uma comunidade carente de Taboão da Serra, em São Paulo - o que resultaria em uma série de preconceitos e memórias desse orfanato -, o artista ainda teve de lidar com o cancelamento (após um rebu jurídico envolvendo direitos autorais de uma de suas músicas) e uma suposta fama de ter temperamento difícil. Só que nada disso é percebido em seus trabalhos que, na maioria das vezes, se equilibra entre a força que emana do amor e a felicidade das pequenas coisas. Novamente mesclando trap, hip hop e música eletrônica, Dalasam converte esse registro em uma peça complementar da jornada iniciada com Dolores Dala Guardião do Alívio - aliás, nosso primeiro colocado na lista de 2021 -, que foi seguido do EP Fim das Tratativas (2022). "Precisei ir ao máximo para trás e depois para frente, para dimensionar o que vivi até aqui e poder ter uma perspectiva de futuro", comentou em entrevista à Veja. O resultado são canções de essência festiva, dançante e esperançosa - como comprovam as saborosas Jovinho, Espero Ainda, Sol Particular e, especialmente, Paixão Nova e Imã, duas das melhores músicas do ano.


11) cabezadenego, Leyblack e Mbé (Mimosa): maximalista, experimental, cheio de improvisos. Em alguns momentos sombrio, noutros festivo. Em linhas gerais não é tarefa muito fácil definir o tipo de som proposto pelo multiartista Luiz Felipe Lucas - o cabezadenego -, em parceria com os beatmakers e produtores do Rio de Janeiro, Leyblack e Mbé. Como se fosse uma grande colcha de retalhos que mistura terreiro de candomblé com samba, passando por ritmos diversos como hip hop, drum and bass, industrial e funk, a obra parece o veículo ideal para a reconfiguração de estilos, rompendo com o modelo tradicional. Não por acaso, o próprio trio trata o trabalho como uma espécie de disco manifesto sobre a potência dos ritmos afrobrasileiros - resultado aliás de uma residência feita pelos artistas no Etopia Centro de Arte e Tecnologia. Assim, percussões tribais se cruzam com paisagens eletrônicas afrofuturistas que, aqui e ali, conectam passado e presente, interligando ideias em uma verdadeira viagem pela música negra. Já nas letras - poucas, cheias de repetições, pequenas inferências e fragmentos que às vezes soam quase aleatórios -, corpo, identidade de gênero e sexualidade se convertem em ato político em instantes ao mesmo tempo divertidos e cheios de potência. Como ocorre, por exemplo, em Chora, Quinta, Dfb, Taca, Matuta e Tik Tik.


10) Sara Não Tem Nome (A Situação): "Pare pra eu descer / Essa viagem já foi longe demais". Repetida como um mantra na marchinha de carnaval Pare, faixa de abertura do segundo disco da mineira Sara Não Tem Nome, a frase acima funcionaria como um pequeno recorte, que ecoaria por todas as curvas do trabalho. Lançado apenas uma semana depois dos atos terroristas ocorridos em 08 de janeiro em Brasília, o registro não poderia ter melhor timing, com suas canções que vão no limite entre o deboche e a crítica social, como no caso da imperdível Agora (Será que o mercado vai lavar / Suas mãos invisíveis?). Apostando na mistura de shoegaze, dream pop e folk rock, a cantora mescla divagações cotidianas e bastante íntimas que, ao cabo, jogam luz no contexto político, social e cultural de um Brasil caótico, que precisa lidar com o delírio coletivo de uma extrema direita raivosa e completamente descolada da realidade. O resultado são canções de títulos autoexplicativos, como é o caso de Cidadão de Bens, que reflete de maneira exemplar o mundo doente, perverso, hipócrita e falsamente moralista que vivemos (Morto / Por dentro / Sua alma já se foi / Faz tempo / Cidadão de bens / Cidadão de bens). O ano começaria da melhor forma possível com um disco que fazia a crítica, enquanto sorria cinicamente, de ladinho, pra quem o escutava.

