quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Cinema - Anatomia de Uma Queda (Anatomie D'une Chute)

De: Justine Triet. Com Sandra Hüller, Samuel Theis e Milo Machado-Graner. Drama / Suspense, França, 2023, 151 minutos.

"Eu não dou a mínima para a realidade. O que você precisa começar a perceber é a forma como os outros enxergarão você. O julgamento não é sobre a verdade. É sobre o que parece a verdade". A frase dita pelo advogado Vincent (Swann Arlaud) à Sandra (a sempre ótima Sandra Hüller) surgirá, com pequenas variações, mais de uma vez durante os quase 150 minutos de Anatomia de Uma Queda (Anatomie D'une Chute) - filme dirigido por Justine Triet (Sibyl, 2019), que está em cartaz no Festival Varilux de Cinema Francês, que inicia hoje em todo o País. Sandra é acusada de, talvez, ter matado seu próprio marido Samuel (Samuel Theis) em circunstâncias misteriosas e de difícil explicação para a Justiça. E, depois do surgimento de uma gravação que envolve uma pesada discussão entre o casal, apenas um dia antes da morte de Samuel, o advogado de defesa tenta de toda a forma lembrar Sandra que, vá lá, talvez a realidade dos fatos não seja tão importante assim. O que vale mesmo é a aparência da coisa toda.

E, em alguma medida, a meu ver, é nesse contexto que reside o brilhantismo da obra, que venceu a mais recente Palma de Ouro do Festival de Cannes - e que pode surgir mais adiante em certas categorias do Oscar. Ao cabo, essa é uma produção que nos arremessa de lá para cá o tempo todo, nos deixando em dúvida sobre os acontecimentos - e também sobre Sandra. Ela é culpada mesmo? Foi ela que cometeu o crime? Aliás, houve mesmo um crime, ou a queda de Samuel do segundo andar em que moram, em um chalé isolado nas montanhas, foi um acidente? Mais do que isso, o sujeito teria algum motivo para dar cabo da própria vida? Nessa equação complexa ainda entra o filho do casal, Daniel (Milo Machado-Graner), um menino com uma deficiência visual, decorrente de um acidente que talvez pudesse ter sido evitado, se Samuel não tivesse sido negligente anos atrás, quando do ocorrido. Como superar esse sentimento de culpa? Esse trauma? Essa dor mútua?

Hábil, a diretora é capaz de gerar desconforto já nos primeiros quinze minutos de projeção, quando Sandra - uma escritora de romances renomada -, recebe uma aluna que pretende entrevistá-la. O instante, que era pra ser agradável, ganha contornos pesados quando, no andar de cima da habitação, Samuel começa a trabalhar acompanhado de uma versão instrumental de P.I.M.P., do 50 Cent - que, com sua letra misógina e com certo pendor pra violência, torna tudo mais incômodo. A canção, com seu volume alto, invade o ambiente, o que nos permite saber que algo ali talvez não esteja bem. Com tudo piorando com a morte do marido, praticamente na cena seguinte. Claro que tudo isso sendo um ótimo preâmbulo para os acontecimentos que se descortinarão dali pra frente - que envolvem as tentativas do advogado de estabelecer uma "verdade" para os fatos que possa ser favorável para Sandra.

Para quem gosta de filme de tribunal naquele estilo clássico de longas divagações, de pontos e contrapontos, de provas sendo apresentadas, evidências sendo desconstruídas, surpresas sendo reveladas e incertezas em meio a tudo, esse aqui será um prato cheio. De reconstituição dos eventos - com direito a apego em pequenos detalhes que possam alterar nossa percepção de forma instantânea -, passando por autópsias e perícias inconclusivas, testemunhas que podem apresentar novos elementos e diálogos estendidos até o limite (aliás, palmas para a atuação de todo o elenco, inclusive do pequeno Milo), aqui temos um exercício de estilo de suspense policialesco que bebe na fonte de filmes noventistas como Instinto Selvagem (1992) e As Duas Faces de Um Crime (1996). Vale mencionar ainda que esta não é uma obra que se pretende conclusiva. Nos bastidores, parece que a própria Sandra Hüller teria perguntado à diretora sobre se sua personagem era ou não a culpada, não obtendo nenhuma resposta da diretora. A ambiguidade de tudo, é o que torna a experiência magnética, reflexiva e irresistível.

Nota: 9,0


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