 

9) Dadá Joãozinho (Tds Bem Global): Como se fosse uma espécie de sonho febril psicodélico ocupado por 13 movimentos distintos. É assim que o próprio Dadá Joãozinho resume sua estreia solo. Dub, reggae, hip hop, punk, samba e outros estilos sendo reinventados e reinterpretados como forma de abarcar esse ideal da globalização. De algo que, a partir da arte, quebra fronteiras. O resultado é uma coleção de canções que buscam burlar os limites da música latina, periférica, das ruas. Natural de Niterói, o artista se mudou para São Paulo aos 23 anos, em plena pandemia, deixando para trás aquele ideal meio idílico da Zona Sul do Rio como um espaço de beleza e de influências ingênuas. "A utopia da música popular brasileira dos anos 70 não fazia mais sentido, então esse projeto precisava refletir esse espaço de escuridão", divagou no material de divulgação. Nesse sentido, canções como Habitual surgem como eco potente de um movimento estimulante, que cruza melodia feroz com letra urgente, que reflete sobre o marasmo cotidiano (Nós, como essa casa, a pose do gato / Tudo fica habitual / Hora de sexo [...] Tamo colado o tempo inteiro, um dia atrás do outro / Vamo ver novela). Desequilibrado, até irregular em certos momentos, esse é um disco que emerge como uma viagem delirante, empilhando vocais e mantras em uma jornada tão exaustiva quanto satisfatória.

 

8) Iara Rennó (Orí Okàn): "Aqui estou eu / Com minha voz recebendo a luz desse chão / Sagrado caminho que corre infinito / Pros braços abertos do mar". Não são necessários muitos segundos de audição do mais recente trabalho de Iará Rennó para que adentremos em um terreno místico, povoado por orixás, fenômenos da natureza e entidades de caráter enigmático. Com uma sonoridade ao mesmo tempo minimalista e potente, temos aqui um registro em que o violão, as percussões tribais e os efeitos eletrônicos cheios de sutilezas parecem fortalecer a comunicação com o candomblé e os aspectos ritualísticos de suas canções - como podemos perceber já em Iemanjá, que abre o disco e que é de autoria de Serena Assumpção. Outro bom exemplo nesse sentido é Baragbô, feita diretamente do terreiro, como forma de homenagear o terreiro do qual ela faz parte, o Ile Axé, Opo Baragbô, em Camaçari. Em entrevistas de divulgação, a artista explicou ainda que este é um álbum "irmão" do igualmente belo Oríkì, lançado no ano passado. "Eu já tinha uma relação e muita admiração pela cultura de orixá, com a cultura do candomblé, mas ainda não era iniciada. Quando me deparei com as traduções dos Oríkì, que são esses poemas de saudação (aos orixás), aquilo foi muito inspirador. Foi mais uma característica muito marcante dessa cultura, que me fisgou", explicou em entrevista ao El Cabong.


7) Lucas Santtana (O Paraíso): Quem acompanha a carreira do baiano Lucas Santtana sabe que a versatilidade de sua música não está relacionada apenas à estilos - que saltam da bossa nova ao pop solar, com uma escala sem concessões no "MPB de novela" -, mas também às letras, invariavelmente atentas ao que acontece ao redor. Sim, aqui e ali ele pode até falar de amor ou investir em dilemas mais cotidianos, com seu violão cru sempre à tiracolo. Ainda assim, ele parece incapaz de ficar alheio à temas relevantes, sejam eles políticos, sociais, culturais - como no caso do recente O Céu É Velho Há Muito Tempo (2019) que, por trás das melodias harmoniosas e sutis, escondia uma visceralidade cheia de potência. Já em seu nono disco de estúdio, o debate margeia o aquecimento global, as crises ambientais e a conscientização sobre o assunto. O resultado é uma coleção de canções mais movimentadas que as do trabalho anterior, com o acréscimo de percussões, sopros e sintetizadores solares que, ainda que preservem a homogeneidade, também mantém a rotação mais em alta. Elegante e onírico, lírico e contemplativo, o registro parece querer redefinir o conceito de Paraíso, utilizando a própria Terra como metáfora para esse espaço idílico. O que resulta em canções soberbas como Vamos Ficar na Terra e a inacreditavelmente linda La Biosphère. Discaço.

 

6) Ana Frango Elétrico (Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua): "Eu sou o garoto de Stranger Things / (Menino, menino, de Stranger Things) / Eu não sou a garota que você pensa." Talvez um pouco mais direta e muito mais confiante do que nos trabalhos anteriores - especialmente na abordagem de temas ligados à identidade de gênero e a expressão da subjetividade queer. Mais ou menos assim pode ser resumido o efervescente terceiro registro da carioca Ana Frango Elétrico. Preservando a essência daquilo que foi apresentado especialmente em Little Electric Chicken Heart - o elogiado disco de 2019 -, aqui, a cantora e compositora mantém o diálogo com a tradição da música brasileira, sem ignorar a importância do diálogo com o moderno, cruzando boogie, com pop sofisticado, MPB classuda e dance music cintilante. Do início, com a explosiva e setentista Electric Fish, à conclusão com a divertida Dr. Sabe Tudo, o trabalho representa ainda um ponto de maturidade, especialmente na hora de expor sentimentos de amor LGBTQIA+. Como disse o site The Needle Drop em sua elogiosa resenha, Ana é um daqueles nomes que consegue soar como ela mesma, independente do gênero explorado. O que pode ser percebido em canções distintas como a cinematográfica Nuvem Vermelha, passando pela indie Coisa Maluca, até chegar ao art pop de Dr. Sabe Tudo.

 

5) Garotas Suecas (1 2 3 4): Talvez um pouco menos efervescente, colorida ou "escaldante" do que em trabalhos anteriores. Assim pode ser resumida, ao menos em partes, a experiência com o quarto álbum de estúdio dos paulistas. Famosos pelo bom humor e irreverência que marcariam projetos como Escaldante Banda (2010), em 1 2 3 4 o coletivo entrega uma safra de canções de tonalidade mais sóbria - ainda que a personalidade do quarteto permaneça intacta. "Foi um disco que foi feito com nós quatro nos encontrando da maneira que dava, de máscara" explicou o guitarrista Tomaz Poliello, em entrevista ao site Mad Sound. E ainda que os temas possam soar mais sérios, isso não significa necessariamente um aceno à melancolia. Mesmo em letras poeticamente reflexivas, como no caso do divertido single Gentrificação (Onde havia uma oficina, abriram um brechó / O restaurante estrelado já foi casa de uma avó), há um aceno para certo deboche, que se estende para a sonoridade que mescla power pop, surf music dos anos 60 e Jovem Guarda. Com duas metades bem delimitadas, o álbum insere o ouvinte em crônicas cotidianas, relacionamentos complexos e dores da vida adulta na primeira parte, para avançar para discussões políticas e sociais em seu lado B - o que fica claro a partir da trinca What U Want, Como É Que Pode e Bala. Talvez melhor disco do Garotas Suecas? Vocês decidem. 

 

4) FBC (O Amor, O Perdão e a Tecnologia Irão nos Levar Para Outro Planeta): Quem escutou (e se apaixonou) por Baile (2021), colaboração do rapper FBC com o Vhoor e que foi sucesso instantâneo em tudo quanto é canto, talvez se surpreenda com o novo direcionamento desse registro solo do artista mineiro. Bebendo na fonte da disco music e investindo em uma sonoridade menos direta sem deixar de dialogar com o moderno, FBC presta aqui uma homenagem aos mestres da música. "Muito do que tem ali no disco foi inspirado nessa minha paixão por Jorge Ben Jor, sabe? Esse meu estudo, eu escutei todos os álbuns, eu vi dezenas de entrevistas, eu me aprofundei mesmo na obra do Jorge e isso refletiu nesse trampo", exemplificou em bate papo com o pessoal do Tenho Mais Discos Que Amigos. Cruzando estilos que vão do hip hop ao house, passando pelo boogie e pelo funk, o artista converte cada canção em uma oportunidade de fortalecer manifestações culturais diversas - da dança ao grafite, até chegar à literatura. Um bom exemplo nesse sentido, é a magnética Estante de Livros, parceria com Don L. Na canção, em meio a citações à Baudelaire e a Machado de Assis ambos divagam sobre decepções amorosas sob perspectivas literárias (Na estante de livros que você divide com outra pessoa / Em sua nova hospedagem / Logo você que só lê livros no Kindle). Já nasceu clássico.

 

3) Luiza Lian (7 Estrelas / Quem Arrancou o Céu?): "A minha música é uma paisagem / Pra você entrar e fazer sua viagem / Pra você entrar e fazer sua viagem / Luzes que nela correm são um espelho / Pra cada um iluminar o próprio caminho". Os primeiros versos do quarto registro de inéditas da paulista Luiza Lian, não poderiam ser mais convidativos. Sim, cada um pode dar a sua interpretação pra música e a cantora e compositora parece consciente disso já nos instantes iniciais do projeto. Ainda assim esse caráter convidativo de A Minha Música É - a primeira faixa - é diluído em uma melodia densa, cheia de efeitos eletrônicos ruidosos, que contrastam com a voz limpíssima da artista. E, honestamente, não precisa muito para que sejamos impactados por essa mescla entre placidez e balbúrdia, com essa dicotomia sendo admitida pela própria Luiza no material de apresentação: "sempre tive pra mim que o encontro com o espírito se dava pelo corpo", afirma. Ao cabo esse é um disco de corpo e de alma, de concreto e de abstrato, de tecnologia e de espiritualidade, de futuro e de passado. Barulhinhos modernos que se misturam à percussões africanas, vocais robotizados em letras repletas de devaneios divinos, que se chocam com os prazeres da carne. "O disco fala sobre a dificuldade de acessar a espiritualidade em um mundo tão desconectado" resumiu em entrevista para a Revista Noize.


2) Alessandra Crispin (O Peso da Pele): "Não me chamaram para estar aqui / Mas eu não ligo sou fruto da resistência / Foi assim que eu sobrevivi". Bastam os primeiros versos da música que dá título ao segundo trabalho da mineira Alessandra Crispin, para que percebamos que as coisas mudaram, desde o seu primeiro disco, Meu Nome É Crispin (2016). De essência mais festiva e de exaltação da identidade negra, aquele álbum parece fruto de um passado distante. De lá para cá, a artista sentiu na pele o preconceito ao viver um episódio de injúria racial em 2018. O assassinato de Marielle Franco também foi um baque. "Naquela época pensei, ou me recolho ou desabrocho de vez pra falar das minhas demandas", comentou em entrevista ao Tribuna de Minas. Parte do resultado é encontrado em O Peso da Pele. Fruto de uma série de estudos da obra de autoras como Conceição Evaristo - que cunhou a palavra "Escrevivência" - a compositora se aproximou de temas ligados à ancestralidade, raízes e religiosidade, entre outros. Em decorrência tem-se uma obra exuberante e sofisticada que parte de um violão intimista que se expande, promovendo um encontro entre samba, pop, eletrônica e ritmos africanos. "Dá pra perceber um momento de maturidade", comentou na mesma entrevista. O que pode ser comprovado em obras-primas como a festiva Guerreira Oyá, Malandro Pilantra, Pretas Vidas e na já citada faixa título.


1) Marcelo D2 (IBORU): "Agora tem esse caminho sem volta para o samba. É mais sobre a minha carreira do que sobre o disco". Foi dessa maneira que Marcelo D2 resumiu, em entrevista à Carta Capital ainda no começo do ano, como seria a sua experiência com o espetacular IBORU que, a época, ainda estava sendo finalizado. Com uma proposta de ser "mais samba e menos rap", o artista carioca realiza uma retomada de temas ligados à ancestralidade, a resistência e a cultura popular entregando uma coleção de canções que atualizam o samba, ao mesmo tempo em que reverenciam o passado e os expoentes do estilo. Dividido em três atos, o álbum inicia com uma maravilhosa sequência de samba mais tradicional, em que se sobressaem canções como Povo de Fé, Até Clarear e Só Quando Meu Samba Morrer. No segundo terço, D2 vai para a Bahia, para um samba mais experimental, saído do terreiro de candomblé, em que ritmos e batidas africanas se juntam a bases eletrônicas modernas e cheias de personalidade - sendo o melhor exemplo a visceral Tambor de Aço, um rap que ajudou o artista a se reconectar com Ogum. Na última parte, a música popular se torna mais festiva, como sugerem músicas de título autoexplicativo como O Samba Falará + Alto e Bundalelê. Com participações de nomes diversos como Zeca Pagodinho, Alcione e BNegão, o projeto acerta em cheio no encontro da arte popular com a religião, sem deixar de lado assuntos políticos. É o melhor de 2023.

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